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História A Chuva nos Matará - Capítulo Único


Escrita por: NicholasVernett

Capítulo 1 - Capítulo Único


Conto esta história porque preciso. Sinto necessidade de que de alguma forma as pessoas tomem consciência de que existe algo além daquilo que acreditamos.

O mundo de nenhuma forma é limitado como esperávamos, como nos ensinaram a crer.

Aconteceu quando eu tinha dezesseis anos, morava em uma pequena cidadezinha onde os terrenos eram enormes e havia uma grande distância entre uma casa e outra. Era um bairro em desenvolvimento, a cidade ficava em uma região rural e as pessoas que viviam ali em sua maioria tinham uma educação limitada.

Eu havia crescido na cidade grande, naturalmente, e havia aprendido a viver em torno do computador e através dele eu pesquisava as mais diversas coisas. Até que meu pai tivera a brilhante ideia de comprar uma casa neste lugar, os preços eram bastante acessíveis e lá ele poderia ter uma renda melhor vendendo produtos para os outros moradores, ele pretendia abrir um mercado pequeno, sonhava com o dia em que esta cidade viesse a ser um grande centro e ele fosse o maior comerciante da região.

Eu não acreditava muito nestas coisas, não lhes dava importância. Eu queria internet, queria ter acesso a tudo que eu tinha antes. Ali não haviam fios de telefone nem antenas, ali não haviam bibliotecas, a única coisa que eu tinha para fazer era me sentar na varanda e ficar observando o campo a noite.

Eu não tinha amigos, não tinha com quem conversar sobre os assuntos que me interessavam, meus pais estavam sempre discutindo por causa de dinheiro, ou então comentando coisas casuais, suas vidas eram monótonas e por isto se davam tão bem neste lugar.

Eu havia me tornado uma adolescente revoltada, rebelde sem uma causa, como eles diriam. Acreditavam que me afastar de todo o mundo seria a melhor forma de criar uma boa menina, uma moça recatada que se desse ao valor, que se desse ao respeito.

Eram tão antiquados. Nem ao menos imaginavam que eu não era mais virgem desde o ano passado, não imaginavam que eu soubesse alguma coisa sobre como o mundo funcionava.

Eu sabia muito bem o que queria para a minha vida desde cedo, queria me dedicar a música, eu era fascinada por pianos desde jovem, havia aprendido a tocar através de anos de estudo. Era isto que eu buscava fazer para passar o meu tempo, mas nem isto mais me distraía, eu estava deprimida.

Na noite específica que tudo começou estava chovendo muito. Eu não sabia o que pensar sobre a chuva, se gostava ou não. As vezes era bom, trazia calmaria e nos ajudava a dormir. As vezes eram tempestades que nos deixavam preocupados, nos faziam lembrar de todos os problemas que tínhamos, de todas as coisas que queríamos ter e não podíamos.

Eu estava lá, deitada em minha cama, tentando dormir sem sucesso algum. Perdida em pensamentos, eu buscava encontrar uma solução para os meus problemas. Pensamentos muitas vezes acabam por se tornar problemas que não nos deixam dormir, acabam por se tornar pesadelos bem reais que nos tiram toda a paz.

Era assim que eu me sentia naquele momento, virava de um lado para o outro na cama, buscando encontrar a posição mais confortável.

Por fim, decidi que seria melhor ir para a varanda observar a chuva forte que caía, eu não conseguiria dormir de qualquer jeito.

Meus pais já haviam se retirado há um bom tempo, a casa estava completamente escura e silenciosa, era assim que eu gostava. Cruzei o corredor principal de pés descalços, eu usava apenas um shorts e uma blusa infantil. Por fim abri a porta e fui atingida pelo vento forte que fazia com que as árvores todas dançassem loucamente.

Era bonito ver aquilo, era tranquilizante. O vento fazia as gotas atingirem a cadeira de balanço onde eu estava sentada, a chuva era gelada, aquilo era ótimo para afastar o calor.

Haviam muitas árvores e arbustos no nosso terreno, ao longe me faziam imaginar coisas terríveis, pareciam pessoas se movendo, suas sombras eram enormes. Quando eu me pegava pensando nisto acabava ficando desconfortável.

