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História A canção de Jercy - Toques


Escrita por: MaxPosey

Notas do Autor


Olá semideuses!
Eu deveria ter postado esse capítulo na sexta feira, mas foi impossível, então desculpa pela demora.
Espero que curtam esse capítulo e boa leitura.

Capítulo 15 - Toques


Fanfic / Fanfiction A canção de Jercy - Toques

A sala, só havia alguns tapetes gastos e quatro cadeiras. Procurei me sentar empertigado contra o espaldar reto de madeira, como convém a um príncipe. Jason tinha o semblante tomado de emoção e seu pescoço latejava.

— Foi uma armadilha — acusou ele.

Luke nem de leve pareceu perturbado.

— Você se mostrou astuto ao esconder-se; precisávamos nos mostrar mais astutos ainda para encontrá-lo.

Jason arqueou as sobrancelhas com altivez principesca.

— Pois bem, vocês me encontraram. Que esperam de mim?

— Que venha conosco para Troia — disse Luke.

— E se eu não quiser?

— Então contaremos sobre isto para todos. — E Hedge ergueu do chão o vestido que Jason despira.

Jason enrubesceu como se houvesse recebido uma ofensa. Uma coisa era envergar trajes femininos por necessidade; outra bem diferente era permitir que o mundo ficasse sabendo disso. Nossa gente reservava os piores nomes para homens que agiam como mulheres; vidas já tinham sido ceifadas por causa de insultos desse tipo.

Luke levantou uma mão conciliadora.

— Aqui somos todos nobres e não vamos chegar a tais extremos. Creio que tem boas razões para concordar. Fama, por exemplo. Você conquistará muita fama se lutar por nós.

— Haverá outras guerras.

— Não como esta — interrompeu Hedge —, que será a maior de nossa história, lembrada em cânticos e poemas por gerações. Você é louco se não percebe isso.

— Não percebo nada, exceto um marido enganado e um Connor ardendo em cobiça.

— Então está cego. Haverá heroísmo maior do que lutar pela honra da mulher mais bela do mundo contra a cidade mais poderosa do Oriente? Nem Perseu nem Jasão poderiam alegar que suas façanhas foram maiores. Héracles mataria a esposa de novo pela oportunidade de nos acompanhar. Conquistaremos a Anatólia inteira até a Arábia. Figuraremos em histórias pelos séculos que virão.

— Pensei terem dito que seria uma campanha fácil, que estaríamos de volta no próximo outono — arrisquei. Tinha de fazer alguma coisa para deter a torrente inesgotável de suas palavras.

— Eu menti — confessou Luke, dando de ombros. — Não faço ideia de quanto tempo à guerra irá durar. Porém durará menos com sua ajuda. — Olhou para Jason. Seus olhos azuis se avolumavam como a maré contra a qual é inútil nadar. — Os filhos de Troia são célebres pela destreza em combate e a morte deles erguerá nossos nomes até as estrelas. Se não forem, perderão a chance da imortalidade. Ficarão para trás, ignorados. Envelhecerão no esquecimento.

Jason franziu o cenho.

— Você não pode prever isso.

— Na verdade, posso. — Recostou-se na cadeira. — Tenho a sorte de conhecer um pouco os deuses. — Sorriu à lembrança de alguma calamidade divina. — E eles acharam por bem dividir comigo uma profecia a seu respeito.

Eu devia ter sabido que Luke não viria trazendo por única moeda a chantagem deslavada. As histórias o chamavam de polytropos, o homem dos muitos rodeios. O medo tinha em minha boca o sabor de cinzas.

— Que profecia? — perguntou Jason em voz pausada.

— Se você não for a Troia, sua divindade fenecerá por desuso. Sua força diminuirá. Na melhor das hipóteses, será como Rei Ramirez, envelhecendo numa ilha esquecida e apenas com mulheres para sucedê-lo. Ciros logo será conquistada por um reino vizinho, isso você sabe tão bem quanto eu. Não o matarão; por que o fariam? Ele poderá viver o resto de seus dias num canto, comendo o pão que umedecerão para ele, senil e solitário. Quando morrer, o povo perguntará: de quem estão falando?

Essas palavras encheram o cômodo, rarefazendo a atmosfera a ponto de quase não conseguirmos mais respirar. Uma vida daquelas seria horrível.

Mas a voz de Luke era implacável.

