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História 85 - "Atrasada"


Escrita por: Marmito

Capítulo 2 - "Atrasada"


  CAPÍTULO 1

           

                       “Atrasada”

                                                                1

Quando o Civic passou pela estrada mais de 100 quilômetros por hora, Juliet Sweethearth sabia que todos já haviam a notado duas quadras antes. O carro deu a curva mais preocupante de sua vida, que fez seu estômago com o café da manhã se embrulhar mais ainda, e estacionou entre duas marcas verticais de cor amarela. Sentiu sua mochila escorregando por seus braços e achou que iria deixa-la cair, mas foi só impressão.

            As chaves do Civic tintilavam e chacoalhavam, o botão de fechar as portas brilhava como a cor de uma maçã que acabara de ser colhida. O ar de verão entrava pela janela aberta do carro, junto com algumas moscas sendo atraídas pelo cheiro de cerveja vencida guardadas no porta-luvas. Uma voou até encostar no ombro de Tom, que logo apanhou-a e fechou sua mão sobre o corpo da coitada. Tirou a chave da ignição e soltou um sorriso podre e amarelo.

            - Ah, como é uma porra voltar ás aulas, não é mesmo July? – seu tio soava rouco, quase engraçado – Tá olhando o quê? Era pra você já estar na escola há meia hora. Vá, vai logo! Estava esperando o quê? Que eu desse alguns beijinhos nessa bochecha rosada e te desejasse ao sorte?! Pelo amor de Deus, saia do meu carro.

            - Tá. – Foi o que July simplesmente respondeu antes de sair do carro e bater a porta.

            O motor acelerou de novo, rufando como uma besta raivosa, o som dele quase se sobrepunha a música que tocava lá dentro e saía pelos dois alto-falantes pendurados no teto do carro. “Hound Dog” tocava na rádio local de Downtown. Mesmo daquela distância das janelas da escola, Juliet conseguia sentir o peso dos olhares sobre si. Talvez seria mais por conta do tio do que por conta dela, mas no final, era sempre a sobrinha que tinha que carregar a cruz.

            Virou os calcanhares, as pulseiras rasgadas que ganhara de Natal por sua vó se debatiam contra o vento quente e seco da manhã. Seu rabo de cavalo quase se despenteara com ele. Se sentia sozinha em um deserto gigantesco, talvez até uma bolinha de poeira apareceria daqui a pouco.

            Mas graças a Deus ela não estava sozinha completamente. Alguns atrasados também corriam, saltando de suas bicicletas ou carrinhos de rolimã e correndo para os degraus da porta principal. Nenhuma menina ali, bem, elas não tinham o costume de atrasar, talvez somente July fosse um caso á parte.

            A escadaria passou mais rápida do que um furacão. Abriu a porta pesada do colégio com duas mãos, que soltou um ruído cansado e até um pouco estonteante. O chão era escorregadio, talvez tivessem colocado algum tipo de cera antes dos alunos terem chegado. Seu tênis foi apressado pelo corredor, mais rápido do que na escadaria.

            Não havia nenhum zelador por ali, talvez estivessem no andar de cima, quem sabe no banheiro e em últimas hipóteses, no campo de futebol. Sabia onde os zeladores se encontravam na maioria das vezes. Vó Rose lhe contara quase tudo sobre seus turnos de plantão quando trabalhava para uma faculdade na Califórnia. Só Deus sabe como que ela foi parar no Maine no final das contas. Mas Rose sempre afirmava que o trabalho de zelador era no mínimo desafiador, talvez por que dos banheiros dos meninos, cheios de mictórios vazados que deveriam ser limpados com alguma mangueira potente de limpeza, alguns sempre diziam que o maior medo de um funcionário de escola ou faculdade era de uma discussão com o gerente. Na verdade, talvez isso valesse para todos os empregos do mundo, mas com os zeladores era o dobro do pior.

            - Nunca duvide de um faxineiro ou zelador, July – dizia sua avó quando visitava sua casa, normalmente aos fins de semanas, os dias favoritos do tio Tom para visitar algum bar ou dar uma volta rápida pela Rodovia 9 – Ele sempre sabe mais do que todos na escola.

            - Até mais do que o diretor, vovó?

            - Bem, em alguns casos sim, em outros... O zelador vira o diretor. – Assegurou-se.                                                                       

            - Como isso?