Não havia lua naquele céu, não haviam estrelas, somente uma torrente sem fim que caía encharcando tudo, os pingos atingindo telhados como se fossem pequenos misseis tentando destruir uma fortaleza.

Naquele momento a única coisa que eu desejava era ter um bom livro para ler, uma boa xícara de café fumegante e um cigarro. Era a combinação perfeita para mim, aquilo era um pequeno pedaço do paraíso, tornava qualquer cenário mais agradável.

Tendo plena consciência de que eu não teria nada do que eu queria, peguei o meu celular e coloquei os fones no ouvido. Apreciar a música enquanto via a chuva caindo era magnífico. Balançava a cadeira para frente e para trás, apreciando uma música que eu gostava muito da banda americana chamada Godhead.

“Aprisionado sozinho

Queimando de dentro para fora

Derrubado pelas mentiras do seu orgulho.”

Eu já não mais ouvia a chuva, apenas sentia o vento forte se chocando contra mim, via as árvores balançando, a sensação que eu tinha era de que eu estava sozinha no mundo, parecia ser a única pessoa acordada na terra.

Eu vivia em uma casa onde não me era permitido pensar adiante, onde inovação era uma palavra pecaminosa, onde meus próprios pais eram meus carrascos.

Eu estava ficando deprimida estando ali naquela noite, a sensação de desespero aumentava lentamente até se tornar insuportável.

“O terror está aqui, além dos seus medos

Um fantasma de sua memória

Sonhos desesperados não podem intervir

O fantasma de sua memória.”

Senti uma sensação estranha de maneira repentina, parecia um barulho externo que não era normal, isto acontece frequentemente quando ouvimos música alta com os fones. Tirei-os e fiquei tentando descobrir se aquilo realmente havia acontecido, a sensação de mal estar apenas aumentava, parecia que alguém me observava. Tudo foi tão rápido, o desconforto foi se tornando medo, evoluiu para um terror tão absoluto que eu estava me sentindo impelida a correr dali e voltar para dentro.

Procurei ao redor com os olhos de que não deseja encontrar nada, olhei para todos os lados. A chuva estava mais forte, um relâmpago clareou os céus e os campos, alguns instantes depois seu trovão foi ouvido, e quando isto aconteceu eu gritei de puro pavor.

A razão disto não era o barulho, mas o que eu havia visto, ou o que eu achava ter visto quando o céu fora iluminado.

Próximo da nossa cerca parecia haver alguma coisa, uma forma sombria que observava a casa, ela simplesmente estava ali, e o pior de tudo era que eu já não conseguia mais enxergar nada naquela escuridão.

Meu coração batia acelerado, eu não sabia de fugia ou se ficava ali, se ignorava ou se dava mais atenção. Eu queria poder apenas colocar os fones de volta no ouvido, mas minhas mãos tremiam.

Eu pensava coisas do tipo: “Ah, quantas vezes você não pensou ter visto algo?” “Essas coisas sempre acontecem quando pensamos há respeito.”

Aquilo havia sido real? Eu não poderia descobrir, a escuridão não me permitia.

Reuni coragem e me levantei da cadeira, esperei para ver se algo acontecia e então corri para dentro tão rápido que apenas a ponta dos meus pés tocavam o chão.

Meu desejo era ir até o quarto dos meus pais, mas eu achava aquilo infantil demais para se fazer, então voltei para o meu. Me atirei na cama, coração batendo forte, respiração pesada, eu não era capaz de esquecer aquilo.

Aquela noite foi uma das mais longas que tive na vida, a chuva não parou, e eu só consegui dormir quando já havia amanhecido.

Poucas horas de sono, meus pais haviam me acordado cedo para tomar café, parecia que nada havia acontecido, perguntaram se estava tudo bem comigo, minha expressão revelava alguma coisa, alguma forma de horror.

Eu lhes disse que estava tudo bem, o que eu poderia dizer? Lá fora o dia não clareava totalmente, ainda chovia muito, ninguém iria dar atenção aos delírios de uma adolescente revoltada.