— Ele é conhecido hoje apenas porque sua história se mescla à de vocês. Se forem a Troia, sua fama será tão grande que um homem entrará na lenda para sempre apenas por ter-lhes passado um copo. Vocês...

As portas se escancararam numa furiosa chuva de lascas de madeira. Tétis parou no umbral, ardente como uma chama viva. Sua divindade se derramou sobre nós, ofuscando nossos olhos e enegrecendo os portais estilhaçados. Eu sentia aquele influxo comprimindo-me os ossos, sugando o sangue de minhas veias como se quisesse me esgotar. Acovardei-me como se acovardam os mortais.

A barba escura de Luke estava impregnada de fragmentos da porta em ruínas.

Ele se levantou.

— Saudações, Tétis.

O olhar da deusa pousou sobre ele como o da serpente sobre a presa e sua pele refulgiu. O ar em volta de Luke parecia tremer levemente, como por influência do calor ou da brisa. Hedge, no chão, afastou-se para o lado. Cerrei as pálpebras para não ver a explosão.

Fez-se silêncio e por fim abri os olhos. Luke continuava lá, ileso. Os pulsos de Tétis iam ficando brancos. Já não me ofuscava.

— A donzela de olhos cinzentos sempre foi gentil comigo — disse Luke em tom de desculpa. — Ela sabe por que estou aqui; ela abençoa e corrobora meu desígnio.

Era como se eu houvesse perdido parte de sua conversa. Esforcei-me por acompanhá-la. A donzela de olhos cinzentos — a deusa da guerra e das artes bélicas. Dizia-se que prezava a astúcia acima de tudo.

— Atena não tem nenhum filho a perder — sibilou Tétis. Suas palavras ficaram suspensas no ar.

Luke não retrucou, somente virou-se para Jason e disse:

— Pergunte a ela — disse-lhe —, pergunte a sua mãe o que ela sabe.

Da garganta de Jason saiu um som que quebrou o silêncio do quarto. Ele fitou os olhos escuros da mãe.

— O que ele diz é verdade?

As últimas chamas haviam se extinguido nela; só o mármore permanecia.

— É verdade. Porém ele não contou tudo, não contou o pior. — As palavras soavam plácidas como se tivessem sido proferidas por uma estátua. — Se você for a Troia, jamais regressará. Morrerá lá, muito jovem.

O rosto de Jason empalideceu.

— Isso é certo?

Era o que todos os mortais perguntavam primeiro — chocados, descrentes, temerosos. Não haverá exceção para mim?

— É certo.

Se naquele momento ele olhasse para mim, eu me descontrolaria. Começaria a chorar e não pararia mais. Porém seus olhos estavam fixos na mãe.

— Que devo fazer? — ele murmurou.

Um ligeiro tremor perpassou o rosto ainda impassível da deusa.

— Não me peça para decidir — disse ela. E desapareceu.

Não consigo me lembrar do que dissemos depois aos dois homens, de como os deixamos ou de quando voltamos para nosso quarto. Lembro-me, sim, da pele de Jason colada às faces, da palidez intensa de sua fronte. Seus ombros, em geral tão firmes e imponentes, pareciam descaídos. A dor se avolumou dentro de mim, abalando me.

Sua morte. Eu mesmo quase morria só de pensar nisso, mergulhando fundo num céu negro, sombrio.

Você não deve ir. Ensaiei dizer essas palavras várias vezes. Porém tudo o que fiz foi tomar-lhe as mãos firmemente entre as minhas; estavam frias, imóveis.

— Acho que não suportaria isso — disse ele, por fim. Ele fechou os olhos como se não quisesse ver cenas horríveis. Eu sabia que não estava falando de sua morte, mas do pesadelo que Luke descrevera; a perda de seu brilho, o esmaecimento de sua graça. Jason exultava com a própria destreza, com a tremenda vitalidade que exibia à flor da pele. Se não fosse miraculoso e radiante, o que seria ele? Quem seria Jason senão alguém destinado à fama?

— Não me importarei — disse eu. As palavras saíam com dificuldade de minha boca. — O que quer que você se torne não terá importância para mim. Nós estaremos juntos.

— Eu sei — ele murmurou sem olhar para mim.

Sim, ele sabia — mas isso não bastava. O sofrimento era tão grande que ameaçava transpirar por meus poros. Quando Jason morresse, todas as coisas doces, belas e brilhantes seriam sepultadas com ele. Abri a boca, mas já era tarde.

— Eu irei — disse ele. — Irei a Troia.

