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História A Diferença de Sara - Capítulo Único


Escrita por: Vedrin

Notas do Autor


"Acho que sou mesmo diferente dos outros, não é?"

Capítulo 1 - Capítulo Único


Helen. Era o seu nome, mas ela não sabia. Não sabia, pois, sua mãe havia lhe trocado o nome por Sara. Por tantos anos, Helen havia procurado sinais de sua família biológica, mas tudo que sua mãe adotiva lhe dizia era que eles a haviam abandonado pouco antes de fazer dois anos de idade. “Era apenas medo de que eu a deixasse” – pensou. Não conseguia acreditar que sua família a abandonara, pois segundo todos de sua “segunda família”, Helen era uma garota linda e não dava trabalho algum. “Bem, que eu era linda, as fotos comprovam”, pensou novamente enquanto tentava esboçar um sorriso com a boca já torta.

Infelizmente, os esforços de Helen haviam sido em vão. Estava velha, doente e agora deitada em uma cama de hospital esperando apenas o momento de morrer. Estava com câncer em estado terminal e seu corpo estava completamente debilitado. Seus cabelos, antes pretos e volumosos, estavam brancos e rasos. Sua pele negra, sempre hidratada agora estava murcha, desenhando seus ossos e lhe presenteando com uma aparência ainda mais velha e raquítica do que a idade lhe proporcionava. Seus olhos escuros e profundos lhe pareciam ainda mais profundo com as olheiras visíveis ao seu redor, não mais tão visíveis e brilhantes como antes.

Nos primeiros dias que descobriu a doença, tinha certeza de que a superaria. Sempre fora uma moça bastante otimista, confiando que as coisas dariam certo no final. E às vezes, isso realmente acontecia. Helen tentava esquecer ao máximo de que a vida lhe parecia mais um jogo de azar, onde nem sempre os dados dão doze. Era uma característica marcante dela, mesmo que sempre lhe dissessem o contrário, mesmo que sempre acontecesse o contrário. Mas então os dias foram se passando, a doença progredindo, a quimioterapia roubando-lhe a paz, alegria... e os seus cabelos volumosos. “Eles crescerão novamente, Charles”. Foi o que ela disse quando fez a primeira sessão e seu irmão havia encontrando um grande chumaço de cabelo no ralo do banheiro.

Logo vieram as dores. A quimioterapia foi destruindo o seu corpo pouco a pouco, enquanto dentro de si a doença lutava com todas as forças para permanecer. Logo se viu mais fraca do que ela, e foi assim que precisou parar em uma cama de hospital. Seus esforços mentais e físicos pareciam ser em vão. A dor lhe alcançava, o medo e o pessimismo. Mas não se deixou vencer, lutou e continuava lutando, não querendo se dar por vencida. Mesmo quando Charles, seu irmão, morreu antes que ela atropelado por um garoto de dezessete anos. Ir ao seu funeral fora uma tortura, pois havia acabado de fazer uma sessão de quimioterapia.

Embora sentisse muita dor física, a maior dor era dentro de si. Helen nunca havia encontrado nenhum resquício de sua família biológica. Havia dedicado anos procurando, investigando, tirando fotos e comparado arquivos. Tentou buscar por sua família a qualquer custo e superava qualquer obstáculo. Conseguiu até driblar sua velhice e doença por algum tempo. O pouco que conseguira, agora estava cheio de poeira em uma caixa embaixo da sua cama. Não conseguira adicionar informações novas. Agora estava ali, nos seus últimos estágios de vida, mantendo esperanças de que, de alguma forma, alguém de sua família, se é que ainda havia alguém vivo, lhe encontraria e apareceria para lhe dar o primeiro e último adeus. Mas seu otimismo agora, no fim de sua vida, definhava ao mesmo tempo que seu corpo.

Pouco a pouco, Helen começou a ver, ouvir e enxergar cenas de sua vida. “Então era verdade”, pensou. Estava extasiada ao saber que, no fim da vida, as pessoas realmente reviviam pedaços dela, e estes passavam novamente diante dos seus olhos. Era engraçado. Já passara várias vezes por momentos que quase morrera, mas em nenhum deles vira e sentira coisa semelhante. Talvez aquilo soubesse exatamente o momento de morte de cada pessoa e se apresentasse para ela somente naquele instante, naquele curto período de tempo. Estava certo: ela estava morrendo e não lhe demoraria muito.

