POV Elisa
De nada me adiantava ter TV a cabo. Eu passava os canais centenas de vezes e nada me interessava. Abria vários livros e não lia uma página. Saía de casa, pegava o carro e dava várias voltas pela cidade, mas a garota dos meus eternos pensamentos sempre voltava. Raquel Oliveira é o nome dela. Caso você ainda não a tenha conhecido, é uma adolescente de dezessete anos, de beleza inquestionável, inteligência e personalidade única e com o poder sobrenatural de me fazer ficar desorientada.
Eu não conseguia mais trabalhar direito, não conseguia mais me concentrar nas tarefas diárias. Tudo me levava a pensar nela, a sentir saudade e arrependimento por tê-la abandonado. Talvez eu tivesse sido muito infantil, muito precipitada ao julgar suas palavras como falta de consideração. O que eu estava pensando quando afirmei que ela não me amava?
Claro que não posso garantir os sentimentos alheios, mas eu tinha os meus! E eu sabia muito bem o que eu sentia. Se no começo de tudo foi apenas uma atração pela garota frágil que encontrei no corredor da escola no meu primeiro dia, hoje isso era algo muito maior. Eu passei a amar a Raquel e, por mais que eu buscasse explicações de por que isso foi acontecer, eu nunca encontrava alguma racional.
Aconteceu. Só isso. E eu senti várias vezes que era recíproco. Eu notava sinceridade nas suas falas de ‘eu te amo’ então por que continuava questionando? Talvez porque eu ainda julgava Raquel como uma garotinha, uma criança entrando na puberdade sem controle dos hormônios? Eu seria muito imbecil se pensasse assim. Estávamos muito ligadas desde que nos conhecemos. Eu a vi passar por muitas coisas, inclusive pela quase morte. Eu tive conhecimento do abuso que ela sofreu por parte do pai. Isso me machucava muito.
Eu conhecia seu sofrimento e já não podia fazer nada. Eu não tinha mais meu amor por perto para ser seu consolo, seu bálsamo. Eu não era mais nada para Raquel.
Ou era?
Será que algum dia eu fui?
Ela tinha a Maria Luísa. Cara... eu deveria seguir o exemplo dessa garota e ser determinada como ela. Há dois dias eu fiquei sabendo que ela estava saindo da escola. Eu não sabia muito bem os motivos, mas de uma coisa eu tinha certeza: ela iria para mais perto da Raquel. Se havia alguém capaz de amar essa menina como eu, esse alguém era a Maria.
Só que Luísa era quase da mesma idade que a Raquel, sua melhor amiga, tinham uma história juntas, mesmo que breve. Maria Luísa poderia se dar ao luxo de mudar de cidade para ficar perto da garota que amava. Já eu não. Eu não tinha mais idade para essas aventuras românticas.
Não era velha, tinha ainda vinte e sete anos, mas ainda eram dez a mais que a Raquel. Eu não era mais uma juvenil disposta a dar a volta no mundo para viver um grande amor. Eu queria um amor verdadeiro sim, mas em casa, na paz e tranquilidade de nossas vidas. Queria alguém para dizer bom dia ao acordar, para dar e amor e carinho diariamente. Eu queria sentimentos puros e trocas de carícia. Eu não queria me arriscar.
Não mais.
Não gostava de ficar pensando nessas coisas porque sempre me levava a pensar em outras e em outras, em outras, em outras...
Entretanto eu estava assim nesses últimos dias desde quando a Raquel retornou para a sua atual cidade. Eu pensava nela a cada instante. Eu sentia saudade a cada instante. Eu queria ter lhe desejado um feliz aniversário no último domingo, mas não pude por orgulho. Eu não era a mulher ideal para ela, pisava muito na bola.
E, mais uma vez, com essas coisas na cabeça, mergulhei no passado. Em lembranças que eu gostaria muito de esquecer.
♀♀
Era como se estivesse me assistindo em terceira pessoa. Eu, na varanda de casa tomando um chocolate quente numa noite fria de inverno esperando a primeira pessoa que despertou em mim o sentimento mais terno que um ser humano pode sentir.
Olhava periodicamente para baixo a fim de ver a pessoa que eu tanto queria chegar. Quando ela tocou a campainha abandonei minha xícara na mesinha e desci com um cobertor quentinho grudado ao corpo para atendê-la.