Naquela tarde, após o almoço fui tocar piano, eu precisava me distrair de alguma forma. Não conseguia dormir, e nem queria. A noite poderia voltar a ter insônia e era melhor estar exausta. Eu não entendia o que estava acontecendo comigo, por que eu dava tanta atenção para aquilo? Por que eu não conseguia me convencer de que havia sido apenas uma ilusão de ótica?

No final da tarde já estava escuro, o sol não havia se revelado naquele dia, embora a vida ali fosse algo deprimente e mórbido ao meu ver, naquele dia tudo parecia tão pior. Eu me sentia afundando cada vez mais naquele oceano de desolação.

Fui até a janela enquanto a mesa era preparada para o jantar, fiquei observando aquele exato lugar na cerca de nossa propriedade. Ao longe eu podia ver as luzes da casa do vizinho que morava em nossa frente, saber que alguém estava vivo era reconfortante.

Ouvi meu pai comentar há respeito de um dos nossos vizinhos que havia desaparecido durante a noite, ele falava com naturalidade.

- Não o encontraram em lugar algum. Parece que amanha caso ele não apareça farão uma busca pelas redondezas. - Disse ele.

- Você está falando sobre aquele bêbado louco que tem o costume de ficar vagando por aí a noite? - Minha mãe perguntou.

Dei uma última olhada pela janela, tudo parecia normal, tão normal quanto poderia ser ali.

Fui caminhando em direção a mesa, queria jantar e ir dormir.

- Sim, esse mesmo. - Ele respondeu.

Ela deu de ombros.

- Vai ver ele está caído em algum canto por aí, bebeu tanto que nem se lembrou o caminho de casa. - Ela disse.

Eu achava tais comentários tão inapropriados, era nítido que não se preocupavam apenas porque o homem era um bêbado. A mesma coisa acontecia quando alguma garota jovem como eu desaparecia, eles davam a desculpa de que provavelmente ela havia se envolvido com algum homem e acabara sendo morta. Simples assim, a culpa era dela.

Me sentei a mesa e comi, tentando ignorar as conversas que eles tinham entre si.

- Esta chuva não para mais, não é? - Minha mãe perguntou.

- Pelo jeito não vai parar tão cedo, isto sempre acontece nesta época do ano. Já está chovendo fazem três dias.

De repente tudo ficou escuro, eu tive a sensação de estar sufocando. Aquilo fora tão assustador que acabei derrubando meu copo de suco ao tentar buscar por alguma coisa. A luz havia ido embora, o único som era o de minha respiração e o da tempestade.

- Maldito vento. - Disse meu pai.

- Isto é um saco, preciso retirar a mesa do jantar e lavar a louça. Eu pretendia deixar a massa do nosso pão crescendo antes de ir dormir.

Eu não falava nada, eles não se importavam, parecia que ia desmaiar. Eu não tinha medo do escuro, mas naquele dia tudo estava me deixando com medo.

- Não se preocupe querida, vou checar se os vizinhos ainda tem energia.

Ele se levantou e caminhou até a porta, vi o seu vulto, meus olhos não haviam se acostumado com a escuridão. A porta se abriu lentamente e então se fechou, ele havia saído em meio a tempestade, e por alguma razão isto me deixava temerosa.

- Querida, me ajude a tirar os pratos. - Pediu a minha mãe. Eu a ignorei, queria ir até a janela para observar o trajeto dele, sentia que algo estava muito errado.

Me levantei da cadeira e fui caminhando até perto da porta, com medo do que possivelmente eu veria. Minha mãe voltou a chamar meu nome, eu não conseguia falar, pelo simples fato de não conseguir formular um pensamento coerente.

Eu não era capaz de me lembrar ao menos como era o que eu havia visto na noite anterior, era muito vago.

Puxei a cortina para o lado e tentei enxergar alguma coisa em meio a escuridão. Mesmo com o céu coberto de nuvens, lá fora parecia mais claro do que ali dentro.

Vi um homem caminhando em direção ao portão distante, ele carregava uma lanterna pequena em mãos, era a única coisa que brilhava em meio àquela escuridão.

- O que foi, meu bem? - Minha mãe perguntou.

- Não é nada. - Respondi num sussurro.

Aquilo já estava perdendo o sentido para mim, começava a acreditar que o culpado de tudo era a minha privação de sono. Eu precisava dormir, precisava descansar e no dia seguinte quando eu acordasse tudo estaria bem.

