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Ruki
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Eu me lembrava de um corpo ainda quente que pedia de forma inegável por algum descanso, o sono que me acometeu foi tanto que eu temi ser mal interpretado. Quer dizer, sono me remete à tédio e a experiência não tinha sido nada entediante.
Na verdade tinha sido muito interessante e terminado com um monte de informações para pensar, refletir e memorizar. Mas o peso de minhas pálpebras não estava colaborando com o desejo de atividade do meu cérebro. Olhei para o lado, mas o escuro no quarto não me permitiu ver qual era a situação de Akira, mas tenho certeza que o ouvi rir.
Achei então que seria melhor me rolar mais para perto dele na cama, e não me surpreendi quando o braço cego dele apenas se moveu para concluir meu movimento, puxando-me de costas para a frente de seu corpo. E acomodado entre seus braços permiti-me fechar os olhos, estranhamente, no que me pareceu ser apenas um minuto depois me senti incapaz de permanecer desperto com olhos fechados.
E como uma magia de efeito ruim, havia luz solar entrando pelas frestas da janela. Demorei até conseguir raciocinar que era noite quando Akira e eu adormecemos e se havia sol agora era porque o dia já tinha nascido.
Só me lembrava de ter fechado os olhos. Não parecia de jeito nenhum que tinha dormido por uma noite inteira, era como se não tivesse descansado. Precisava pegar algum telefone para checar a hora, aquilo certamente estaria errado, mas os dois aparelhos estavam longe demais e me mover parecia errado com a mão de Akira tão bem acomodada contra minha cintura.
Meu corpo pedia para que eu fingisse que não tinha acordado e voltasse a dormir, e faria isto com louvor se não fosse a claridade chata. Gostava de dormir no escuro total. Talvez se virasse de frente para Akira isso ficaria melhor, poderia esconder o rosto no peito do maior e nem ligaria de como isto soaria depois.
Com certeza eu precisava dormir um pouco mais. Estava errado, sentia como se tivesse passado a noite em claro e não dormindo confortavelmente aninhado nos braços de Akira. A voz de Emi se fazia ouvida em algum lugar muito distante, era difícil entender o que ela dizia; com certeza conversava com os cachorros, aquele timbre de voz era a “voz de se falar com cachorro”.
Apertei mais o cenho já franzido pelo excesso de claridade dentro do quarto. Claridade e barulho não eram a combinação que eu procurava naquele momento, mas era bom saber que minha mãe já estava em casa. Mas raciocinar que Emi já estava em casa funcionou simplesmente como um estilingue dentro da minha cabeça, era quinta-feira, não era feriado e o sol estava muito alto para o horário que costumava acordar para ir para a escola.
Uruha e Emi não tinham me acordado. Alguma coisa estava muito errada. Precisava levantar, mas meu corpo simplesmente não queria. As costas estavam pesadas e o pescoço dolorido.
Um suspiro mais pesado terminou com o calor do hálito de Akira contra minha nuca. O barulho matinal e o sol certamente tinham o acordado também. Um bocejo desgostoso e o garoto às minhas costas claramente tentava se espreguiçar, e entre alguns “crecks” de suas articulações, seu corpo se moveu contra o meu e sua pele roçou contra a minha.
Era um movimento natural e inocente, mas capaz de ativar todas as luzes na minha cabeça. No movimento sutil de Akira eu senti seu corpo nu lembrando-me que me encontrava em igual estado e motivo disto. Todas as coisas que tínhamos feito na noite anterior martelaram minha memória em um só açoite.
E somente então a voz de Emi falando com os cachorros lá fora se transformou de incômodo à pavor. Eu me lembrava claramente de fechar a porta do quarto na noite anterior, havia sido um movimento por reflexo ao pensar que ficaríamos sozinhos de noite em uma casa sem absolutamente nada de luz; um jeito bobo de se sentir mais seguro. Se não fosse por isto, Emi já teria entrado ali...
... o que também não significava que eu não iria ouvir alguma coisa, pois ela detestava portas trancadas dentro de casa.
– Droga – reclamei em um resmungo baixo.
Eu não achava de verdade que minha mãe fosse surtar ou algo parecido, pois tínhamos todos acompanhado o drama entre Kai e Miyavi e ela tinha levado tudo numa boa. Mas ainda havia o fato de que Kai não era eu, ou seja, filho dela. Tentei imediatamente me imaginar chegando em casa um dia e encontrar minha mãe esparramada na cama com um cara e, ok, este papo com Emi não ia ser dos mais fáceis.