            - Sabe July, conheço vários casos de faxineiros que começaram na base de toda a hierarquia – naquela época, Juliet não sabia nem de longe o que significava a palavra, mas estava tão animada com a conversa que resolveu não interromper -. Muitos eram meus colegas de serviço, que posteriormente viraram meus patrões. E então o ciclo continuava, mas esses são casos completamente diferentes, tem vezes que um zelador começa como zelador trabalha como zelador e termina como zelador. Que nem eu.

                                                             2

            Enquanto ia a passinhos rápidos em direção a sala do segundo médio, Juliet quase foi ao chão por duas vezes. Suas amigas deveriam estar a esperando, mas elas também podiam já ter se esquecido dela. Poderiam estar com raiva por que ela não encontrou nenhuma das três durante as férias de verão. Ou porque não gostassem de seu tio, e seus pais lhe disseram que ele era uma “má companhia”.

            E não estava tão longe disso, Tommy Sweethearth deveria ser considerado a ovelha negra da família. Mas se chamavam ele assim, fosse completamente antes de seus pais morrerem em uma viagem ao Texas. O caminhoneiro foi com força demais no para-choque, a família evitava, mas seu tio sempre fazia questão de citar especificamente essa parte do acontecimento. O puto acelerou o pedal com tanta força, mas com tanta força... que seus pais nem tiveram tempo de sentir tudo. Ele voou, querida. Sim, ele voou para o ar, como se algum gatinho fosse chutado por alguém. Rodopiou e fez vários loopings, sim, loopings que fariam toda a plateia de um show ir á loucura, e eles foram, sim, não duvide disso. Eles foram a total loucura! Falava isso antes de voltar par seu quarto e começar a estourar a mente de Ju com o som desafinado de sua guitarra 79 já usada por mais de duas pessoas no mínimo.

            Deu duas batidinhas na porta de cerejeira que levava até a sala de Estudos Sociais e entrou. A professora Melissa suspirou duas vezes longamente antes de se virar e deixar cair o giz branco na galeria da lousa negra.

            - Juliet, está atrasada.

            Não me diga.

            - Me d-desculpe professora...  – gaguejou em resposta – Eu... Meu tio e eu... Tivemos que... – conseguia ouvir as risadas baixinhas dos alunos no fundo e até um pouco dos da frente, se duvidasse – Peço desculpas, por favor...

            - Peça desculpas a seu tio... Ele deve estar muito decepcionado com você ao chegar atrasada no primeiro dia de aula. Saia da minha sala. Retorne somente na segunda aula.

            - Professora por favor...

            - Não.

            Diferente da maioria das pessoas, a professora Melissa não era do tipo que odiava Tom. Suspeitava que talvez nem sabia dos seus costumes ou jeito de falar. Mas isso não significava que tinha vontade de se limitar a somente tchauzinhos no final da aula nos dias que ele vinha buscar Juliet. Na maioria das vezes, ele devolvia, mas no caminho para casa, sempre perguntava a sobrinha quem era, com suas próprias palavras, “A Velha que fica me perseguindo todos os dias”.

            Talvez seja esse amor não comprometido que fazia ela odiar tanto July, mesmo quando tirava notas decentes em Estudos Sociais. Um “Parabéns” ríspido era ouvido, mas logo depois era mandada até o banheiro para pensar por que estava conversando no fundo da sala.

            Foi até o andar de baixo, que levava até as salas do endino abaixo ou para o refeitório, ou para o campo de esportes. Parou em um banquinho retangular feito de gesso, onde sentou-se e colocou sua cabeça entre os braços, cabisbaixa. Deixou sua mochila no chão, havia esquecido até mesmo de seu armário. Mas isso não importava agora, poderia fazer depois. Pensou se os outros atrasados tivessem perdido a primeira aula feito ela, mas isso também não importava.

            - July... – uma voz veio do seu lado, rouca, mas não tanto quanto a do seu tio. Era um pouco mais cansada – O que está fazendo aqui? Não deveria estar na aula?

            Era o zelador Ronald. Sua careca lustrosa, somente com dois tufos de cabelo enrolados circulando o centro totalmente vazio. Estava segurando um rodo de madeira, que acabara de colocar num balde cheio de água. Tinha conversado pouco com ele em todos seus anos de escola, mas lembrava de sua figura desde que brincava somente com formas geométricas que encaixavam em um quebra-cabeça. Então de certa forma adquiriu um certo afeto pelo homem.

