História A Gata - Ivy Pepper

Quem é você garota? Por que estamos disputando no mesmo barco? Porque de qualquer maneira, ambas iremos afundar.

 Eu me lembro daquela noite como se fosse ontem, as chamas a refletirem uma luz especial em meu rosto, a casa explodindo, Bruce com o olhar angustiado, e eu continuei a caminhar com minha mala de rodinhas por alguns quilômetros. Lembro também que havia escolhido nao sentir nada, lembro da cor do céu, da estrada... Lembro de tudo e, tudo isso já faz uma semana. Voce nao faz ideia do que aconteceu.

Naquela noite, eu continuei a caminhar, nao sei por quantas horas, achei que seria fácil, mas mesmo não sendo, continuei a andar, devia chegar a cidade mais próxima. Mas eu nao tinha noção do que era um começo, ou um fim, a essa altura, eu nao tinha noção de nada. Mas eu senti algo estranho se aproximar de mim, um pressentimento no meu coraçao, de algo perigoso, porém nao dei a devida importancia. Achei que aquilo fosse insegurança de minha parte, afinal, eu havia decidido nao sentir nada, mas aquilo era incontrolável.

Tudo o que senti foi uma pressao em meu quadril, algo que desiquilibrou-me, fazendo-me cair sobre o chão. Bati a cabeça no asfalto, mas nao tão forte o suficiente para desmaiar. Eu vi uma sombra de um automóvel em meio a escuridão, então me dei conta de que era um carro, de alguem que certamente me observava pela estrada, pois seus faróis estavam desligados. Seja lá quem fosse, tinha a intenção de me atropelar, disso eu estava convicta. A última coisa que lembro-me daquela noite, foi o rosto de um velho um tanto acima do peso a encarar-me e o gosto de zinco em minha língua junto ao sangue escorrendo sobre meus dentes. Depois disso, simplesmente apaguei.

E depois... Ah, você não faz ideia de onde acabei parando. Um lugar muito luxuoso, certamente distante de Gotham. As paredes com detalhes de ouro, uma verdadeira mansao de luxo, mais chique do que qualquer casarão de onde morava, mais luxuoso do que a própria Mansão Wayne. E aquela foi a primeira vez que pensei em Bruce, após todos aqueles acontecimentos. Talvez de fato nao fosse culpa dele, Bruce parece incapaz de matar uma mosca, mas quando entra em uma briga, ele parece a própria mosca de tão abobalhado que costuma ser. Era divertido pensar nele desta forma. Senti falta de todas as nossas brigas, talvez eu houvesse sido rude demais com ele. De qualquer maneira era tarde agora.

Aquele senhor gordo que me abordara com o carro explicou-me por que estava ali, não que eu nao houvesse percebido. Pois ao colocar meus pés naquele lugar, logo percebi o tipo de gente que habitava aquela mansão. O som alto, as bebedeiras, mulheres vulgares, gemidos de sexo, palco de apresentações eróticas, aquilo era um prostíbulo. E eu poderia estar louca a primeira vista, pois nao estava sendo capaz de raciocinar direito.

Mas assim que ele apresentou-me meu quarto e obrigou-me a vestir um vestido curto, meias finas sensuais e colocar bastante maquiagem, eu tive certeza de minhas teorias. Foi naquela madrugada que experimentei o gosto amargo de uma consequência anônima. Eu conheci a verdade sobre nao sentir nada.

Mas o pior nao era eu me deitar com um homem diferente a cada hora. O pior era ter de rezar todas as noites para nao pegar uma doença, ou entao, não engravidar de um cara desconhecido. O pior nao sao as palavras baixas, ou as ordens vagas, como, "fique de quatro!", "olhe pra mim!",  ou entao, "gema mais alto!". O pior é ver seu valor morrer a cada milésimo de segundo. O pior nao sao os beijos com desinteresse, as marcas feitas por aqueles lábios imundos, tampouco os tapas, ou os puxões de cabelo. O pior é voce se desintegrar a cada instante, porque a dor do corpo passa, mas a dor da alma, esta, ela é um mal eterno.

