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História A menina e o Mundo - Dura na queda


Escrita por: Luciuslestrange

Capítulo 3 - Dura na queda


Passei a noite em claro
Pensando em você
Em como poderia ser
Se fosse diferente, se a gente simplesmente assumisse
Os nossos erros, os nossos erros, os nossos erros
Ninguém deu o braço a torcer
Ficou por isso mesmo... ��

A casa estava muda e escura. Mesmo estando dia claro, as janelas e cortinas estavam fechadas, mas o sol ainda transpassava pelo tecido vermelho das cortinas, refletindo na mesinha de vidro do centro da  e projetando na parede um prisma.
Era uma quarta-feira, o sol reinava soberano no céu sem sequer uma nuvem para lhe usurpar, era uma tarde abafada, provavelmente pelo fato das janelas estarem fechadas e ela estar de roupa preta.
Ela estava jogada no sofá, espatifada mesmo, com um cigarro entre os dedos de uma mão e o controle da televisão na outra. Os olhos estavam borrados, o rímel escorria do canto dos olhos, mas ela, sequer se importava, estava absorta naquele sofá de couro que tinha resolvido grudar nos braços nus dela.
Ela zapeava os canais sem muito interesse,  sabia não iria encontrar nada que quisesse assistir, até porque era dia dos namorados, e ela querendo ou não,  passariam filmes água com açúcar e ela ia acabar chorando e se desesperando. Ai a mãe viria do apartamento neurótica como era, com sua malinha de remédios comprada na Aliexpress e dá-lhe anti-depressivos. Era sempre assim. Mas depois de Gustavo, Angelina só queria esquecer de tudo, perder a memoria recente. Tomava muitos porres de vodca na insistência de tentar esquecer, perder a memoria recente, mas acabava sempre de ressaca na cama, isso quando não tinha um gato desconhecido na cama dela. Era tão difícil mandar eles embora...
Nessa boêmia toda, ela acabava perdendo o hora da faculdade... Ela já estava no ano final de jornalismo e a mãe não podia sequer desconfiar que por causa de um "perna de calça" qualquer ela tinha parado de ir as aulas. Mas ela não entenderia, nem ela entendia direito. Mas enquanto não entedia, ficava sem entender, naquela profunda sofreguidão.

Ela desligou a televisão, não ia ficar gastando luz com aquele lixo capitalista, aquela coisificação, onde tudo pode ser vendido e parcelado em suaves prestações, inclusive o amor.
 O amor dela era puramente comunista, daqueles que não cabem dinheiro ou qualquer coisa do gênero. Cabe apenas o amor, vermelho, doce. Mas ninguém entenderia, as vezes nem ela mesma entende.
Ela vai até a cozinha e bebe num gole só, uma taça de vinho que estava no balcão de mármore, perto da pia repleta de pratos sujos. O liquido desceu quente da garganta dela, ela revirou os olhos em puro asco.
Uma vez ela leu que as mulheres que cultuavam Dionísio, deus grego do vinho e das orgias, comiam carne crua de bode que sacrificavam e dançavam de olhos revirados, mostrando as gargantas.
Ela sempre teve um certo desejo estranho e íntimo (como devem ser todos os desejos), de ter sido uma daquelas mulheres. Uma vez, comentou aquilo com Gustavo. Ele riu um pouco e disse: Você é idiota.
Mas não foi de uma forma fofa, foi duro mesmo. Daquele q em diante, não quis mais ser uma adoradora de Dionísio.
Realmente, ela era idiota. Idiota de gostar dele.

Toda vez que eu te encontro
É claro que eu sinto um frio
Quando você me abraça
Quando você quer me beijar
Minha alma estilhaçada
Num instante se refaz... ��


Ela era frágil, frágil mesmo. Tinha dezenove anos, cursava jornalismo, mas nem por isso deixava de ter seus medos bobos. Ela falava baixo, ria muito pouco, escolhia com uma cautela absurda as roupas que usava (tinha medo de se sobressair, o que pensariam as pessoas?) não bebia muito e fumava escondido.
Angelina fazia jus ao nome, tendo uma feição angelical:  Era bronzeada, tinha um cabelos tão pretos quanto a situação política nacional, uns olhos negros muito expressivos que pareciam transbordar da cara, um nariz muito bonitinho e uns lábios finos que ela passava um batom rosa, daqueles bem sonsos mesmo.
Tinha uma adoração por ícones femininos da Música, dando espaço especial para Nina Simone, Janis Joplin, Elis Regina e Maria Bethânia (essa por insistência de um amigo).
As vezes, quando estava tranquila em casa, normalmente quando ela voltava da faculdade, quase madrugada, ela ouvia muita musica. Ficava lá, de pés pra cima pensando na vida que vivia. Era uma vida chata, sem ânimo nenhum. Ela queria ser uma daquelas mulheres, que fumavam e bebiam e quebravam a cara,  donas de corações devastados e de voz inconfundível.
 Quando ela aprendeu a tocar violão, ela ficava horas a fio de frente ao espelho, com um cigarro entre os dedos tocando e cantando tentando fazer uma coisa meio "Janis Joplin Tropical," sem acertar na Gal Costa.
 Com o passar do tempo,  ela foi aperfeiçoado e os amigos a convidavam para tocar nas recepções que ofereciam. Ela adorava, se sentia uma daquelas cantoras que ela tanto gostava.