            - Ah, senhor Ronald. Eu... Me atrasei. E a professora Melissa disse que eu não poderia entrar na primeira aula.

            - Nossa, que pena. – observou a parte final do rodo – Olha, eu estou aqui há muito tempo, como já deve estar cansada de ouvir... Mas... Bem – abaixou o tom da voz, que foi se reduzindo a um leve sussurro -,me arrumo formas de me divertir quando meu turno acaba. Veja... – se sentou ao lado de Juliet – Talvez seja difícil pra você entender o que eu vou te contar agora mas vou contar mesmo assim... – Ronald fez um sinal para ela se aproximar mais ainda, naquele momento os dois estavam praticamente se tocando – Na dispensa. Deve ter algo que goste, mas tem que terminar tudo que for fazer antes de sua aula começar.

            - O que tem na dispensa, senhor? – perguntou ela, em dúvida.

            - Por Deus menina, não me chame de senhor. Mas bem, lá você vai encontrar alguma coisa que talvez goste, meu deus, no que estou me metendo, posso acabar sendo preso e talvez...

            - Por que está contando isso para mim?

            - Bem, por que achei que você seria a pessoa que eu mais confiaria para guardar algum segredo.

            - Estava guardando isso, né?

            - Você me pegou, eu estava sim. Mas olhe, não conte para ninguém...

            O som irrompeu de todos os arredores, cortando completamente o que Ronald iria lhe dizer. Os dois se entreolharam, o sinal estava tocando.

            - Oh, é hora do meu turno e de sua aula. – Levantou-se ajeitou o uniforme azul - E tome cuidado mocinha, não conte nada do que eu te falei. Isso fica entre nós, ok?

            - Palavra de estudante.

            O velho deu uma risada baixa.

            - Acho que isso não significa tanto assim quanto acha – e foi andando pelo corredor, segurando o baldinho com uma mão e o rodo com outra.

            Do que ele estaria falando? O que estaria na dispensa que tanto falava? Por que estava com receio de contar isso para mim? Milhões de perguntas passaram pela sua cabeça naquele momento. Mas não eram importantes, porque era horário de aula, e ela deveria se apressar.

                                                                  3

            O refeitório estava cheio e as pessoas podiam ser comparadas a formigas naquele instante. A fila andava um pouco, parava, andava novamente, parava. Era um ciclo quase sem fim. Como um engarrafamento na estrada, você tem que esperar o problema ser resolvido (poderia ser um acidente de carro ou alguma reforma em andamento), para conseguir voltar a velocidade anterior e seguir viajem, ou qualquer coisa que estivesse fazendo. Ali, apesar de semelhante, eles teriam que pegar a sopa de feijão com salada e macarrão duro para saírem da fila e finalmente irem sentar em suas respectivas mesas.

            - Sabe July – disse Nance Mustage, depois de colocar um gorda colherada de repolho em seu prato de plástico -, acho que ele deve estar mentindo. Nenhum zelador deve ser assim tão simpático ao ponto te de dar as fichas de uma loteria premiada. Deve estar mentindo, é o que meu pai sempre fala, não confie em ninguém que não seja seu amigo ou da sua família – enquanto falava, ia enchendo mais e mais seu prato, criando uma torre farta de comida. Talvez Nance devesse pensar um pouco em regime, mas July não tinha coragem de falar isso para ela, na verdade, ninguém tinha, tirando o grupo das “populares” e talvez os quaterbacks -. E acho que ele está certo. Não, na verdade acho que ele está absolutamente certo.

            - Pare de encher a cabeça da nossa amiga com bobagens, Nan. – falou Agatha Lanperstreet, com seu nariz empinado e seu par de óculos rosa redondos – Ela anda assistindo muitos filmes do Steven Spielberg, July. Esses dias, ela estava em lágrimas enquanto assistia E.T, ela disse para mim que chorou por que queria que o alienígena voltasse para casa. Há, há!

            Nance passou por entre July e deu um tapa leve no ombro de Agatha.

            - Cala a boca, Agatha. Você sabe muito bem que você gosta de andar com a gentinha do bairro Neisfeild.

            - Não gosto, não. Meu primo que é de lá, e ás vezes me obriga a ir até lá. Mas eu não faço nada com eles. Só assisto...