— Renata. — Recepcionei-a com um enorme sorriso. Sua presença me aquecia naquele frio.
— Olá, Elisa. — Entrou e me beijou com carinho.
Eu tinha vinte e três anos na época, recém-formada, estudando para a pós e trabalhando no meu primeiro emprego. Parecia que eu tinha tudo o que queria. Minha família sempre morou longe de mim desde que iniciei os estudos, eu me sentia muito sozinha, mas depois que comecei a namorar a Renata eu me senti mais completa.
Estava muito apaixonada, muito envolvida naquela relação. Renata era a mulher dos sonhos, me sentia uma sortuda por tê-la nos meus braços. Eu a amava mais do que ela podia imaginar.
— Qual o programa dessa noite? — ela perguntou com a animação de sempre.
— Um filme bem meloso com direito a um achocolatado quentinho e minha adorável companhia para evitar o frio.
— Hum... Você sabe que eu não curto muito essas coisas muito paradas, mas não posso resistir a sua companhia nessa noite.
Sorri com felicidade e fomos para a sala. Coloquei um filme para assistirmos enquanto abraçava minha namorada. Depois de uns quinze minutos, senti seus lábios quentes e delicados traçarem caminho no meu pescoço. Eu me arrepiava todinha com seu toque. O final daquela noite eu já podia imaginar; desliguei a televisão e a beijei com toda a paixão que sentia.
Passamos mais aquela noite juntas e eu acordei com a mulher que mais amava ao meu lado. Eu só sabia sorrir perto dela. Me arrumei para ir trabalhar e deixei Renata dormindo com um bilhete meu ao lado explicando que tive que sair cedo.
Na escola eu tinha a Julie como minha amiga. Sabia que ela gostava de mim, mas nunca lhe dei esperanças. Ela sabia que eu tinha namorada. Entretanto um dia ela fez o que eu nunca imaginei que ela faria: se declarou para mim.
Fui gentil e disse que nada poderia acontecer entre nós. Eu era comprometida e muito mais nova que a bibliotecária. Bem, a Julie compreendeu, mas meses depois saiu da escola. Talvez para me esquecer, talvez para trabalhar num lugar melhor ou os dois.
Ela era minha amiga, senti sua falta, mas ainda tinha Renata ao meu lado. Eu nada tinha que reclamar dela, a não ser que minha namorada tinha um espírito de adolescente inexplicável. Era três anos mais velha que eu, contudo parecia ser uma jovem do ensino médio. Seus sonhos envolviam as aventuras mais loucas e impossíveis do mundo. Seu plano era que, depois que nos casássemos, viajássemos o mundo inteiro e vivêssemos experiências inesquecíveis.
Parecia que ela não entendia que já era bem marcante para mim as vezes que a via dormir no meu colo, seus beijos apaixonados... Para mim, isso sim era uma verdadeira aventura.
Comecei a ter problemas com relação a isso quando Renata se tornou professora de judô numa academia. Ela amava esportes que envolviam ação e nada de calmaria. A apoiei bastante no início, ela estava feliz e eu também.
Nunca fui ciumenta demais, mas depois de dois meses percebi que Renata estava diferente comigo, mais distante. Quando ficávamos juntas parecia que tudo era superficial. Como se eu já não fosse mais tão importante assim. Ela sempre falava do seu dia, de como era legal treinar as pessoas na academia e como gostaria muito de algum dia competir fora do Brasil. E me incomodava muito o tanto que ela falava de uma outra mulher do seu local de trabalho, uma aluna.
Eu escutava pacientemente e sempre falava também do meu dia. Mas nada na minha rotina era tão movimentado como a rotina da Renata. Minha vida era muito pacata perto da dela. E, já não bastando as críticas dela sobre a minha profissão “paradona”, tinha que ficar escutando nos nossos encontros ela falar de outra. Até o dia em que eu me senti irritada e disse:
— Você parece muito interessada nessa sua aluna do judô. Por que não para de reclamar do que eu faço e deixo de fazer e vai lá se aventurar com ela?