Fez o máximo de esforço que conseguiu para prestar atenção a tudo aquilo que lhe acontecia. Tentou focar em detalhes, detalhes que lhe fizessem sorrir. Então, em meio a algo enevoado, ela viu a si mesma com seis anos de idade. Seu vestidinho rosa lhe caía bem naquela época, era um dos poucos vestidos que tinha e que usava somente em ocasiões especiais, como aquela. Se lembrou exatamente da sensação de fazer a primeira formatura, o que lhe daria acesso livre à primeira série do ensino fundamental. Era um passo incrível, e ela estava emocionada. Foi então que viu Carol, sua inimiga. Na verdade, ela não sabia porque tinha uma inimiga, mas sabia que tinha raiva de Carol, e para isso havia vários motivos. Carol é chata e má, porque ria do seu cabelo crespo. Ria da sua cor, ria de como seus dentes eram brancos em meio a seu rosto negro.

Carol estava com um vestido rosa também, mas o dela tinha lantejoulas e brilhava mais que o de Helen. A menina branca veio até ela e riu.

“Você tá mais engraçada hoje, Helen. Tá parecendo uma macaca que achou um vestido bonito”.

Os olhos de Helen encheram-se de lágrimas. Não sabia o que responder e apenas balançou a cabeça.

“Porque a sua mãe é branca e bonita e você é desse jeito? Era pra você ser branca e bonita também. E o cabelo da sua mãe nem é pixaim como o seu”.

Helen não aguentou e saiu de perto. Atravessou o pátio correndo, onde encontrou sua mãe do outro lado. Ela havia dito para Helen não se preocupar, que as pessoas eram diferentes e que um dia elas deixariam de ser idiotas. Para a garota de apenas seis anos, isso não tinha lá muito sentido. Apenas depois que chegou aos seus doze anos foi que descobriu o significado dessas palavras. Com a ajuda de João e Michele. Eles eram mais idiotas que Carol. Helen gostava de João, mas Michele era a sua irmã e implicava com ela.

Todos os dias, ela conversava com João e os dois eram da mesma turma. Então chegava Michele, que era um ano mais velha que ele e toda vez que os encontrava, fazia piadas com ela.

“Ei, porque você não usa maquiagem pra ver se dá uma corzinha pra você?”

“Nossa, como seu cabelo tá quieto hoje. Você esqueceu de usar ele pra lavar a louça?”

“Ai, você é muito escura. Achei que hoje era dia de eclipse do sol.”

“Sai daqui escrava! Porque não vai buscar um copo d’água pra mim?”

“João, porque tá conversando com ela? Ela é tão... negra!”

Mas João não parecia tão idiota. Ele dava atenção pra Helen, e era um dos poucos amigos com quem ela sempre conversou bastante sobre a vida, embora ele saísse de perto toda vez que Michele aparecia. “Tudo bem, acho que é porque ele detesta quando fazem piadas comigo. Aí como ela é irmã e ele não pode fazer nada, é melhor sair mesmo”. Aos poucos, Helen começou a se aproximar mais de João e, pouco a pouco, se apaixonou por ele. Ele não era muito bonito, mas isso não era tão importante. Ele era legal, gostava de conversar com ela, lhe dava atenção e os dois já compartilhavam muito sobre a vida. Se fosse ter namorado alguma vez na vida, seria ele. Mas... ele era muito tímido, então teria que ser ela a fazer o pedido. Não seria um problema, pois eles já conversavam sobre tudo mesmo. Porque não sobre o seu grande amor? “Se eles somos amigos, podemos conversar sobre qualquer coisa”.

Foi então que chegou o grande dia. Era o último dia de aula, e a turma havia planejado uma festinha para comemorar o final do ano. Helen estava bastante otimista e seria o momento perfeito pra se declarar. A festa aconteceu normalmente, mas Helen não conseguiu comer nenhum doce ou salgado. Comeu pouco do bolo, pois estava ansiosa. Mas daria tudo certo. Ele com certeza sentia o mesmo, mas não tinha coragem de falar. Foi então que, no finalzinho do evento, Helen saiu da sala e se sentou num banquinho em frente. As pessoas ainda estavam comemorando lá dentro, quando João, saiu e fez o que sempre fazia quando a via sozinha: ia ao seu encontro. Ele sentou no banco e Helen sentiu, pela primeira vez, o que descobriu anos depois serem borboletas no estômago.

“Tudo bem, Sara? Porque está aqui sozinha? ”

“Eu... vim tomar um ar.”