Nao tem o mesmo gosto, nao tem paixao; finalmente descobri a diferença entre o sexo e o fazer amor. É incrível como eu conseguia disfarçar prazer enquanto me sentia vazia e estranhamente fria. É incrível como conseguia sorrir mesmo querendo chorar. Então foi aí que aprendi a ser "duas caras", uma pessoa completamente falsa. Eu achei que naquela noite da queima da casa de palha eu houvesse queimado também meus sentimentos, mas estava errada, durante esses seis meses que se passaram, foram esses homens que me fizeram perder o pouco de sentimento que me restava. Eu nao sinto nada e nao estou incomodada com isso. Na verdade, estou convicta de que nunca mais serei a mesma. Isso é bom, eu nao sinto falta da antiga Selina. Eu, só... Não é mais como antes, quando eu fasso algo, não coloco mais sentimentos, nem expectativas. Sim, eu sou má. Padrão do mundo que me transformou nesse montro.

Eu estou recordando disso tudo aqui, encostada na  cabeceira da cama, sozinha como sempre. O pior é que eu nao consigo sentir pena de mim mesma, nem me odiar como fazia a princípio, eu nem sequer choro quando lembro, definitivamente nao sinto nada... As vezes isso me assombra, as vezes acho isso é ótimo.

Já é tarde, eu deveria estar dormindo, amanhã será mais um dia de prazer e de morte, acho que devo me preparar para isso, como em tantas outras noites. Mas é que eu, eu nao consigo, tem algo me incomodando, como se algo me espetasse. Um barulho ao térreo interrompeu meus pensamentos, olhei pela janela, Sr. Burton, o velho que me raptara, ele saira do carro furioso. Logo após vi que ele retirou uma jovem do automóvel, certamente mais uma encomenda. Obra do destino, ou livre aceitação, tanto faz, agora ela estava condenada a esse mundo. Quando percebi que eles estavam subindo as escadas, fingi estar dormindo e deitei-me o mais depressa possível. Ouvi as palavras de baixo calão que Sr. Burton repetia para a garota, eu nao vi o rosto dela, logo ele se trancara em seu quarto com ela. Certamente uma encomenda "virgem", quando este é o caso, o mesmo prefere tirar a pureza da "mercadoria".

Deve achar estranho, mas nao passamos disso, é a mera realidade, ao menos, é como me sinto. Vendo que nenhuma das moças acordara, decidi levantar na ponta dos pés, afim de nao fazer barulho. Eu ouvira um som e um objeto que colidira contra o chao, algo como, não sei, uma moeda talvez. - prendi o cabelo e comecei a olhar pelo solo. - Até que alguns passos depois de mim, perto a claridade de uma janela, estava sobre o chão xadreizado, um pequeno medalhao de ouro. Certamente caíra da roupa, ou do pescoço da nova  encomenda. Aquilo me fez lembrar do relógio de bolso de Henry que Sr. Burton tomara de mim, ele usara para pagar algumas dívidas, me senti péssima. Eu jamais o venderia, havia prometido a mim mesma, mesmo que fosse o caso, mesmo que precisasse. Mas aquele homem estrangeiro o tomara de mim. Confesso que aquilo doeu mais do que qualquer noite com aqueles selvagens.

Então, logo percebi que aquele medalhão podia ser algo importante para aquela moça. Se a vida dela estava desgraçada, então que ao menos tivesse um consolo. O peguei do chão e voltei para a cama, cobrindo-me com a coberta. Tive o intuíto de escondê-lo de Burton, claro que também de me aproximar mais da novata que desconhecia o rosto. Afinal, todas as mulheres eram amigas e queria dar as boas vindas a nova mercadoria. Afinal, se nao era pra sentir nada, que passassemos por isso juntas, essa frase é como um lema entre nós. Pela manha eu entregaria o objeto escondido a ela. Mas nao pude conter minha curiosidade, era um medalhão de ouro deveras caro, ao abri-lo, deparei-me com a foto de uma garota ruiva. Os olhos verdes e brilhantes, cabelos ruivos num tom natural, devia ter mais ou menos oito anos de idade. Certamente era o retrato da novata quando menor, ou melhor, retrato de algo que ela fora, porque nunca mais voltaria a ser aquela garota feliz e sorridente da gravura. No lado oposto do medalhão, vi um nome bordado por letras douradas, certamente seu nome, tentando entender a origem dele, li baixinho...

-Ivy Pepper?!...