A cintilação rósea de seus lábios, a chama verde de seus olhos. Naquele rosto não havia nenhuma marca de expressão, nenhum sinal de ruga ou envelhecimento; tudo era mocidade, primavera, ouro e viço. A Morte invejosa beberia seu sangue e rejuvenesceria.

Ele me observava, seus olhos eram profundos como a terra.

— Você irá comigo? — ele perguntou.

A dor infinita do amor e da aflição. Talvez, em outra vida, eu houvesse recusado, cortado os cabelos e chorado, obrigando-o a enfrentar sozinho sua escolha. Porém nesta, não. Ele velejaria para Troia e eu o seguiria até na morte.

— Sim — murmurei. — Sim.

O alívio se estampou em seu rosto e ele me abraçou. Deixei-o me segurar, deixei o encostar seu corpo ao meu tão estreitamente que nada podia passar entre nós.

As lágrimas afluíram e desceram. Acima de nós, as constelações giravam e a lua empreendia lentamente sua jornada estafante. Ficamos deitados, tristes e insones, enquanto as horas passavam.

Quando amanheceu, ele se levantou rapidamente.

— Preciso contar à minha mãe — ele disse. Estava pálido, com olheiras. Parecia mais velho. O pânico despertou em mim. Não vá, eu queria dizer. Porém ele já havia vestido a túnica e partido.

Continuei deitado, tentando não pensar nos minutos que se arrastavam. Na véspera, tivéramos muitos deles; agora, cada um era uma gota de sangue precioso que se perdia.

O quarto se tornou cinzento, depois branco. A cama era fria, grande demais sem Jason. Eu não ouvia som nenhum e aquele silêncio me assustava. É como um túmulo. Levantei-me e friccionei os membros para despertá-los, procurando deter a histeria iminente. Todos os dias serão assim sem ele. Senti um aperto no peito, como o de um grito sufocado. Todos os dias, sem ele.

Saí do palácio desesperado, ansioso para calar meus pensamentos. Cheguei ao pé dos rochedos, dos enormes penhascos de Ciros que se alteiam sobre o mar, e comecei a subir. Os ventos me açoitavam, as pedras borrifadas de água eram escorregadias, mas a tensão e o perigo me davam coragem. Subi cada vez mais, buscando o pico mais traiçoeiro, que antes teria muito medo de alcançar. Minhas mãos, arranhadas pelas rochas pontiagudas, sangravam. Meus pés deixavam manchas de sangue por onde passavam. No entanto era uma dor vulgar e por isso mesmo bem-vinda. Suportá-la era tão fácil que chegava a ser risível.

Alcancei o cume, um amontoado irregular de grandes pedras à beira do abismo, e ali me postei. Uma ideia me ocorrera enquanto subia, ousada e insistente.

— Tétis! — gritei em meio ao vento impetuoso, o rosto voltado para o mar. — Tétis!

O sol agora estava alto no céu; o encontro dos dois já devia ter terminado havia muito tempo. Respirei fundo pela terceira vez.

— Não pronuncie de novo o meu nome.

Virei-me para olhá-la e perdi o equilíbrio. Os seixos rolaram sob meus pés e o vento me empurrou. Agarrei-me a uma proeminência e firmei-me. Ergui os olhos.

Sua pele estava mais pálida que o usual, lembrando os primeiros gelos do inverno. Os lábios repuxados deixavam entrever os dentes.

— Você é um tolo — zombou ela. — Desça. Sua morte insensata não o salvará.

Eu não era tão corajoso quanto pensava; encolhi-me ante a malícia que se desenhava em seu semblante. Entretanto, obriguei-me a falar, a perguntar o que queria saber.

— Quanto tempo ele viverá?

Tétis emitiu um som estranho, como o uivo de uma foca. Só um instante depois eu percebi que aquilo era uma gargalhada.

— Por quê? Quer se preparar para a ocasião? Ou impedi-la? — o desdém transparecia em seu rosto.

— Sim — respondi. — Se puder.

De novo, o som estranho.

— Por favor — implorei, ajoelhando-me. — Por favor, diga-me!

Talvez fosse porque me ajoelhei. O som emudeceu e ela me examinou por um instante.

— A morte de Castor acontecerá primeiro — disse Tétis. — É tudo o que me foi dado saber. Castor.

— Obrigado — murmurei.

Seus olhos se estreitaram e sua voz sibilou como água jogada sobre brasas.

— Não ouse me agradecer. Vim por outro motivo.

