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História A divida - O inicio do meu calvario


Escrita por: tiojujuba

Notas do Autor


essa estoria tem um tom mais sombrio que a minha estoria anterior, espero que gostem

Capítulo 1 - O inicio do meu calvario


Eu caminhava, envergonhado e cabisbaixo olhando para os meus pés, entre aquele bando de autoridades e seus convidados com a sumária tanguinha vermelha, quase uma calcinha, e um pequeno avental branco rendado que, pela transparência, deixava entrever meu sexo mal acomodado. As bebidas distribuídas nos copos que estavam sobre a bandeja que eu carregava, chacoalhavam até entornar, pois meus braços e mãos tremiam como se eu estivesse sob o efeito de uma febre terçã. Meus olhos estavam úmidos, e eu me esforçava para engolir o choro, temendo que minha atitude voltasse a provocar a ira daquele homem.

E pensar que esse meu calvário começou a pouco mais de duas semanas, num final de manhã de domingo, bastante quente para aquele início de primavera, depois de um simples acidente de trânsito onde, infelizmente, meu pai colidiu nosso carro, já bastante rodado, contra o para-choque traseiro da picape do delegado regional da pequena cidade do interior onde moramos. Talvez o desfecho tivesse sido outro se meu pai, na ocasião, não tivesse acabado de sair de um bar onde costumava jogar pebolim com os amigos, e tomado uns copos de cerveja. Ele não estava embriagado, pois seu caráter não se coadunava com esse tipo de comportamento, mas para dar importância aos pequenos estragos que a colisão provocara, mais no nosso carro do que no para-choque da picape e, querendo fazer valer todas as prerrogativas que seu cargo lhe atribuía, o delegado elevou aquele incidente banal ao nível de um crime atroz, ao perceber que o hálito do meu pai rescindia a malte fermentado. Fomos notificados do ocorrido por meio de um policial civil que apontou na entrada da rua com a sirene da viatura ligada, numa velocidade compatível ao de uma perseguição a criminosos, chamando a atenção de toda a vizinhança. Quem o recebeu no portão foi minha mãe, que voltou para dentro de casa aos prantos. Como o mais velho dos três filhos, coube a mim acompanha-lo até a delegacia, na mesma pressa com que aportara em nossa casa, cruzando as principais ruas da cidade com a estridente sirene ligada, e o policial efetuando manobras como se estivesse numa pista de corridas.

- Infelizmente seu pai alcoolizado abalroou um veículo, num acidente que poderia ter tido consequências funestas. Por isso foi necessário detê-lo. Estamos instaurando um inquérito e será estabelecida uma fiança para podermos liberá-lo, até que ele responda ao processo em liberdade. Além disso, há a necessidade de reparar o dano causado ao outro veículo. – discursou o delegado, depois de me deixar aguardando por mais de uma hora.

Enquanto desenvolvia as frases com a mesma lentidão em que se organizavam seus pensamentos, aquele homem de meia idade, de aspecto asqueroso, que os fios de cabelo emplastado restantes, cobrindo a nuca, e um acúmulo de saliva nos cantos dos lábios, deixava ainda mais repugnante, seu olhar malévolo me escrutinava de cima abaixo, quase sem mover aqueles olhos pardacentos profundamente alojados nas órbitas e cercados por grandes olheiras escuras. Os valores estipulados, tanto para a fiança, quanto para os supostos danos a seu veículo estavam muito acima do razoável. Um riso irônico moldou a expressão de sua boca quando eu argumentei que não tínhamos condições de fazer estes pagamentos.

- Então deixaremos seu pai curtindo umas férias atrás do xadrez, isso o ensinará a não dirigir bêbado por aí, expondo nossos cidadãos aos perigos de um trânsito tão violento. – proclamou, querendo dar por encerrada a discussão.

- Não seria o caso de fazer-se um teste com bafômetro e verificar se ele está realmente alcoolizado? – voltei a insistir, achando abusiva a conduta adotada.

- Estas modernidades ainda não chegaram ao distrito. Ademais, a lei me faculta enquadrá-lo apenas pelo odor etílico. – respondeu, sem olhar em minha direção. – Se você não tem como pagar a fiança, acho melhor procurar um meio de fazê-lo longe daqui, estamos entendidos? – acrescentou carrancudo.

- Mas ele é um pai de família! É um homem honesto e nunca foi preso! – exclamei inconformado. – Deve haver algo que eu possa fazer para tirá-lo daqui, e assim poderemos dar um jeito de juntar a quantia pedida e consertar seu veículo. – emendei, com a voz suplicante.

- Ele que pensasse na família antes de encher a cara por aí. – grunhiu lacônico. – Arranje um advogado e talvez ele consiga tomar as providências para libertá-lo. – adicionou sarcástico.

Havíamos nos mudado há pouco mais de dois anos, depois que meu pai foi aposentado precocemente devido a uma obstrução pulmonar crônica adquirida ao longo dos anos em que trabalhou numa siderúrgica. O valor da indenização trabalhista permitiu que comprássemos a casinha onde morávamos e a aposentadoria nos obrigou a procurar uma cidade menor. Para completar a renda familiar minha mãe passou a aceitar encomendas de costuras, e eu ao acabar de completar dezoito anos consegui um emprego no cartório da cidade. Não sobrava grande coisa para qualquer tipo de luxo ou extravagância, mas vivíamos dignamente com os parcos rendimentos que conseguíamos. Não tínhamos parentes ou conhecidos na cidade que nos pudessem amparar, e eu me preparei para conseguir um empréstimo, junto a algum banco ou financeira, na segunda-feira, durante meu horário de almoço.