Como resposta tive:
— Quer saber, Elisa, você tem razão. A angélica sempre topa tudo o que eu proponho. Nunca que ela aceitaria viver como você, na comodidade; seus programas só envolvem coisas chatas e sem emoção. Cansei de ir ao cinema! Eu quero viajar, eu quero viver a vida! Qual é? A gente ainda é bem jovem, se movimenta mais, Elisa!
Disse isso e foi embora.
Fiquei muito triste e chorei por duas noites seguidas. Depois pensei em ligar e liguei. Ela não me atendeu. Dei um tempo, ela poderia estar magoada ainda. Só que se passaram meses e eu não tinha mais notícias suas. Quando finalmente descobri seu paradeiro, ela já estava noiva da tal Angélica, vivendo todas as aventuras românticas que tanto queria.
Ela simplesmente me largou sem explicações. Não chegamos nem a terminar o relacionamento. Eu pensava que aquela era só mais uma briga de casal, mas não, naquele dia eu vi nosso fim e nem me toquei. Não teve consideração para comigo e foi embora.
Me culpei por muito tempo por esse término, mas aprendi a superá-lo.
Quando me apaixonei novamente eu pensei que as coisas poderiam ser diferentes mesmo sendo mais velha que a Raquel. Entretanto eu ainda era a mulher de vida pacata e sem emoção. Eu não tinha o espírito juvenil da minha ex. eu nunca encontraria alguém disposto a ficar comigo vivendo minha amada rotina de pedagoga.
Isso me deixava muito infeliz. Estava vendo a história se repetir outra vez. Renata encontrou em Angélica a mulher aventureira que queria, assim como a Raquel encontrou na Maria Luísa uma garota sempre disposta a tudo por ela.
E onde eu ficava nessa história toda? O meu amor contava para alguma coisa? Eu pensava que a Julie poderia ter chances comigo depois de tudo isso, mas não a amava. Eu havia tentado ficar com ela pra esquecer a Raquel, mas terminou tudo errado quando fomos vistas. Raquel ficou muito chateada e quase se matou por isso.
Era extremamente frustrante viver assim, encontrando amores e os perdendo logo em seguida.
Mas eu não podia mais passar tantos dias sofrendo por essa garota. Precisava superar essa dor outra vez e sabia muito bem como: me dedicando ao trabalho.
Eu sabia bem o que fazer. Tinha uma boa formação, mestrado e estava terminando o doutorado. Eu não estava limitada a uma escola de bairro mesmo amando trabalhar com crianças e adolescentes diretamente. Poderia visar algo maior. E era isso que faria. Iria atrás de outro emprego, de outros ares. Estudaria mais. Tinha capacidade.
O processo seria longo e doloroso, mas eu precisava deixar Raquel no passado. Ela encontraria felicidade com a Luísa. Elas até que eram fofas juntas. Maria Luísa nunca a machucaria, eu cria. Raquel a amaria como um dia disse que me amou.
Sim, eu tinha que acreditar nisso.
Tinha também que preencher minha mente com outros pensamentos. Tinha que ser mais feliz. Só não sabia como.
Ainda na minha cama, como o controle remoto ao lado, desliguei a televisão e abracei as pernas sentindo as lágrimas molharem meu rosto. Queria muito que aquela fosse a última vez que eu chorasse pela Raquel, por sentir sua falta, mas sabia que não seria.
Sabia que teria mais uma noite mal dormida por estar pensando a todo segundo naquela garota. O que eu mais queria era poder tê-la ao meu lado, bem abraçadinha a mim enquanto eu sussurro o quanto a amo e a quero bem. Era só um desejo impossível de se tornar realidade.
Me levantei da cama, já de pijama, foi até a cozinha beber um copo de água e em seguida lavei meu rosto no banheiro, o que não adiantou muito já que logo voltei a chorar. Essas crises de choro faziam eu me questionar se isso poderia ser considerado coisa de adolescente.
Tinha vinte e sete anos, já era bem grandinha e de certa forma experiente, por que então estava chorando tanto por alguém? Ok, não podemos controlar o coração, mas eu era racional, certo? Eu deveria ser mais forte que meus sentimentos?
Errado.
E, naquela noite, eu tive mais uma vez a certeza que tinha todos os dias: eu amava muito, sem dimensão, sem explicação e com enorme fervor Raquel Oliveira.
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