Vultos, vozes, lampejos, cores e silhuetas. Ninguém entendia o que se passava ali, um cena escura sem a menor definição e nitidez. Corpos se misturando, animais grunhindo, pessoas gritando. Que sufoco, falta de ar, não conseguia respirar, não saia do lugar.
Rauthar acordou mais aterrorizado que no último pesadelo. O suor lhe escorria pela testa, os cabelos negros molhados e pregados na nuca, o peito encharcado e o medo estampado no rosto. Há dias ele tinha esses pesadelos, mas não conseguia identificar nada, pois o sonho era totalmente confuso e sem nitidez, geralmente um lugar muito escuro e os vultos que sussurram ou gritam, misturados com lampejos de luz muito forte. Levantou-se da cama e foi lavar o rosto, o sol já se levantava também, era hora de trabalhar.
Ao sair do quarto, deu de cara com a sua velha mãe, Sildes, fazendo pãozinho doce, o cheiro estava maravilhoso. Rauthar olhou em volta e parecia estar tudo no mesmo lugar, no fundo ficava a fogueira com o caldeirão fervendo algum tipo de chá, no meio do cômodo ficava a mesa com quatro cadeiras feitas de madeira preta, em volta os ornamentos de caça que seu falecido pai havia conquistado durante suas jornadas. A casa de madeira e argila, chão de pedra, não era muito mais do que eles precisavam, já que viviam numa fazenda próxima ao vilarejo de Rorisktead.
Todos os dias havia um agenda a ser cumprida: tirar leite da vacas, apanhar os ovos das galinhas e cuidar da plantação de trigo. Ele não conseguia caçar, os antílopes eram mais rápidos e o sentiam a uma grande distância, por isso começou a trocar parte do trigo por carne na estalagem e taverna do vilarejo, porém, a maioria do trigo era vendido para o dono da estalagem em Whiterun, que o usava para fazer cerveja. Quando o sol estava no alto, queimando forte, era hora do almoço e, após um breve descanso, voltava à labuta.
O jovem já estava se cansando da mesmice rotineira, mas sabia que a vida era assim e que ele precisava dar sustento à sua mãe, depois que seu pai morreu no ataque do dragão. Num dia nublado e frio o ar ecoou o urro de terror. Já era quase noite quando o chão estremeceu e o cheiro de fumaça se propagou no ar, os cidadãos aterrorizados corriam para dentro de suas casas e os mais corajosos tentavam enfrentar a fera alada que cuspia fogo. Quase todos já haviam abandonado a vila, mas alguns guardas, o pai de Rauthar e outros donos de fazenda permaneceram lutando, alguns com espadas e outros com flechas. No entanto, todo esforço era inútil, nada parecia penetrar a pele escamosa do dragão. Após destruir duas casas, uma ainda permanecia queimando em chamas vorazes, o monstro começou a avançar para destruir a estalagem, mas quando estava preparando o seu bafo flamejante, ela apareceu, a corajosa destruidora de dragões, aquela que sabia falar na língua deles, de cabelos negros e pele amarelada, a elfa era chamada de Sariel, a Nascida dos Dragões*.
Rauthar achava que era apenas lenda, mas a elfa abriu a boca e o som que saiu era uma língua estranha, o seu grito emanou um poder tão forte que empurrou o dragão para vários metros de distância da vila, varrendo tudo o que estava no caminho. Quando eles já estavam distanciados, a elfa fez um grande movimento com as mãos e uma nevasca intensa rodeou o dragão, como se o aprisionasse nessa tempestade severa e mortal de gelo. O monstro ainda tentou um último golpe, mas sem sucesso, caiu morto e congelado. Sariel fez uma reverência ao dragão morto e uma luz intensa saia do cadáver enquanto a pele da besta se dissolvia em fogo e sumia no ar, era como se ela estivesse absorvendo algum tipo de poder.
Não sabia se conseguiria acreditar no que viu, mas em meio aos escombros da casa destruída, estava seu pai, jogado ao chão. Com lágrimas nos olhos, o filho correu para ver se conseguia ajudar mas, ao se ajoelhar no chão e por a mão sobre o peito de seu pai, só conseguiu escutar “cuide de sua mãe” como o último suspiro daquele homem. Três anos depois, era isso que Rauthar fazia, cuidava de sua mãe e, para isso, precisa dar andamento aos trabalhos da fazenda, mesmo que já estivesse cheio de tudo aquilo.
Não passava um dia sequer sem que ele se lembrasse daquele momento. Além da terrível morte de seus pai, Rauthar lembrava principalmente da elfa maga, matadora de dragões e silenciadora de perigos. Como a vida dela deveria ser cheia de perigos e aventuras, andando pelo mundo para ajudar àqueles que mais precisavam, usando suas magias arcanas para destruir seus inimigos e encantar os jovens contando suas aventuras.
Outro dia começava mas, ao descer as escadas de madeira bruta, Rauthar percebeu que sua mãe não estava cozinhando nada, a fogueira nem estava acesa. Estanhando aquela cena, o jovem subiu de volta e foi até o quarto de sua mãe que ainda estava deitada e, aparentemente, muito fraca. Sildes disse ao filho que não estava se sentindo muito bem e que ele deveria ir até a fazenda vizinha para pegar o remédio com a dona do moinho, que era conhecida por suas poções curandeiras. Mais que depressa, Rauthar consentiu e saiu a caminho da fazenda Arcadia.
Se equipou com suas duas adagas de aço, bem afiadas, para lidar com possíveis problemas no caminho, vestiu suas botas, luvas de couro reforçado e saiu correndo. A fazenda não era muito distante, mas levaria mais ou menos uma hora até chegar lá. O caminho era bonito, mas não daria tempo de parar para apreciar as pedras desenhadas ou o riacho fundo, era preciso foco para chegar o mais rápido possível ao seu destino.