Foi o que pensei. Naquele momento pelo menos, pois toda essa informação se refrescado na minha cabeça concluiu o trabalho de me acordar, e por mais que eu quisesse, ficar na cama não era mais uma opção. Era melhor sair logo e encarar Emi do que prolongar isso e ainda ter que ouvir piada do Uruha pelo tempo que fiquei trancado no quarto.
Aí todo aquele meu pensamento envolvendo minha mãe mudou exatamente no momento seguinte. Bastou sentar na cama, ou tentar.
– Au!! – reclamei voltando a me jogar contra o colchão.
Doía. Doía pra cacete.
Era literalmente a dor do cacete, e mesmo que previsse os movimentos de Akira por sentir ele se mexer na cama, a ação seguinte foi impensadamente a coisa mais sábia que eu conseguia ligar na minha cabeça como “solução para aquela dor excruciante”:
– Mãããe!!! – gritei alto o suficiente para os vizinhos ouvirem também.
– O que foi, Ruki? – Reita perguntou assustado, seus olhos estavam arregalados ao limite e suas mãos cercavam meus ombros em suporte.
– Taka? – Emi apareceu dentro do quarto nem meio segundo depois; eu nem quis saber na hora como é que ela tinha passado pela porta que eu mesmo tinha trancado.
– Isso doi! – reclamei, como se eu estar sentindo dor fosse culpa dela quando vi o rosto de Emi me encarando.
Ela olhou para mim e por dois segundos eu tive certeza que ela ia cair na risada, mas então mudou o semblante e olhou para Akira com o mesmo olhar mortal que eu erroneamente tinha dirigido à ela. Só aí a minha ficha realmente caiu, eu estava pelado na cama com Akira igualmente nu e reclamando da dor, obviamente causada pelo motivo de estarmos ambos pelados.
Lindo Takanori. Absolutamente maduro da sua parte. Eu não sabia se estava com mais vergonha dela ou de Akira. Sem falar naquele pavor do sermão que voltou a martelar minha cabeça, eu devo ter ficado mais vermelho do que um pimentão; Ah não espera, Akira estava ainda mais vermelho do que alguém supostamente conseguiria ficar.
– Akira levanta essa bunda magricela daí e vai buscar a caixa de primeiros socorros. – Emi ditou com autoridade.
Realmente mais parecia que ela tinha acabado de pegar o Koron no flagra cavando no seu canteiro de flores preferidas, bem como Reita estava com a cara mais acuada do que o pequeno chihuahua com o rabo entre as pernas. Até olhando para minha mãe de baixo como um cão acuado ele estava. Ainda assim. Nada disso o impediu de ficar olhando para todos os lados em busca de alguma resposta para como sair da cama sem se expor e/ou explicar para Emi porque não conseguia sair dali.
– E..eu, bom é... eu não... eu?
– E o culpado disto aqui é quem, hem? – Gritou mais exageradamente do que realmente precisava.
Ali eu percebi duas coisas. Uma delas era que eu realmente conhecia minha mãe tão bem quanto um dos meus amigos bobocas, e a outra coisa era que Reita ainda não tinha conhecimento que a criatura na frente dele era alguém tão boboca quanto qualquer um dos nossos amigos bobocas.
Eu deveria ser um bom namorado e tentar ajudá-lo entender que só deveria ficar quieto, mas aí me lembrei de mim mesmo com a avó dele no meu pé e só fiquei bem quieto na cama. Metade da minha inércia era por este motivo, vinte por cento do meu silêncio era porque doía mesmo e os outros trinta era porque a cara dele estava impagável.
– Mas... mas como é que eu vou sair daqui? – o garoto perguntou encurralado.
– Com as pernas Suzuki! Acha mesmo que eu to mais preocupada com a tua bunda branca andando por aí do que com o que você fez com o meu filho? – pontuou com uma dose extra de ira no olhar que dirigiu a ele.
Meio segundo depois Reita já tinha chegado na metade do quarto com um salto só. Deu pena de ver a cara de apavorado dele? Deu, mas se nosso relacionamento durasse mesmo o tanto de tempo que ele dizia que iria durar, Reita ia ter que aprender a lidar com a dose de sadismo matinal da minha mãe.
De qualquer forma, era mais complexo não rir dele correndo pelado dali e todas as lamentações que Emi fez questão de discorrer mais alto que realmente necessário sobre a tal bunda branca andando por aí. Totalmente ao contrário do que tinha dito sobre não estar preocupada sobre isto.
– Você é cruel quando quer. – disse assim que Reita sumiu do quarto e Emi finalmente caiu na risada.