Esperei. Seu rosto estava branco como uma placa de marfim.

— Não será fácil como ele pensa. Os Fados prometem fama, mas até que ponto?

Ele tem de preservar ciosamente sua honra. É confiante demais. Os homens da Grécia — frisou bem as palavras — são como cães disputando um osso. Não cedem facilmente a preeminência aos demais. Farei o que for possível. Você também. — Relanceou o olhar por meus braços compridos e meus joelhos pontudos. — Não vá desgraçá-lo. Você entendeu? Você entendeu?

— Sim — respondi com sinceridade. A fama de Jason deveria valer a vida que ele pagaria por ela. Uma ligeira lufada de vento agitou a orla do vestido de Tétis e pressenti que ela estava prestes a desaparecer, a voltar para as sombrias cavernas do mar. Alguma coisa me deu coragem.

— Castor é um bom soldado?

— O melhor de todos — respondeu ela. — Com exceção de meu filho.

Olhou à direita, onde começava o abismo.

— Ele está vindo — ela disse.

Jason surgiu à borda do penhasco e caminhou em minha direção. Logo ele percebeu o rubor em meu rosto.

— Ouvi você conversando — disse ele.

— Conversava com sua mãe — eu disse.

Ajoelhou-se e colocou meu pé em seu colo. Delicadamente, começou a tirar as lascas de pedra de minhas feridas, limpando-as da sujeira e do pó. Rasgou uma tira da barra de sua túnica e pressionou-a com firmeza para estancar o sangue.

Minha mão pousou sobre a sua.

— Você não deve matar Castor — eu disse.

Jason ergueu os olhos, seu belo rosto emoldurado pelo ouro dos cabelos.

— Minha mãe lhe contou o resto da profecia?

— Sim.

— E você acha que ninguém, além de mim, pode matar Castor?

— Acho — eu disse.

— Você pretende roubar o tempo dos Fados?

— Sim.

— Ah! — Um sorriso furtivo perpassou-lhe o rosto; ele sempre amara o desafio.

— Bem, mas por que eu deveria matá-lo? Ele não me fez nada!

Pela primeira vez, senti um resquício de esperança.

Partimos naquela mesma tarde; não havia mais razão para ficar. Sempre obediente aos costumes, Rei Ramirez apareceu para nos dizer adeus. Assumimos os três uma atitude formal; Luke e Hedge já tinham ido para o navio. Escoltados por eles, voltaríamos a Fítia, onde Jason reuniria suas próprias tropas.

Restava só mais uma coisa a ser feita ali e eu sabia que Jason não desejava fazê la.

— Rei Ramirez, minha mãe me pediu para lhe comunicar seus desejos.

Um leve tremor percorreu o semblante do ancião, mas ele sustentou o olhar do genro.

— É sobre seu filho? — ele perguntou.

— Sim, é.

— E o que ela deseja? — perguntou o rei, em tom de cansaço.

— Criá-lo. Minha mãe... — Jason hesitou ante a expressão no rosto do velho rei.

— Bem, a criança será um menino, segundo ela. Quando desmamar, ela virá buscá lo.

Silêncio. Então, Rei Ramirez cerrou os olhos. Pensava na filha, privada ao mesmo tempo do marido e do filho.

— Eu preferia que você jamais tivesse vindo — ele disse.

— Lamento muito — disse Jason.

— Deixem-me — balbuciou o ancião.

Nós obedecemos.

O navio em que embarcamos era veloz, bem construído e tinha uma tripulação experiente.

A tripulação trabalhava com competência e agilidade, o cordame chegava a brilhar com suas fibras novas e os mastros pareciam frescos como árvores vivas. A figura de proa era magnífica, a mais bela que eu já vira: uma mulher alta, de cabelos e olhos negros, as mãos postas à altura do peito em atitude de contemplação. Era bonita, porém de uma beleza serena — mandíbula delicada, cabeleira recolhida exibindo um pescoço esguio. Havia sido pintada com esmero; cada matiz de luz e sombra fora perfeitamente reproduzido.

— Estão admirando minha esposa, pelo que vejo. — Luke se juntou a nós junto à amurada, onde descansou seus antebraços musculosos. — Ela não queria posar para o artista, a quem tive de pedir que a seguisse sem ser notado. Acho que a obra ficou realmente boa.

Um casamento por amor, raro como os cedros do Oriente. Essa circunstância quase me fez simpatizar com ele. Entretanto já tinha visto muitos de seus sorrisos.