Porém, como era esperado, Rauthar escutou uivos raivosos vindos de trás de um rochedo. Lobos eram problemas por ali, havia uma alcateia que habitava a região durante anos. O jovem sacou as adagas e continuou sua caminhada apressada. Após alguns passos ele ouviu os rosnados e sem tempo de verificar de onde eram, dois grandes lobos pretos surgiram, um a sua frente e outro por trás.
O lobo que estava na frente pulou sobre Rauthar e este passou a lâmina certeira na garganta do bicho, que caiu jorrando um sangue muito vermelho e mal cheiroso. O outro animal, aturdido com a agilidade do jovem, preparou o ataque e avançou rapidamente. O rapaz se esquivou da investida e cravou o aço frio nas costas da fera, que guinchou de dor, mas não fugiu. Dessa vez, Rauthar antecipou-se e avançou no animal, pulando por trás e, agarrando uma de suas orelhas, enfiou a lâmina ensanguentada no pescoço do lobo, fazendo um corte certeiro na artéria que espirrou sangue em todas as direções possíveis. Ele até poderia ser ruim na caça por não saber manusear o arco, mas sabia se cuidar muito bem com as suas adagas. Olhou os cadáveres no chão e pensou que poderia retirar o couro e algumas partes da carne, mas lembrou-se de sua missão, chacoalhou as agadas para retirar o sangue e saiu apressado mais uma vez.
Ele conseguiu chegar na fazenda, ainda que quase sem ar, tinha forças para perguntar onde estava a curandeira. Indicado pela criança que brincava com o cão, Rauthar foi até uma cabana escondida entre algumas árvores. Por fora a cabana parecia estar muito velha, com a madeira já meio podre e úmida, porém, ao entrar, percebeu que o interior do local parecia estar extremamente conservado, cheirando a madeira nova e alguns outros odores que não conseguia distinguir.
No fundo da sala, encostada na parede, havia uma mesa arredondada, feita de madeira clara, em sua superfície havia um desenho que parecia se interligar com a parte funda no centro. Em uma das extremidades havia um fogareiro que fervia o conteúdo do recipiente de vidro, do qual o vapor se condensava e passava por mais dois recipientes até cair gota a gota na parte funda do centro. Em todo o interior da cabana podia se encontrar folhas, pedras, recipientes, frascos cheios de líquidos variados e várias outras coisas que Rauthar não conseguiu identificar, mas ele jurou ter visto alguns dedos e orelhas estranhos, tudo organizado em prateleiras. Apesar de ser um lugar um pouco escuro e estranho, ele se sentia extremamente bem ali dentro.
Recuperou o fôlego e, ao dar uma olhada, não encontrou ninguém. No entanto, quando virou as costas, ouviu alguém dizer que “a alquimia é a arte de ajudar pessoas através de elixires e poções, mas também pode ser perigosa com os seus venenos”. Rauthar virou-se e pode ver um jovem rapaz, alto e de olhos muito castanhos, o cabelo louro refletia a luz das arandelas penduradas. No espanto, perguntou:
- Onde está a curandeira?
- Como assim? Eu sou o curandeiro, meu nome é Haknir, prazer em conhecê-lo. Minha avó não consegue mais manipular as poções, está muito velhinha - falou calmamente, enquanto se direcionava para perto da mesa de poções.
- Me desculpa, pensei que encontraria outra pessoa, mas isso não importa, preciso de sua ajuda.
Rauthar explicou o que estava acontecendo com a sua mãe, podia se sentir um tanto de desespero enquanto ele contava o que viu naquela manhã. Haknir pediu um momento para pensar, pegou alguns frascos e misturou três líquidos que, ao se tocarem, se transformaram em um espesso vermelho. O jovem alquimista explicou como a poção deveria ser administrada e disse para Rauthar voltar depressa à sua casa, pois sua mãe estava em grande perigo. Apressado, abraçou Haknir e pode sentir um cheiro estranhamente bom, agradeceu mil vezes e saiu correndo.
Durante o caminho de volta, tudo o que passava pela cabeça de Rauthar era a condição e o sofrimento de sua mãe. Ele não via a possibilidade de perdê-la, isso não poderia acontecer, o que seria da vida dele sem ela. Algumas lágrimas cobriram o seu rosto e, cada vez mais, o desespero e o medo tomavam conta. Mesmo após suas pernas pedirem descanso, o rapaz corria como se sua própria vida dependesse daquela poção, pulava obstáculos, ignorava perigos e mesmo a chuva fina que começou a cair não o impediu de continuar seu objetivo.
Chegou em casa e abriu a porta de uma vez, subiu as escadas e adentrou o quarto de sua mãe. O pior havia acontecido, ele caiu de joelhos quando viu sua mãe desfalecida, com um fio de sangue escorrendo pela sua boca. Se aproximou da cama e constatou a frieza em suas mãos e os olhos esbranquiçados vidrados no laço de fita pendurado na parede. Rauthar se lembrou do dia em que deu o laço de fita à sua mãe e ela, suavemente, o colocou no cabelo, deixando seu rosto mais bonito do que já era. Não conseguiu segurar o pranto e as lágrimas escorriam sem cessar pelo seu rosto.
No mesmo dia o enterro foi feito, sem funeral nem nada, sem ninguém, somente o triste rapaz velando pela sua mãe. Entre lágrimas e pensamentos, ele cavou a terra e com todo cuidado colocou sua mãe embrulhada num lençol azul claro dentro da cova. Em uma pedra escreveu que “Sildes, amada esposa e mãe, agora descansa de sua árdua vida”, e o posicionou sobre o túmulo recém fechado. O resto do dia foi de tristeza e saudade, lembranças e alguns copos de hidromel.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.