            - Ao clipe do Michael Jackson, ok, ok. – declarou July para dar um fim a discussão – Agora, vamos parar com isso está bem? Eu vou decidir se vou na tal dispensa, tá bom? – serviu uma colherada de macarrão, encheu seu copo plástico de suco de laranja e foi com as duas amigas até uma mesinha no canto do refeitório, distante de quase todos.

            Os murmurinhos e as conversas dominavam todo o lugar, as mesas sempre eram dividas entre grupos. Alguns jogadores de futebol americano ficavam mais no centro, costumando a juntar três mesas e formar uma só, para que todos pudessem sentar. Outros chamados de nerds sentavam em outro grupo, no extremo lado da sala. Não conhecia todos, somente dois com quem já brincara no ensino abaixo, há mais de sete anos, talvez fossem oito.

            - Então, como foram as férias July? – Nance perguntou após enfiar uma melancia na boca e o sumo quase escorrer pelo guardanapo.

            - Eu fui até Chicago e meu pai me levou até o show do Chubby Checker – respondeu Agatha, como se a pergunta tinha sido feita para ela – Dançamos muito e depois fomos para um hotel que a comida era muito boa...

            - Perguntei pra July, Agatha – respondeu Nance, impaciente.

            - Bem... É... – tentou inventar alguma resposta na hora, mas ela não vinha de jeito nenhum. Mentir é bom, Juliet, mas mentir feito um cachorro louco não faz tão bem, é a mesma coisa de você querer tomar um antibiótico depois de ter cortado os pulsos por impulso. A mentira não vai funcionar mais, e talvez nunca mais cicatrize... – Eu fui até a casa da minha vó e aprendi a montar um cavalo...

            E não era mentira, ela tinha ido mesmo até a casa de Sintia Sweetheath durante uma semana antes das aulas, mas a parte do cavalo era mentira. O máximo que ela tinha feito na casa de sua vó era ver alguns porcos saindo do chiqueiro e talvez, nos dias de pouca chuva, assistir algum programa na TV pequena comprada por seu avô.

            - Ah, que legal. – Suas amigas se limitaram a dizer.

            Um silêncio no mínimo desconfortante caiu sobre as três, como se fosse um pano cobrindo o corpo de um defunto em seu velório, chegava a quase ser sufocante. Somente o tintilar baixo que os talheres faziam era o que podia ser chamado de som, além das conversas e murmurinhos saindo das outras mesas, é claro. Mas ele foi subitamente quebrado pelo som de um livro pousando, que soltou um baque que poderia fazer pessoas em meio a um velório se entreolharem assustadas.

            - Olá, garotas – Mary Varytale soou como se fosse dois anos mais velha, a voz um pouco rouca pelos cigarros fumados e as cervejas ingeridas, mas tinha só 16, reprovada duas vezes no primeiro ano -. Percebi que estavam um pouco sozinhas demais. Eu e minhas amigas queremos dar uma ajudinha a vocês.

            Seu cabelo louro encaracolado, saltado para cima como se fosse um bolo que acabara de ser fermentado, combinado com o contraste do negro que dominava seu traje colado em seu corpo. As outras quatro garotas que a seguiam pelos calcanhares, como cadelas treinadas, eram Skinner Watchgirl, Vilman Cubby, Sandy Lucky e a mais velha, do terceiro ano, Emma Stanley. Todas mascando balas de mascar.

            Nenhuma das três respondeu, Nance e Agatha coraram de vergonha, como se estivessem sendo impostas a algum tipo de governo autoritário e tivessem sido pegas fazendo algo fora da linha.

            - Ei, eu estou falando com vocês! – gritou a loira, levantando o livro de novo e batendo-o contra a mesa, duas vezes seguidas – Vão me responder ou não? Está bem então, se vão ser mal educadas com a gente, então acho melhor nós mesmas buscar as cadeiras. Skinner e Sand, venham me ajudar nisso aqui.

            Elas avançaram, Mary empurrou a cadeira de Juliet, fazendo ela virar contra seu corpo, e as duas dessaberem no chão, antes de Mary ter levantado o objeto e se sentar nele. July não pôde ver, mas as outras duas conseguiram derrubar suas amigas até com mais facilidade, dessa vez até mesmo usando os pés das cadeiras para “espetar” as duas enquanto se tremiam no chão e esganavam-se de dor. Os alunos que estavam no refeitório somente viraram o olhar para o acontecido durante alguns poucos segundos, mas depois viraram a cara, como se nada tivesse acontecido.