Jason perguntou, polidamente:

— Qual é o nome dela?

— Penélope — ele disse.

— Este navio é novo? — perguntei por minha vez. Se ele queria falar da esposa, eu queria saber de outras coisas.

— Inteiramente. Cada pedacinho de madeira, da melhor que Ítaca pode fornecer.

— Com sua mão larga, bateu na amurada como bateria no flanco de um cavalo.

— Gabando-se outra vez de seu navio novo? — Hedge se aproximara. Tinha o cabelo preso atrás com uma tira de couro, o que fazia seu rosto parecer ainda mais afilado.

— Estou.

Hedge cuspiu na água.

— O rei de Argos está hoje mais eloquente que de costume — comentou Luke.

Jason não havia, como eu, assistido ao jogo daqueles dois antes. Seus olhos iam de um ao outro, um leve sorriso encurvando-lhe os cantos dos lábios.

— Diga-me — prosseguiu Luke —, você acha que esse seu humor ferino se deve ao fato de seu pai ter devorado os miolos daquele homem?

— Como?! — espantou-se Jason, boquiaberto.

— Não conhece a história do poderoso Tideu, rei de Argos, devorador de cérebros?

— Ouvi falar dele. Mas nada sobre... cérebros.

— Pensei em mandar pintar a cena em nossos pratos — disse Hedge.

No salão do palácio, eu tomara Hedge pelo cão de Luke. Porém havia algo de especial entre os dois, um certo prazer em se espicaçarem mutuamente que só se admite entre iguais. Lembrei-me de que, segundo alguns rumores, Hedge também era um favorito de Atena.

Luke fez uma careta.

— Acho que não jantarei em Argos tão cedo.

Hedge riu. Não era um som dos mais agradáveis.

Os reis, inclinados sobre a amurada, contavam e recontavam histórias: de outras viagens, de guerras, de competições vencidas em jogos no passado distante.

Jason se mostrou um ouvinte insaciável, fazendo pergunta após pergunta.

— Onde arranjou isto? — apontava para a cicatriz no rosto de Luke.

— Ah! — Luke esfregou as mãos. — Eis uma história que vale a pena contar.

Porém antes preciso ir ter com o capitão. — Apontou para o sol, que já baixava no horizonte. — Logo teremos de parar para pernoitar.

— Eu irei. — Hedge se afastou da amurada e endireitou o corpo. — Eu já ouvi essa história quase tantas vezes quanto a da cama de casal.

— Quem perde é você — gritou-lhe Luke. E, virando-se para nós, disse: — Não liguem para ele. Sua esposa é uma megera, e isso estraga o humor de qualquer um. Já a minha...

— Juro — replicou Hedge da outra extremidade do navio — que, se você terminar essa frase, eu o atirarei pela borda e terá de nadar até Troia.

— Estão vendo? — Luke balançou a cabeça. — Mau humor.

Jason riu encantado com os dois. Parecia ter se esquecido da parte que desempenharam em seu desmascaramento e de tudo o que acontecera a seguir.

— O que eu estava dizendo mesmo?

— A cicatriz — apressou-se a lembrar Jason.

— Ah, sim, a cicatriz. Quando eu tinha 13 anos...

Observei Jason, enredado pelas palavras daquele homem. Ele é muito confiante.

Eu, porém, não queria ser um corvo pousado em seu ombro o tempo todo, predizendo-lhe desgraças.

O sol baixou ainda mais no horizonte e nos aproximamos da costa escura onde ergueríamos acampamento. O navio penetrou no porto e os marinheiros o atracaram no cais para passarmos a noite. Desembarcaram-se comida, camas e tendas para os príncipes.

Ficamos nas instalações montadas para nós, uma tenda diante da qual fora acesa uma fogueira.

— Está tudo bem por aqui? — Luke viera para conversar um pouco conosco.

— Muito bem — respondeu Jason com seu sorriso fácil e honesto. — Obrigado.

Luke devolveu-lhe o sorriso, seus dentes eram brancos contra o negro da barba.

— Ótimo. Uma tenda é suficiente, creio eu. Ouvi dizer que vocês preferem partilhar... quartos e camas.

O rubor e a surpresa tingiram meu rosto. Ouvi, ao lado, Jason conter o fôlego.

— Ora, vamos, não há motivo para vergonha. Isso é muito comum entre meninos.

— Coçou o queixo, observando-nos. — Embora, na verdade, já não sejam meninos.