Fui até o meu quarto tentando ao máximo ignorar aquele medo de qualquer coisa que eu visse, usava a luz do celular para enxergar. Por fim me atirei na cama sem ao menos tirar os sapatos, eu estava cansada, achei que finalmente fosse conseguir dormir.

Duas horas já haviam se passado e meu pai não retornara. Eu ainda não havia conseguido pegar no sono, a tempestade não me trazia nenhuma calmaria, volta e meia algum trovão me fazia pular de susto.

Resolvi ir beber um copo de água e ver se estava tudo bem com a minha mãe. Já na cozinha eu podia ouvir a voz dela vindo do quarto, sua porta estava parcialmente aberta, sua fonte de iluminação era uma vela.

Ela conversava com alguém. “Então ele já voltou.” Pensei, o que era estranho dado ao fato de que eu não tinha ouvido ele chegar. Culpa da maldita chuva e do maldito sono.

Voltei para o meu quarto, esperando conseguir dormir agora que eu sabia que todos estavam em casa, eu precisava me libertar daquela sensação horrível, eu estava enlouquecendo.

Longos minutos se passaram, eu me revirava na cama, sentia calor, ouvia mosquitos fazendo barulho perto do meu ouvido. Resolvi pegar os fones, com a ideia de ouvir música até cair no sono, mas então ouvi um barulho lá fora.

Parecia que alguém tentava alcançar a minha janela, parecia que estava se arrastando pelo chão, meu corpo inteiro gelou. Minha única dúvida era se eu devia sair dali, me manter imóvel, ou ir ver o que era. Depois de quase um minuto ouvindo a mesma coisa, resolvi ficar com a terceira opção. Não era algo muito coerente, mas eu precisava provar para eu mesma que tudo aquilo era loucura.

Lentamente me levantei da cama, tentando ignorar todas as ideias aterrorizantes que passavam pela minha cabeça. Caminhei até a janela sem fazer barulho algum, e acredito ter demorado alguns segundos para finalmente puxar as cortinas e tentar enxergar através do vidro. Tal coisa se provou impossível, eu não conseguia ver nada lá fora, e acabei fazendo algo que não esperava, abri a janela.

Pingos de chuva chicotearam meu rosto enquanto o vento invadia o quarto, as cortinas se movendo me deixavam desesperada, durante instantes apenas observei a extensão do terreno sem ter coragem de colocar a cabeça para fora, por fim o fiz.

No chão, batendo contra a parede, havia algo que me deixou bastante aliviada. Era um galho de árvore que havia sido arrastado pelo vento e conforme era empurrado dava a impressão de ser uma mão batendo contra a madeira.

Acho que durante alguns instantes fiquei em busca de confirmar se aquilo era mesmo verdade, então ri comigo mesma. Eu estava procurando coisas para temer, estava realmente cansada e tudo o que eu precisava era dormir, e foi naquele momento de reflexão que vi algo que me despedaçou e arrancou o sorriso do meu rosto.

Logo ao lado de minha janela havia alguém caído, de maneira letárgica ele buscava se mover, parecia ferido e gemia baixinho de dor. Fiquei espantada, não entendia o que estava acontecendo. Por impulso saltei a janela para ajudá-lo. Meus pés descalços encontraram o barro, a chuva gelada me encharcava enquanto eu me aproximava dele.
Em baixo e ao seu redor havia uma poça escura se espalhando com a chuva, ele já não era mais capaz de se mover. Me abaixei e o toquei, receosa, seu corpo estava gelado. Aquilo no chão era sangue, e isto me deixou desesperada. Virei seu rosto para mim, tentando descobrir quem era, e quando o fiz eu queria gritar, mas a voz me faltou.

Era o meu pai que estava ali, e algo havia o ferido gravemente, ele já estava inconsciente e poderia morrer a qualquer momento. Tomada por panico tentei acordá-lo bruscamente, balancei o seu corpo, tentando entender o que acontecia. Foi então que me lembrei de uma coisa: ele não poderia estar ali fora, estava no quarto com a minha mãe.