– Você chamou a mamãe porque está com dor no traseiro por ter feito sexo. Nada que eu possa fazer com seu namorado depois disto vai ser mais vergonhoso. Curioso, o dia depois da primeira vez de um casal costuma ser regado de romantismo e café na cama entre outros favores, sei lá, essas coisas.
– Isto não foi planejado! – me defendi – Hoje é dia de aula e obviamente já passou da hora de sair de casa, eu não vejo onde romantismo se encaixa isto.
– Ah há um fundo poético em perder a hora por motivos assim, uma vez ou duas no ano. Mas você está salvo “garoto que perdeu a hora da escola” o blackout foi geral, a cidade toda ainda está sem luz; não tem escola Ruki.
– Ah é, a queda de luz! – disse me lembrando de todas as coisas que tinham acontecido no dia anterior na ordem exata e com todos os detalhes e... – Hei, eu tinha passado a chave na porta ontem por causa da escuridão, como foi que você entrou?
– Com a chave reserva, obviamente. No momento em que cheguei aqui, assim que o temporal acabou. Eu já disse que nesta casa não trancamos as portas, Takanori, foda-se o que estiver fazendo com Akira aqui dentro. Aliás, cinco coisas – disse assumindo um tom mais sério mostrando dois dedos em riste em sua mão direita – Você e Akira estavam dormindo descobertos, poderiam ter ficado doentes; Se está maduro o suficiente para fazer sexo com o seu namorado, seja maduro para lidar com a dor como um adulto; Está evidente aqui que ninguém lembrou da existência das porcarias dos preservativos. Não vou implicar com você por fazer sexo, pois é algo absolutamente normal, mas irão fazer isto do jeito certo; Uruha subiu aqui como de costume para te acordar, desculpe, estava ao telefone com a diretora da escola quando ele subiu; E por fim, vai lá tomar um banho bem quentinho que metade da dor passa.
– E os remédios que mandou Akira buscar? – perguntei e Emi fez uma cara de riso novamente, mas não chegou a cair na risada.
– Vai logo pro banho, Takanori. – concluiu se abaixando para me ajudar a levantar da cama.
Algo que fiz com muito esforço, mas como um adulto digno. Pelo menos ela fez o imenso favor de deixar a toalha e algumas roupas ao meu alcance dentro da banheiro. E de quebra ainda saí a tempo de ver Emi ainda implicando com Reita.
Eu sabia que não era uma implicância verdadeira, ela apenas não se continha em perder a oportunidade de ser sacana. E ser a sogra que acabou de descobrir que seu único e precioso filho fora corrompido –segundo as palavras dela mesma- dava a ela todo o armamento que precisava. Resumidamente, Akira virou o serviçal de Emi enquanto, supostamente, cuidava de mim, claro que este cuidado incluiu persuadir Reita a fazer um café da manhã reforçado para nós dois; nós dois no caso era Emi e eu.
– É bom que não esteja pensando em meios de se livrar da minha ira Reit... Reita? – ouvi sem atenção enquanto Emi se referiu ao fato de Akira estar ligando o telefone celular cuja bateria havia terminado durante a noite e estava carregando desde a hora que descemos, mas foi impossível não seguir o olhar dela para o rosto verdadeiramente assustado dele.
– Eu preciso... a mãe do Aoi... Desculpe, Ruki, eu preciso ir. – completou sem esclarecer coisa alguma.
– Reita? – questionei o que havia deixado Akira com aquela expressão de preocupação.
– Eu acho que... Não dá pra explicar agora, Ruki, mas eu preciso ir e ficar com Yuu. – misturou todas as palavras que no final pouco faziam sentido para mim.
– Tem algum coisa errada? Eu posso ir com você. – me ofereci.
Eu não era o fã número um do Aoi, mas ele já tinha virado parte daquela família não é. Tipo um cunhado chato ou o caso perdido de que um dos seus irmãos não conseguia sair.
– Ele não vai deixar ninguém entrar lá agora, mas eu preciso ir.
– Vai logo Akira. – Emi invadiu o diálogo com um timbre que nada tinha a ver com as brincadeiras que ela vinha fazendo até ali. – Por favor nos mantenha informados, mesmo que Yuu diga que não quer a presença de ninguém na despedida. – concluiu de forma calma como se estivesse entendendo muito mais do que eu sobre o que estava acontecendo ali.
– Mãe? – virei em sua direção assim que Reita saiu apressado, deixando para trás apenas o barulho alto da porta sendo batida.
– Deixe eu ligar para o Joe primeiro, Aoi deve ter entrado em contato com ele depois que eu saí de lá.