Que idade vocês têm?

— Não é verdade — gritei. O sangue em minhas faces aqueceu minhas palavras, que ecoaram alto na praia.

Luke franziu o cenho.

— Verdade é aquilo em que os homens acreditam, e eles acreditam nisso a respeito de vocês. Talvez, porém, estejam enganados. Deixem para trás esse boato quando forem para a guerra.

A voz de Jason soou tensa e irritada:

— Nada disso é da sua conta, príncipe de Ítaca.

Luke ergueu os braços.

— Minhas desculpas, se eu o ofendi. Vim apenas desejar-lhes boa-noite e assegurar-me de que nada lhes falta. Príncipe Jason, Percy. — Inclinou a cabeça e voltou para sua tenda.

Entramos na nossa em silêncio. Eu já tinha me perguntado quando isso aconteceria. Como Luke havia dito, muitos meninos se tornam amantes. Porém tais coisas acabam quando ficam mais velhos, a menos que se trate de escravos ou garotos de aluguel. Nossos conterrâneos gostam de conquistar; eles não confiam num homem que tenha sido ele próprio conquistado.

Não o desgrace, ordenara a deusa. E em parte se referia àquilo.

— Talvez ele esteja certo — arrisquei.

Jason levantou a cabeça, estremecendo.

— Não é o que você pensa.

— Eu quis dizer... — crispei os dedos. — De qualquer modo, eu estaria com você.

No entanto posso dormir fora, para que as coisas não fiquem tão óbvias. Não preciso comparecer às suas assembleias. Eu...

— Nada disso. Os homens de Fítia não se importarão. E os outros podem tagarelar à vontade. Ainda assim, serei o Aristos Achaion. O Melhor dos Gregos.

— Sua honra pode ficar manchada.

— Que fique. — Seu queixo se empinou em desafio. — São todos loucos se pensam que minha glória aumenta ou diminui por causa disso.

— Mas Luke...

Seus olhos, verdes como folhas de primavera, encontraram os meus.

— Percy, já lhes dei muito. Isto eu não lhes darei.

Não havia mais nada a dizer.

No dia seguinte, com o vento sul impulsionando nossa vela, fomos encontrar Luke na proa.

— Príncipe de Ítaca — saudou Jason. Sua voz era formal, sem resquícios dos sorrisos infantis da véspera. — Gostaria que me falasse de Connor e dos outros reis. Preciso conhecer os homens aos quais vou me juntar e os príncipes que irei combater.

— Muito prudente, príncipe Jason. — Se Luke notou alguma mudança, não fez comentários. Levou-nos para os bancos ao pé do mastro, sob a grande vela enfunada. — Então, por onde começamos? — Aparentemente distraído, esfregou a cicatriz da perna, mais nítida à luz do dia, nua e enrugada. — Há Travis, cuja esposa nós vamos resgatar. Depois que Piper o escolheu, e Percy pode lhe contar sobre isso, ele se tornou rei de Esparta. Tem fama de bom homem, corajoso em combate e estimado por todos. Muitos reis aderiram à sua causa e não apenas os que estavam ligados por juramento.

— Quais? — indagou Jason.

Luke contou-os nos dedos das largas mãos de camponês: — Groover, Chris, Charles. Os dois Charles, o maior e o menor. — Um desses era o homem gigantesco que eu vira na sala de Tíndaro, empunhando um escudo. O outro, não conhecia. — O velho rei Nestor de Pilos também estará lá.

Esse nome eu já ouvira: velejara com Jasão na mocidade, em busca do Velo de Ouro. Nessa época, já havia passado muito da idade de combater, mas levara para a guerra seus filhos e seus conselhos.

Jason continuava atento, com os olhos sombrios.

— E os troianos?

— O rei de Troia, é claro. Diz-se que tem cinquenta filhos, todos criados de espada na mão.

— Cinquenta filhos?

— E cinquenta filhas. É conhecido como homem piedoso e muito amado pelos deuses. Os filhos se destacam por mérito próprio... Polux, o predileto da deusa Afrodite, é célebre por sua beleza. Mesmo os mais jovens, que ainda não chegaram aos 10 anos, ganharam fama de extrema ferocidade. Há um primo de origem divina que também luta por sua causa, Eneias, filho da própria Afrodite.

— E quanto a Castor? — Os olhos de Jason não se desgrudavam de Luke.

— Primogênito e herdeiro do rei de Troia, favorito de Apolo. O mais vigoroso defensor de Troia.