“Ah, certo. Posso ficar aqui com você? ”

“Sim. Inclusive... eu queria lhe dizer uma coisa.”

Ele olhou direto nos seus olhos. As borboletas voaram ainda mais ao dar de cara com aqueles olhos verdes. Eram... diferentes, bonitos. Mesmo que ele não fosse tão bonito, ela com certeza gostava dos seus olhos e mais ainda dele.

“Diga!”

“Tá certo.”

Não conseguiu dizer. Ficou em silêncio por um tempo. Nunca havia sentido algo tão dramático em sua vida, algo que com certeza esperava sentir todas as vezes que o visse. Seu coração estava tão acelerado que colocou a mão na boca, temendo que este saísse por ela.

“O que houve? Você parece nervosa. ”

Ela pensou então que se dissesse de uma vez, seria mais fácil. Juntou então toda coragem e ar que conseguiu e abriu a boca:

“Eu estou apaixonada por você, João! Quer namorar comigo?”

Seu otimismo então foi nas alturas. Ao falar isso, seu corpo estava trêmulo, sua fala embargada, seu coração quase enfartando, as borboletas enlouquecidas dentro de seu estômago. Mas ele não poderia recusar. Eram muito próximos e com certeza ele gostava dela também. Imaginou então uma sequência de eventos, onde ele colocaria a mão por trás de sua cabeça, pronunciando um sim e a puxando mais para perto de si até seus lábios se tocarem e ela dar seu primeiro beijo com o garoto que mais amava no mundo.

Ela viu seus olhos verdes estavam fixados nos seus, mas a mão dele não estava por trás de sua nuca. A expressão deles nem era de feliz. O que seria? Estaria nervoso assim como ela? Ele era inexperiente assim como ela? Mas era só se lembrar das novelas que passavam todos os dias, com aqueles beijos cinematográficos e belos. Não precisava de experiência. Porque ele estava então pensativo daquele jeito? Ela não recusaria um beijo dele, de forma alguma.

“Sara, eu... estou... sem palavras. ”

“Mas... diz alguma coisa!”

“Eu... eu não gosto de você.”

Helen não entendeu. Era tão claro, eles eram tão próximos, por que não ficar juntos? Se sentiu burra. Mas, por qual motivo? Eles compartilhavam tanto a vida um com o outro, ele era tão atencioso, tão dedicado que parecia... Não, pra Helen não fazia sentido e mais parecia uma mentira de mal gosto.

“Por quê? ”

“Bem, é que... Você é diferente, Sara. Somos diferentes em vários aspectos. ”

“Não, não somos. João, a gente se conhece. Por que não?”

“Porque... Você é diferente, Sara. Eu até gosto de você, mas... Não poderíamos nunca namorar. Somos muito diferentes um do outro. Você é negra... E tem esse cabelo... Desculpe!”

Foi naquele momento então que ela compreendeu as palavras de sua mãe. Mas foi uma das piores verdades que lhe haviam jogado na cara. Na verdade, elas já estavam ali. Estavam na sua mãe, na sua escola, nos seus amigos, no seu melhor amigo. Elas estavam ali o tempo inteiro, mas talvez Helen não quisesse enxergar. Ela sentiu a dor, não de uma, não de duas, não de três. Não. Ela sentiu a dor de doze anos. Doze anos de diferença com o mundo. Doze anos com seu cabelo pixaim, doze anos sendo uma filha negra de uma mãe branca. Era diferente, e por isso todos deviam lhe odiar, ou achar que era algo bizarro do resto. Mas seus olhos eram iguais aos dos outros. Não em cor, mas em lágrimas. Estava chorando, e não havia ninguém que pudesse lhe consolar, pois era diferente. Ninguém ali sentia a mesma dor que ela, ninguém entenderia o motivo de seu sofrimento. Então decidiu correr. Deixou João e correu, correu da escola, correu de sua mãe, correu para sua cama e seu travesseiro, forrado com uma fronha branca, foi atirado com toda a força que consegui reunir na porta.

Agora, na cama de hospital, seus olhos novamente estavam cheios de lágrimas. Lembrou então que a experiência dolorida, não havia ferido o seu otimismo. Na verdade, impulsionou, pois sabia que, se havia nascido, sua família deveria ser igual, ou ao menos parecida. Eles seriam os únicos que a compreenderiam. Claro, ela conhecia outras pessoas que tinham a mesma cor que ela, mas sempre seria diferente em algum aspecto. Mas sua família biológica não. Tinham o mesmo sangue correndo em suas veias. Talvez fossem difíceis de encontrar, mas se ela fosse persistente... se ela conseguisse se esforçar um pouco, era certo que os acharia.