Me afastei dele rapidamente, duvidava de minha própria sanidade, não sabia dizer o que era real ou não, novamente, como na noite anterior um relâmpago iluminou o céu e por reflexo olhei para o cercado distante.

Como explicar o que eu vi?

Alguma coisa estava lá. Durante aqueles instantes em que o relâmpago havia iluminado o ambiente, eu pude ver com pouca precisão que havia alguma coisa se movendo lentamente, e não parecia com um homem.

Ver aquilo de novo fez meu coração quase explodir, o medo que senti… é indescritível. Senti vontade de morrer, apenas para não ter mais de estar aqui, apenas para não ter de ver aquilo de novo.

Corri até a janela e saltei para dentro do quarto com certa dificuldade, eu estava em panico, não conseguia nem ao menos gritar ou falar, não conseguia raciocinar. Corri até o quarto de minha mãe e ao entrar vi outra cena chocante, o mundo parecia estar tentando me fazer perder a razão.

Ela estava sentada na cama, duas velas acessas estavam em cima da cômoda e havia uma terceira em sua mão. Ela falava sozinha olhando para o nada enquanto mantinha a outra mão na altura da chama, a pele de seu palmo já estava em carne viva, ela não parecia sentir dor.

Comecei a chorar desesperada enquanto a chamava, mas ela ignorou os meus apelos. Corri até ela e arranquei aquela vela de sua mão, só então ela olhou para mim, ou pareceu tê-lo feito.

- Não adiante você fazer isto. - disse ela baixinho, como se lamentasse ou tivesse medo de falar mais alto. - A chuva vai pegar todos nós, vai pegar… ela traz loucura, você vê? Eu estou com tanto medo… por favor, me mate. ME MATE.

Me afastei dela, ela continuou gritando aquilo e eu não conseguia acreditar no que via. Gritei para que ela parasse, então corri até a porta, eu precisava sair dali.

A única coisa útil que encontrei no caminho para minha defesa foi uma faca que estava em cima da mesa. Abri a porta e corri, corri com todas as minhas forças. Meu objetivo era chegar até a casa de alguém, era encontrar qualquer pessoa que não estivesse enlouquecendo.

Quanto mais eu me aproximava do portão, mais medo sentia. Se aquela coisa realmente estava ali, apenas alguns metros nos separavam. Tentei correr ainda mais rápido, meus pés estavam descalços, eu precisava alcançar o portão.

Nunca havia sentido um pavor como aquele antes, era bizarro, era a sensação do terror e insanidade absolutas, era inexplicável. Aquilo que eu tinha visto, aquela coisa… nada na terra deveria ser daquele jeito, nada poderia ter aparecido de maneira tão grotesca.

Consegui chegar até o portão e logo eu estava atravessando a pequena estrada de terra, ia em direção a casa do nosso vizinho que morava na frente. Não faltava muito para chegar lá, eu tentava me manter em movimento, a qualquer momento eu poderia desabar. Já não sabia mais se o que estava em meu rosto eram lágrimas ou as gotas de chuva, já não sabia se aquilo era um pesadelo ou a realidade. Eu queria gritar, sentia aquilo preso dentro de mim, aquela vontade de escapar, de morrer para isto se fosse necessário. A inexistência era preferível a encarar uma coisa daquelas.

Na casa daquela família não havia luz sequer vindo lá de dentro, me atirei contra a porta da frente e comecei a esmurrá-la em busca de auxílio. Me recusava a olhar para trás, meu maior medo era ter a confirmação de que aquela coisa estava por ali.

Eu bati e bati, nenhuma resposta. Resolvi que entraria de qualquer maneira, eu não poderia voltar. Para a minha surpresa, ao girar a maçaneta descobri que não estava trancada. Cruzei o hall de entrada em busca de qualquer indício de um ser por ali, eu precisava ver alguém que não estivesse totalmente louco.

De um cômodo vinha um feixe de luz por de baixo da porta, foi para lá que fui, sem pensar duas vezes. Ainda empunhava aquela faca.