— Como ele é?

Luke deu de ombros.

— Não sei. Dizem que é alto, mas isso é o que se diz de todos os heróis. Você o conhecerá antes de mim; portanto, você é que me contará.

Os olhos de Jason se estreitaram.

— Por que diz isso?

Luke simulou uma careta.

— Como Hedge sem dúvida diria, não passo de um soldado competente, apenas isso. Meus talentos são outros. Se encontrasse Castor no campo de batalha, não voltaria para dar notícias dele. Com você, é claro, as coisas são diferentes.

Ganhará a mais alta fama por matá-lo.

Minha pele enregelou.

— Talvez eu o mate, mas não tenho motivos para matá-lo — retrucou Jason friamente. — Ele não me fez nenhum mal.

Luke riu como se aquilo fosse uma pilhéria.

— Se todo soldado só matasse quem o tivesse ofendido pessoalmente, Filho de Grace, não teríamos guerras. — Arqueou uma sobrancelha. — Embora essa talvez não seja uma má ideia. Em nosso mundo, eu é que deveria ser o Aristos Achaion, e não você.

Jason não respondeu. Olhava pela borda do navio as ondas ao longe. A luz incidia sobre seu rosto, fazendo-o brilhar.

— Você não me contou nada sobre Connor — observou por fim.

— Nosso poderoso rei de Micenas — disse Luke, recostando-se de novo. — Prole orgulhosa da casa de Atreu. Seu bisavô, Tântalo, era filho de Zeus. Mas sem dúvida você já ouviu essa história.

Todos conheciam o eterno suplício de Tântalo. Tendo cobiçado os poderes dos deuses, esses o puniram mergulhando-o no poço mais profundo dos reinos infernais. Ali, padece fome e sede perpétuas, com comida e bebida quase ao alcance das mãos.

— Sim, ouvi falar dele. Mas nunca soube qual foi seu crime — disse Jason.

— Pois bem, nos tempos do rei Tântalo, todos os nossos reinos eram do mesmo tamanho e os governantes viviam em paz. Porém Tântalo, insatisfeito com seu quinhão, começou a tomar as terras dos vizinhos pela força. Seu território dobrou uma, duas vezes, e Tântalo não se contentava. O sucesso tornou-o orgulhoso e, tendo superado todos os homens que encontrara, quis superar os próprios deuses.

Não com armas, pois homem algum pode se equiparar a eles em batalha. Mas com embustes. Queria provar que os deuses não sabem tudo, como alegam.

— Ele chamou, pois, seu filho Pélops e perguntou-lhe se poderia contar com a ajuda dele. “É claro”, respondeu Pélops. O pai sorriu e sacou da espada. Com um único golpe, cortou-lhe a garganta. Depois, picou o cadáver em pedaços, espetou-os e levou-os ao fogo.

Meu estômago revirou à ideia do ferro trespassando a carne morta do rapaz.

Luke continuou:

— Quando as carnes estavam assadas, Tântalo foi falar com seu pai, Zeus, no Olimpo. “Pai”, disse ele, “preparei um repasto para homenageá-lo e a todos os seus parentes. Porém apresse-se, pois a carne ainda está tenra e fresca.” Os deuses adoram festas e correram ao salão de Tântalo. No entanto, quando chegaram, o aroma da carne assada, normalmente tão delicioso, repugnou-lhes. Zeus não tardou a saber o que havia acontecido. Agarrou Tântalo, pelas pernas e atirou-o ao Tártaro, para que ali sofresse sua eterna punição.

O céu estava claro, o vento fresco; mas, fascinado pela narrativa de Luke, eu me sentia como se estivéssemos à volta de uma fogueira, com a noite descendo sobre nós.

— Zeus então costurou os pedaços do menino e soprou nele uma nova vida.

Pélops, embora fosse apenas uma criança, tornou-se rei de Micenas. Era um bom governante, ilustre pela piedade e pela sabedoria; no entanto, inúmeras calamidades assolavam seu reino. Dizem alguns que os deuses haviam amaldiçoado a estirpe de Tântalo, condenando todos os seus descendentes à violência e à desgraça. Os filhos de Pélops, Atreu e Tieste, nasceram com a mesma ambição do avô. Seus crimes, como os dele, foram terríveis e sanguinolentos. Uma filha violentada pelo pai, um filho cozido e devorado, tudo fruto de sua amarga rivalidade pelo trono.