– Por que você parece saber muito mais do que aparenta e ainda assim está com uma cara tão ruim quanto a do Reita? – questionei, mas aparentemente Joe tinha atendido ao telefone e ela saiu para falar com ele em privacidade.
Deveria segui-la, mas aquela confusão tinha me deixado irritado. Odiava não saber das coisas quando todo mundo ao meu redor parecia estar sabendo muito bem de tudo. Meio minuto depois estava pulando o muro da casa de Uruha para entrar direto em seu quarto sem precisar passar pela mãe dele ao bater à porta.
– Você precisa ir comigo lá pra casa agora. – disse antes que ele soltasse qualquer piadinha sobre ter ido lá em casa e eu estar dormindo com Reita na minha cama, do jeito que o sorriso debochado dele estava sugerindo que iria fazer.
Disse. Dei meia volta. E saí esperando estar sendo seguido. Não olhei para trás para ter certeza, mas não fui eu quem fechou a porta da minha casa depois que eu voltei para dentro da mesma.
E antes que ele pudesse perguntar ou eu pudesse explicar qualquer coisa Emi voltou apertando o celular entre os dedos, pronta para explicar o que ninguém de verdade estava pronto para ouvir. A mãe de Aoi havia morrido durante a noite anterior. Aquilo gerou ainda mais dúvidas em minha cabeça, mas Uruha não pareceu ter a mesma reação.
Ele quis seguir Akira, mas Emi não permitiu. Segundo Joe, Aoi havia demorado até mesmo para querer a presença dele e de Reita consigo, e naquele momento, ainda não queria a presença de mais ninguém. Sem escolha, subimos para o meu quarto.
Kai e Miyavi logo se juntaram à nós e a comoção foi dividida. Uruha foi quem contou todas as coisas que ninguém mais ali sabia, mas que tinham sido divididas consigo naquela noite mesmo. Foi um dia de silêncio compartilhado, um dia de surpresas introspectivas e pensamentos que não eram compartilhados. Mandei uma mensagem para Akira, mas demorei até ter alguma resposta.
Não precisei da mesma coragem arranjada para conversar com Aoi pela primeira vez para desejar voltar à casa do moreno no dia seguinte apenas para rever a mulher de sorriso doce que guardava de minha infância. Mas não o fiz, e tampouco fui capaz de vencer o tempo para rever a delicada mãe de Yuu que morava em minhas lembranças infantis. E de uma forma muito estranha, isto me causou alguma culpa.
Aoi se manteve recluso em um luto solitário enquanto o corpo da mãe era preparado, e por este motivo a entrada de ninguém além de Reita e Joe estava sendo permitida na casa. Mesmo sendo alertado disto, Uruha escapuliu em algum momento ao entardecer e tentou se aproximar. Nem mesmo os empregados foram permitidos ficar ali, apenas a velha governanta que fora trazida do Japão junto com a família Shiroyama, que foi quem pediu para Uruha ir embora quando o mesmo bateu à porta.
Mesmo assim todos fomos o apoiar no momento em que ele nos permitiu. O velório da senhora Shiroyama foi breve e muito mais triste do que a da avó de Miyavi. Ela era muito mais jovem e deixava para trás um menino triste de olhos secos.
Reita havia dito que Aoi já havia chorado todas as suas lágrimas ao longo dos anos. Yuu entendia que para sua mãe aquele era o descanso e, após o desespero na hora da morte, ele já estava mais calmo e não choraria por vê-la finalmente seguindo para um plano melhor.
Eu, Kai e Uruha choramos como se estivéssemos dando adeus para a pessoa que mais amávamos no mundo. Ainda por duas ou três vezes depois disto me vi chorando por ser invadido por uma ausência inexplicável ao imaginar um futuro em que Emi não estaria mais rindo e sendo a autoridade marcante dos meus dias. Simplesmente porque era impossível não se colocar no lugar do amigo e ver no caixão aberto o rosto pálido de minha própria mãe, ou simplesmente imaginar um dia normal com a ausência dela.
E por mais que a sinergia de uma família pairasse sobre todos, foi depois da despedida da mãe de Aoi que aquele grupo deixou definitivamente de ser um grupo de pessoas ligadas entre si por ter vínculos com pessoas próximas. Foi exatamente ali que o conceito de família se consolidou como uma ligação única entre nós; entre todos nós.
Dava até um certo medo. O dia que começou com zero expectativas havia se tornado uma data emocionalmente marcada de alguma forma para todos nós. Levaria dali em uma mão o último laço que entrelaçaria a vida de Akira a minha, e na outra um laço eterno para cada pessoa que moldava um pequeno pedaço daquilo que era uma família.
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