            - Sai daqui! – gritou July, se levantando e encarando Mary – Sai daqui, porra! Ninguém aguenta vocês!

            - Ui – entre risadas, as quatro pareciam piores do que antes, por um instante, foi horrível ter percebido que suas bandejas cheias de comida tinha sido levadas ao chão, com tudo que estava dentro dos recipientes se esparramando pelo chão lustroso -, então quer dizer que a filhinha do tio “locão” quer apontar o dedo para nós, não é? Se toca garota, é melhor sair da nossa mesa, já guardou ela pra mim o suficiente.

            - Quer dizer a nossa mesa, não é Mary? – perguntou Skinner do lado oposto.

            - Sim, sim, tanto faz. Mas agora – levantou-se e ficou na altura dos olhos de Juliet, até um pouco maior, não, muito maior -, sai daqui ou vocês e suas amigas terão que arranjar sue lugar na enfermaria.

            O coração de Juliet estava saltando de seu corpo, como se fosse uma caldeira de um hotel não bem-cuidada que estava prestes a explodir. Seu cabelo soava pelo calor que irradiava da caldeira, era quase como uma bomba ao mesmo tempo, mas mesmo assim não se mexeu, achou que se ficasse um pouco mais parada assim, talvez Mary iria espanca-la até a morte ali mesmo, como um abusador que pegava crianças nos becos, não, parecia mais alguém familiar. Alguém que vivia com ela, talvez até mesmo alguém que supostamente deveria “cuidar” dela. Mas, então simplesmente se virou. Não falou praticamente nada, as amigas também a seguiram.

            Terminaram o almoço perto das latas de lixo, comendo o que sobrara das bandejas derramadas, até um pouco de tempero de chão, mas mesmo assim não morreram de fome, mas mesmo assim não apanharam até a morte ou algo perto disso.

                                                                4

                Sempre voltava para casa de ônibus, tio Tom nunca ia a buscar e nunca a buscou.

            Depois das aulas de Geografia, Física, Cálculo, Matemática e Ginástica, as três da tarde chegou mais demorado do que pensara. Levara três boladas no vôlei, uma foi tão forte que teve que conseguir um bloco de gelo para cicatrizar o machucado. Não conseguia sacar menos de uma.

            - Caramba July! – dizia a capitã do time, que graças a Deus não era Mary Varytale, mas sim, Beverly Stinton. –, é só posicionar a mão e a bola certo! Além de ser uma vagabunda você não sabe nem sacar uma bola!

            Vagabunda. Era uma das palavras mais sinistras e incomodantes e ao mesmo tempo uma das mais leves que recebia todos os dias. Também houveram vadia, sem-pai, sucuri e até mesmo uma que nunca tinha ouvido anteriormente: nerd. Ninguém nunca a chamara disso, e também não tinha motivos para chamar, ela não era uma nerd, só andava com as garotas mais isoladas da turma, sentava praticamente sozinha, não namorava nenhum menino e também nunca fumara. Mas ao contrário do que a maioria pensava, ela quase não estudava. Tudo bem qu eia bem na maior parte dos testes que tinham no final do ano, mas era só porque tinha sorte, nunca estudara na sua vida mais de uma hora. Ou mais de duas, ou mais de três quando seu tio saía na calada da noite de sextas-feiras.

            Quando tinha tempo para desviar de um rolo de papel ou outro que rolavam pelos bancos do ônibus e costumavam pousar ou em seus cotovelos, ou em sua cabeça ou em seu branco, pensava na lavanderia que conhecera no começo do dia. Não chegara a conhece-la de verdade, mas a informação que o zelador Ronald Baker havia lhe passado era quase como um flerte.

            Talvez a dispensa poderia ser apenas um mito, ou mais possivelmente uma mentira como sugerira Nance, mas achava muito difícil. Porque por mais que os velhinhos tenham boas intenções e talvez simplesmente queiram fazerm os mais novos felizes em situações complicadas, de alguma forma, achava que poderia ser verdade. Era uma impressão sútil, como se fosse o destino dando uma aula e ter escrito três parágrafos gigantescos na lousa e mesmo assim passava para a mente como um avião cortava, passando pelas nuvens. Mas era mais do que isso, ela sabia que era, ou talvez só achava.