Então, outras cenas se desenrolavam em sua cabeça. Lembrou de quantas vezes foi discriminada por sua cor e experimentou o pior que se pode ter no ser humano. Rebaixada, tratada como inferior, não deixou com que isso lhe parasse. Não avançou muito profissionalmente, sendo uma empregada doméstica por quinze anos e auxiliar de serviços gerais por mais uns quinze. Não conhecia muito das letras, nem dos cálculos e muito menos das ciências. Mas dentro de si ainda lhe restava o otimismo, se achava diferente, mas não deixaria que isso a fizesse pior que outras pessoas. Afinal, pior eram aqueles que se faziam superiores sem ser e pisavam nos outros usando argumentos falsos. Helen não sabia, mas era exatamente essa experiência que lhe deixava otimista. Otimista não nas pessoas, mas que um dia alguém reconhecesse que ela não era inferior a ninguém, nem mesmo que fosse a sua família biológica. Agora estava ali, na cama deitada e doente. O câncer, uma doença que não se importava com cor ou outra diferença se instalava em todos. A morte, outro fator de igualdade, reunia todos para prestar homenagens. Ela sabia que, estava por fim deixando então de ser vista como inferior.

Foi então que ela veio. Não era visível, audível e nem palpável. Se manifestou como uma dor, uma dor forte em todo o seu corpo. Os últimos ecos de sua vida reverberavam em sua mente, como se batessem em cada osso do crânio e ecoassem de volta para o seu corpo. A dor foi ficando mais forte, seu esforço pra lutar mais fraco. Afinal, estava sozinha. Ali, no leito de morte, não havia ninguém para lhe prestar homenagens. Talvez fosse inferior e diferente dos outros no final das contas. Nem mesmo um enfermeiro. Por um momento, achou que todo o seu otimismo seria jogado por água abaixo..

Então a porta abriu. Sua visão embaçada não conseguiu discernir, mas tinha que tentar. Era a última pessoa que veria em toda a sua vida, era a pessoa que havia ido lhe prestar homenagens. A vida não era tão cruel então. A dor continuava aumentando e Helen sabia que tinha que se esforçar pra se manter viva por mais alguns segundos, algo suficiente apenas para ver seu homenageador. As lágrimas corriam soltas pelo seu rosto, enquanto via aquele vulto lento se dirigir até a sua cama. Quis gritar para ele se apressar, mas já não tinha voz e a dor lhe impedia de fazer qualquer movimento brusco. Esperou então, fazendo todo o esforço possível. Ele chegou o suficiente para que ela conseguisse ver algo nítido: era um senhor já de idade. Branco, não tinha condições de ser alguém de sua família biológica, e muito menos da adotiva, pois da segunda, todos estavam mortos. Estava errada, seu otimismo em encontrar sua família não resultou em nada. Quis, por fim, se concentrar naquele senhor.

Ele se inclinou na direção do seu rosto, mas ela não reconheceu de primeira. Olhou várias vezes, já sentindo o seu corpo ir embora. Ele sorriu, e então fixou os seus olhos verdes no dela. Um tremor lhe passou pela espinha ao dar de cara com aqueles olhos. Ela os conhecia muito bem, e nunca havia se esquecido. Representavam alegria e dor naquele momento. Helen, quase os perdendo pela ceifadora da morte, tentou dar mais uma bela olhada neles. Então, seus ouvidos despertaram do som hipnotizante dos aparelhos. Se abriram para palavras, o que ela já não ouvia a dias. Palavras roucas, saídas de um velho, mas um velho muito importante para ela.

“Sara, você é linda, e sua cor te dá um charme ainda mais especial. Eu quero sim namorar com você! ”

Ela ouviu suas últimas palavras, pois nesse momento a vida deixou seu corpo magro e debilitado. Mas não sem que ela desse um último sorriso, e este ficou estampado em seu rosto, mesmo durante o seu velório e enterro. No fim das contas, Helen era realmente diferente. Mas não por sua cor, por seu cabelo, sexo ou condição financeira. Não. Helen era diferente por ser otimista, e no seu último jogo, os seus dados deram doze. Ela nunca soube se seria diferente caso eles tivessem dado dois, mas jamais achou que essa situação fosse possível. 


Notas Finais


"Sim. Agora já não acho. Eu tenho certeza. Sou diferente, e isso me faz ser igual."


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