— Somente agora, graças a Connor e Travis, a fortuna dessa família começa a mudar. Foram-se os tempos de guerra civil, e Micenas prospera sob o governo justo de Connor. Ele conquistou merecida fama por sua habilidade com a lança e sua firmeza no comando. Sorte nossa tê-lo como comandante supremo.

Achei que Jason já não estivesse mais ouvindo. Porém ele se virou para nós, de cenho franzido, e disse:

— Todos nós somos comandantes supremos.

— Sem dúvida — concordou Luke. — Mas iremos todos combater o mesmo inimigo, não é? Vinte generais no campo de batalha poderiam representar o caos e a derrota. — Sorriu. — Você sabe como nos damos bem: acabaríamos por nos trucidar uns aos outros em vez de destruir os adversários. O sucesso, numa guerra como esta, só acontece quando os homens se unem num propósito único, canalizando suas forças para um golpe de lança e não para um milhar de picadas de agulha. Você chefiará os homens de Fítia, e eu, os de Ítaca; mas tem de haver alguém que faça uso das habilidades de cada um de nós. — Apontou elogiosamente para Jason. — Por mais notáveis que elas sejam.

Jason ignorou o elogio. O sol poente lançava sombras em seu rosto, onde os olhos eram frios e duros.

— Vim por vontade própria, príncipe de Ítaca. Acatarei as instruções de Connor, mas não suas ordens. Gostaria que você entendesse bem isso.

Luke balançou a cabeça.

— Os deuses nos protejam de nós mesmos! Ainda não entramos em combate e já estamos brigando por honrarias!

— Eu não...

Luke levantou a mão.

— Acredite-me, Connor sabe muito bem quanto você é importante para sua causa. Foi ele o primeiro a querer que se juntasse a nós. Será recebido no exército com toda a pompa que possa desejar.

Não fora exatamente aquilo que Jason tencionara dizer, mas quase. Fiquei aliviado quando o vigia anunciou terra à vista.

Naquela noite, após o jantar, Jason estirou-se na cama.

— Que acha dos homens que vamos conhecer?

— Eu não sei.

— Estou feliz por Hedge ter ido embora.

— Eu também.

Deixáramos o rei na ponta norte da Eubeia, onde aguardaria que seu exército chegasse de Argos.

— Não confio nele.

— Acho que logo saberemos quem são — disse Jason.

Ficamos em silêncio por um momento, pensando no assunto. Lá fora, a chuva começava a cair de leve sobre o teto da tenda.

— Luke previu que haverá tempestade esta noite.

Tempestade no Egeu, que vem e vai subitamente. Nosso barco estava ancorado em segurança e no dia seguinte teríamos de novo bom tempo.

Jason me fitava.

— Seu cabelo nunca fica assentado aqui. — Tocou minha cabeça, atrás da orelha.

— Acho que nunca lhe disse quanto gosto disso.

Minha pele formigou no lugar onde ele pusera a mão.

— Nunca — eu disse.

— Mas deveria. — Sua mão deslizou para o V na base de minha garganta, sentindo-lhe a pulsação. — E quanto a isto? Já lhe contei o que penso a respeito?

— Não — eu respondi.

— Mas e quanto a isto, já lhe contei? — Sua mão percorreu os músculos do meu peito, aquecendo minha pele. — Contei, não?

— Quanto a isto, sim. — Contive um pouco a respiração ao dizer essas palavras.

— E quanto a isto? — Sua mão pousou sobre meu quadril e desceu pela coxa. — Contei?

— Contou.

— E o que dizer disto? Ah, isto eu não esqueceria. — Tinha um sorriso felino. — Diga-me que não esqueci.

— Você não esqueceu.

— E há isto também. — Agora sua mão era incansável. — Tenho certeza de que lhe contei.

Fechei os olhos.

— Conte-me de novo — eu pedi.

Mais tarde, Jason se deitou ao meu lado. A tempestade de Luke desabara e o tecido grosseiro, aos lados da tenda, se agitava ao seu impacto. Eu ouvia o rumor ininterrupto das ondas se chocando contra a praia. Jason se mexeu e o ar se mexeu com ele, espalhando o doce aroma de almíscar que exalava de seu corpo.

Pensei: É isto o que vou perder. E também: Prefiro matar-me a perder isto. E ainda: Quanto tempo ainda temos?__


Notas Finais


Obrigado pelos comentários e favoritos e por acompanharem essa fic.

Até o próximo...


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