Abri a porta lentamente, e quando olhei lá para dentro eu perdi as esperanças por completo. O homem estava sentado ao chão, seus pulsos sangravam, a luz da vela iluminava seu rosto em lágrimas, e na sua mão havia uma faca afiadíssima. Porém isto não havia sido o mais tenebroso, pois ao redor dele estavam três corpos, alinhados de maneira a formar uma espécie de triângulo núcleo era ele mesmo. Os três, que eram sua mulher e suas duas filhas, haviam sido mortos a facadas.

Ver aquela cena me paralisou, senti que não havia para onde correr, para onde ir. O que eu poderia fazer? Caí de joelhos no chão, chorando como uma menina, como um bebê, eu soluçava em meio a gritinhos, o ar estava me faltando.

- Shh. - Ele disse para mim. - Não atraía a chuva para cá.

Eu não fui capaz de responder nada, eu estava passando mal.

- Fiz isto por eles, sabe? Eu não queria que tivessem de ver aquela coisa, ninguém deveria ver algo assim. - Ele estava falando desesperadamente, fungava.

- Eu preciso de ajuda. - Foi tudo o que consegui dizer em meio ao choro. - Por favor…

- A melhor ajuda que pode dar a si mesma é pegar essa faca… - Ele dizia isto olhando para mim de forma doentia. - E enfiar no seu coração com tanta força que o cabo não seja visível. Só assim, SÓ ASSIM… você estará livre.

Comecei a chorar ainda mais, me deixei cair completamente no chão, eu não conseguia manter o equilíbrio. Minha visão estava ficando turva, parecia que finalmente eu ia conseguir dormir.

- A chuva nos matará. - Foi a última coisa que eu ouvi antes de apagar. Não sonhei, não tive nenhum devaneio sequer, tamanho era o meu cansaço. Quando acordei, e sim, eu acordei, a luz solar entrava através dos vidros. Parecia completamente inacreditável ver algo assim, nem ao menos chovia lá fora. Tudo estava tão calmo, me parecia que eu era a última pessoa na face da terra.

Me sentei, lentamente, percebendo que eu ainda estava na entrada daquele quarto, de dentro vinha um cheiro horrível, haviam moscas ao redor dos corpos. Eram quatro agora, o homem estava no centro, havia morrido de olhos fechados e o seu sangue estava espalhado pelo chão.

“Então isto realmente aconteceu.” Foi o que eu pensei, desesperada. Vomitei tudo que havia em meu estômago, não conseguia suportar aquela cena. Saí de dentro da casa.

Lá fora o sol brilhava no céu, mal haviam nuvens naquela vastidão azul, mas havia uma faixa de fumaça que subia. A terra estava encharcada, poças de água se formavam em diversos pontos. Do outro lado eu conseguia enxergar a minha casa, ou o que restara dela. O fogo havia consumido o lugar quase que completamente, e eu sabia, de alguma forma eu sabia que minha mãe e meu pai haviam ardido junto com a madeira. O estrago só não havia sido pior porque estava chovendo.

Cruzei aquele campo lentamente, eu não sentia medo quando havia tanta luz, parecia que não havia razões para se preocupar, aquele lugar me inspirava solidão agora, ao invés de medo, era dessolado, eu sentia medo de tentar falar e acabar não escutando minha própria voz.

Acho que ainda estava em choque, sentia uma dor terrível dentro de mim, meus pais estavam mortos, pessoas haviam morrido ali e eu não conseguia encontrar uma explicação, parecia o fim do mundo, eu já não tinha mais lágrimas para derramar.

Caminhei ao redor da minha casa, ou o que restava dela, meus pés estavam cobertos de barro, assim como pedaços da minha perna.

Perto de onde se encontrava a janela para o meu quarto, vi um corpo caído ao chão, coberto por barro e pedaços de capim. Me aproximei, sabendo quem era. Seus olhos estavam abertos, havia sangue misturado a terra em sua boca. Dei um gemido baixinho, não tinha forças para gritar, resolvi me afastar dali pois já não conseguia mais olhar para aquilo.

Durante horas vaguei pela cidade, buscando encontrar uma alma viva sequer. Algumas casas haviam queimado por conta das velas, outras se mostravam intactas por fora, mas em seu interior havia morte.

Todos estavam mortos, em todo o lugar que eu ia haviam corpos, e o mais chocante foi que em noventa por cento dos casos havia sido suicídio ou assassinato por parte dos familiares.