            Achar todo mundo pode, July. E normalmente as aparências enganam mais do que o pano sobre o defunto. Sentiu um certo arrepio transparecer por sua pele. Falar de defuntos, ou somente pensar neles já não era algo lá dos mais acolhedores. Você tem que ver para saber, tem que entrar naquela dispensa, dar uma olhadinha rápida com a cabeça encostada na porta e ir embora. Mas e se tivesse mesmo algo lá? Algo guardado pelos zeladores, como se fossem agentes secretos dos filmes de James Bond. Assistia os filmes em fita-cassete quando visitava a casa de Agatha nos fins de semanas ou feriados, as duas adoravam a ação, e Juliet preservava a suspeita de que sua amiga mais nova teria até mesmo uma “quedinha” pelo James Bond. Mas não era comparável a nenhum zelador. James Bond era interpretado por algum astro de Holywood. Não um zelador que ficou desempregado e descobriu seu talento dentro das telas de cinema e conseguiu fazer sucesso nos filmes. Não, não era ao menos comparável.

            Das janelas do banco lá de trás, Juliet observou pelo canto da janela embaçada e viu a Praça da Matriz, era como a maioria dos habitantes de Downtown a chamavam. Apesar de alguns religiosos mais conservadores nomearem ela como “Praça Luterana”, mas poucos seguiam a segunda regra.

            A igreja luterana se erguia no centro da praça, cortando o céu azul de uma singela primavera do Maine com sua cruz. July nunca a tinha frequentado por vontade própria, mas Nance e Agatha eram religiosas, então quando era sábado á noite e ela dormia na casa de uma das duas, era obrigada a ir á missa na manhã seguinte. O estacionamento da praça sempre ficava lotado de missionários nesses dias, mas em plena segunda havia apenas um fusca parado ao lado da igreja, sendo acompanhado somente por duas bicicletas com a corrente amarelada por estar enferrujada. Os sinos ressoavam por toda a cidade pacata, dando badaladas que avisavam os crentes da missa do meio dia. Que July imaginou que meia dúzia de pessoas deveriam frequentar.

            O resto da praça estava menos calmo, alguns alunos da escola ficavam até mais tarde ali, se empoleirando perto das árvores onde tocavam seus rádios e fumavam escondidos. Alguns até mesmo jogavam bola no espaço restante das calçadas. Muitos também tinham que atravessar a praça para voltar até as suas casas. July conseguiu ver um garoto, não lembrava ao certo quem ele era, mas sabia certamente que era da sua classe. Carregava uma mochila de costas grande e branca, talvez até com alguns chaveirinhos pendurados nos zípers, mas não conseguiu identificar quais. Andava a passo comum, e parecia que até mesmo assobiasse. Tinha um rosto bonito, ela percebeu. Não era nenhum James Bond (isso era provavelmente o que Agatha ia pensar no lugar dela), mas não deixava a desejar. Tinha o cabelo um pouco caído, mas não era tigela, nem encharcado de gel como os outros garotos costumavam fazer. Pensou que já tivesse olhado para ele uma ou duas vezes antes, mas nunca percebera direito quem era.

            Seus olhos se cruzaram, foi por muito pouco tempo, mas se cruzaram, mas não se olharam como estranhos, longe disso, era quase como fossem, melhores amigos ou irmãos, que se conhecessem há muito tempo e que sabiam tudo um do outro. Mas aquilo foi só impressão. Seus olhares se desprenderam, e cada um voltou para a posição original. Juliet ficou paralisada um pouco, talvez tentando pensar nas possibilidades daquele menino ter gostado ou não dela. Até mesmo se eles tivessem se olhado mesmo ou fora só uma impressão imbecil dela. Mas foi só um olhar, um desvio passageiro. Iriam nunca se olhar novamente por todo o Ensino Médio, ela faria faculdade de Inglês em Oxford e ele provavelmente tentaria a de direito, em Portland, os dois casariam, iriam ter filhos, cuidariam deles, envelheceriam, iam ter tempo para ver a morte de Michael Jackson e o fim de Twist e finalmente poderiam morrer em pás, cada um em um canto do país. E a dispensa, bem, nunca mexeria nela, provavelmente esqueceria, e deixaria nessa mesmo.

            Mas é claro que não foi desse jeito que as coisas aconteceram, ao contrário, eu não estaria escrevendo essa história que toma meu tempo e minha dedicação. Os dois se olharam novamente sim, mais do que possa imaginar. E quanto a dispensa...

            July sequer entrou na dispensa. Até Março de 1986.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

               



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