Apesar do movimento intenso no cartório, o expediente matinal parecia não ter fim. Eu consultava as horas repetidas vezes, e constatava que os ponteiros do relógio na parede atrás da escrivaninha do tabelião, mal haviam se movido. O tabelião me encarava toda vez que eu consultava o relógio, e chegou mesmo a mencionar minha desconcentração nas tarefas. Ao meio dia em ponto saí correndo em direção às duas agências bancárias da cidade, que distavam pouco mais de dois quarteirões do cartório na avenida principal que cortava a cidade.

Os baixos rendimentos e a pouca garantia que eu tinha a oferecer foram os motivos alegados para a não concessão do empréstimo. Não conformado com as negativas, procurei a única financeira da cidade, que tinha a fama de conceder os pequenos financiamentos a juros escorchantes que, no geral, e ao fim de algum tempo, obrigavam a pessoa a refinanciar a dívida. Mas eu não estava em condições de abrir mão de qualquer possibilidade que se apresentasse. Eu perdera completamente a fome quando saí da loja com a mesma recusa a tilintar nos meus ouvidos, e caminhei apressadamente de volta ao cartório, ignorando o sol esturricante e o calor úmido, que fez gotas de suor brotar nas minhas têmporas e nuca.

Retomei o trabalho mais distraído do que pela manhã. Eu me sentia mergulhado num abismo profundo e sufocante do qual não conseguia sair. Enquanto eu procurava uma solução para obter o dinheiro necessário para a fiança e o conserto, o tabelião me chamou até uma sala nos fundos do edifício, usada normalmente para acomodar aqueles livros que já estavam completamente escriturados e compunham o arquivo histórico das atividades do cartório. Ao entrar na sala me deparei com o delegado sentado numa poltrona ao lado de uma mesa atrás da qual o tabelião balançava o espaldar de uma cadeira giratória. A conversa entremeada de risadas que podiam ser ouvidas do corredor que levava até a sala, se interrompeu assim que entrei no recinto.

- Feche a porta e sente-se! – disse o tabelião, apontando para uma banqueta sem espaldar que estava diante da mesa onde ele se encontrava. – O doutor delegado está precisando ter uma conversa com você. Espero que você preste muita atenção nas palavras dele. – acrescentou, dando à voz um tom autoritário, que a expressão facial contradizia, ao esboçar um riso apaspalhado e contido.

- Bem! Eu vim aqui comovido com a sua situação, quero dizer, a situação da sua família. – começou, depois de limpar a garganta com um pigarrear estridente. – Sei que vocês terão dificuldade para levantar o montante necessário para corrigir a cagada do seu pai. E por isso, estou disposto a ajuda-lo, permitindo que você parcele esse pagamento com um trabalhinho extra, fora do seu expediente no cartório. Esse trabalho será feito em finais de semana que eu mesmo agendarei e te comunicarei com antecedência. – recitou, naquele mesmo tom modorrento que usara na delegacia.

- Fico muito grato por sua bondade, pois acabo de voltar dos bancos onde me rejeitaram um empréstimo, e assim fica mais fácil para eu pagar o que devemos. – articulei aliviado, na inocência dos meus poucos anos de vida e da total ignorância da crueldade humana.

- Depois de você ter liquidado suas dívidas, esse trabalhinho pode até servir para você contribuir com mais alguma coisa na sua casa. – intrometeu-se o tabelião, como se estivesse sabendo de todos os detalhes do ocorrido, mesmo eu não tendo mencionado uma palavra sequer a respeito.

- Exatamente! Essa ajuda pode ser muito benvinda para sua família. – corroborou o delegado, enquanto os dois se entreolharam numa cumplicidade aterradora.

- E que tipo de trabalho seria esse? – perguntei interessado, como se os céus tivessem me enviado a solução do que me afligia e oprimia o peito.

- É algo bastante simples. Tenho a certeza de que você se sairá muito bem no desempenho das funções. Você é um garoto novinho, pelo que seu chefe me disse muito responsável e prestativo, o que aliado a sua índole gentil vai fazer toda a diferença. Trata-se de servir uns coquetéis e umas comidinhas, vez ou outra pode aparecer um trabalhinho um pouco diferente, mas sempre nessa linha, durante umas festas. – esclareceu, medindo as palavras que empregava, como que para omitir uma realidade não tão frugal quanto a que ele queria deixar transparecer.

- Uma espécie de garçom! – exclamei ingênuo.

- Isso mesmo, uma espécie de garçom. – repetiu, sentindo-se aliviado por eu mesmo ter conseguido definir o trabalho. – Além de você ter o transporte gratuito até o local destas festas, ou melhor, encontro entre amigos, vamos chamar assim, também não vai precisar se preocupar com a alimentação. A grana é livre de qualquer – continuou, agora mais confiante.

- E depois que sua dívida estiver paga, esse bico pode complementar o salário que você recebe aqui, tanto para ajudar sua família, como para seus próprios gastos. – incentivou meu chefe, não deixando nenhuma dúvida de que estava mancomunado com o delegado nesse negócio.

- Está bem, sendo assim eu concordo. – anuí, mesmo por que eu não via outra possibilidade de arranjar essa grana. – E quando devo começar? – perguntei, diante de um sorriso de satisfação estampado nos semblantes dos meus interlocutores.

- Eu mando avisar quando seus serviços serão necessários. – falou o delegado, antes de dar a conversa por encerrada e me dispensar com um gesto de anuência por parte do tabelião.

Os dois permaneceram trancados na sala por mais uns vinte minutos depois que eu voltei para minha mesa. Embora eu me sentisse um pouco mais aliviado por uma solução ao meu problema ter surgido, ainda não conseguia sentir aquela tranquilidade de antes daquilo tudo começar. Mas tratei de me concentrar no trabalho, deixando para a hora certa as preocupações com essa nova atividade, afinal de contas, o próprio delegado dissera que se tratava de um serviço simples.



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