Dentro de algumas destas casas eu voltava a encontrar aquele mesmo símbolo feito com corpos, ver aquilo me deixava tremendo de medo.

Eles haviam visto o mesmo que eu, não é? O pavor os levara a tirar a própria vida, assim como eu havia desejado fazer para escapar. Qual era o significado daquele horror? Por que não podíamos ver aquela coisa sem temê-la?

Eu estava sozinha, era o que eu sabia. Precisava ir embora dali, precisava encontrar um carro e ir para bem longe, mas nem ao menos sabia dirigir. Não haviam ônibus e nem nenhum outro tipo de transporte público.

Peguei algum dinheiro nas casas, me vesti de maneira mais adequada e até mesmo encontrei uma pistola. Poderia ser perigoso o caminho sozinha até a cidade grande, e eu não imaginava o que poderia encontrar lá.

Teria aquela coisa ido até outros lugares para espalhar sua insanidade?

O céu estava laranja, o sol se escondia no horizonte e as nuvens pareciam propositalmente tentar deixar toda a imagem mais bela.

Eu já estava nos limites da cidade, carregava uma lanterna no bolso do casaco para quando anoitecesse. Eu tentava caminhar o mais rápido que eu conseguia, mas já estava cansada, já estava sentindo fome e precisava guardar a comida que eu trazia comigo na mochila.

Foi então que em um momento de mais profundo silêncio eu ouvi um gemido vindo do meio das árvores. Não parecia dor, ou medo o que ele sentia, mas eu não sabia explicar o que era.

Avancei até lá lentamente, quase escorregando ao pisar mo barro, desejando encontrar uma pessoa que estivesse bem, eu precisava conversar com alguém, estava enlouquecendo. Cheguei até a primeira árvore, pousei minha mão sobre ela e coloquei a cabeça por dentre as folhas para tentar enxergar alguma coisa.

Até hoje não sei direito o que vi, mas aquilo me deu forças para correr como uma louca pela estrada durante horas e horas na madrugada.

Como eu poderia descrever o indescritível? Não há elementos neste mundo, não há cores e nem referências que eu consiga utilizar para tentar explicar o que era aquilo.

A única coisa que eu posso dizer, que consigo me lembrar com certeza, era que aquilo não era muito maior do que um ser humano, parecia caminhar curvado. Não, ele não caminhava, parecia se arrastar, não sei ao menos se possuía pernas e pés.

Ele era uma coisa, uma criatura saída dos mais tenebrosos pensamentos humanos, não poderia ter vindo de nenhum lugar nesta terra, não poderia ter vindo de nenhum lugar que fosse do conhecimento dos homens, exceto suas mentes. Ele era verde musgo, ao que me parecia, e nem ao menos olhava para mim, se é que podia olhar para alguma coisa. Os barulhos pareciam acompanhá-lo, ele parecia ser feito de material gelatinoso… não, isto não estava certo, não poderia ser descrito assim, ninguém poderia descrever aquilo.

Ele era a chuva, eu tinha certeza que tinha vindo com a chuva. Era a loucura e o medo visíveis, era o pesadelo.

Apenas me lembro de tê-lo vislumbrado por alguns instantes antes de gritar e correr como louca para longe, desejando nunca mais voltar a me lembrar daquilo. E embora eu tenha conseguido escapar, embora esteja viva até hoje, mais de dez anos depois, eu não consigo esquecê-lo. Não consegui ter uma noite completa e tranquila de sono depois daquilo, não consegui convencer ninguém de que eu havia visto aquela coisa. Achavam que eu era louca e que havia presenciado uma história de suicídio coletivo.

Ninguém jamais acreditaria em mim, e eu sabia que aquilo viria de novo, viria com a chuva, e ninguém poderia nos proteger do mal que ele trazia, do medo. Eu odiava as tempestades, odiava a noite e a escuridão, eu odiava estar viva e não tinha coragem para me matar.

Os nossos mais horríveis pesadelos podem ser reais, o inimaginável e o inconcebível podem tomar forma e nos levar para a perdição. Eu jamais terei paz de novo, jamais poderei me libertar do que vi, pois sei que um dia a chuva nos matará a todos.

 



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