Eu te desejo, mas te refuto
Eu sei que você não ta bem
E eu te quero muito bem
Mas acabou. ��

Tudo aconteceu na casa daquele amigo, aquele da Bethânia.
Ela estava linda! Usava uma maquiagem forte, um batom vermelho e uns olhos esfumaçados. Estava com um vestido branco com fendas nas duas pernas e uma sapatilha vermelha.
Quando ela chegou, falou com todo mundo, bebeu bebidas e tragou cigarros de todas as mãos, riu sua risada mais alegre (que a muito não dava), e jogou muita conversa fora. Falou sobre política, aborto, direitos LGBT, series da Netflix e das fofocas do campus.
Lá pelas tantas, quando o pessoal já estava meio alterado, começaram todos a chama-la para cantar. Ela, talvez pelas altas doses de caipirinha de cereja que tomou, nem se fez de acanhada, logo acendeu um cigarro com uma mão,  sentou num banquinho de plástico, abriu as pernas para posicionar o violão e sorriu com a cara de perplexidade de todos. Não foi uma coisa vulgar, foi absurdamente sexy. Todos olhavam, atentos e atônitos para Angelina e o seu violão d'água. Ela tocava violentamente seu violão. Todos estavam de olhos nela, principalmente um garoto que estava sentado no sofá de braços cruzados. Tinha os cabelos negros, muitíssimo magro e estava com uma cara de ostra quando se pinga limão, como se não gostasse daquilo. Gustavo, esse era  o nome da peste.
Depois de muitas musicas, Angelina estava extasiada de felicidade e com um hálito que era puro álcool.
Ela sentou no sofá, ou então se jogou mesmo, do lado de Gustavo. Ela o achou muito bonito, tinha uns cílios compridos, mãos longas com unhas muito bonitas e ombros que saltavam da camiseta vermelha. Eram belos ombros, ela tinha esse fetiche por coisas como mãos e ombros. Mas aquela cara, aquela merda de cara amarrada, estragava o rapaz todo.
Ele conseguia sentir um cheiro bom vindo dela. Era suor, perfume doce e vodca. Ela estava derretendo, a maquiagem escorria-lhe das maças do rosto, mas mesmo assim ela continuava infinitamente sensual.


- Tem Brasa ? - perguntou ela com um cigarro entre os dentes.

- Eu não fumo. - disse ele de forma rápida,  como se tivesse dito aquilo com um só movimento de lábios.

-  Sabia que você tem uma cara muito bonita pra ela viver amarrada ?

-Sabia que você é linda demais pra ficar agindo como uma depravada ?

Ela o olhou com uma falsa surpresa, estava bêbada.  Mesmo assim, serrou os dentes no filtro branco do cigarro e o encarou com olhos de fera.

- O que é ser uma depravada ? Sorrir, ser feliz, fumar e beber ? Ou é o fato de eu estar aqui, num antro de machos e ser admirada e desejada por todos eles ? Ou seria ainda pelo fator de eu te intimidar, por você não conseguir evitar de me olhar sem seus olhos brilharem de puro desejo ? - disse ela com um sorriso cínico no rosto. Todo pisciano é cínico. - Acha que eu não vi a tua cara de ver aquela gente toda me amando ? Você me deseja como mulher, mas me refuta com essa sua moral deturpada e ridícula!

Ele sorriu daquela garota. Ela era foda! Ela cuspiu aquelas palavras como se tivesse engolido ácido.

- Meu nome é Angelina - disse ela tirando o cigarro apagado da boca e girando na ponta dos dedos - e o seu ?

- Gustavo.

Eles ficaram lá, lado a lado por intermináveis segundos que se tornaram minutos que se tornaram horas (sempre mornas e mortas.)   Com o passar das horas, eles foram aproximando as mãos, até que as juntaram, formando uma espécie de corrente.
Eles estavam lado a lado, de mãos entrelaçadas. Tinham acabado de  se encontrar na casa do amigo em comum, o som era da Elis, todo mundo já tinha se cansado de Bethânia. Era cômico dizer que se encontraram, sendo que ambos estavam perdidos, comunicando-se apenas por solidões.

Quando resolveram se encarar, era tarde, quase dia, e ela perguntou se ele não queria rachar um Uber. Ele sorriu, e de mãos dadas desceram as escadas, do hall do prédio e ligaram para o Uber, que rapidamente tinha chego. Ela disse o endereço do apartamento e eles foram, em silencio mais de mãos dadas.
No momento em que chegaram no prédio dela, ela pagou a corrida e ele foi atrás, mesmo morando a três quadras de do prédio do Amigo que gostava de Bethânia. Ela ia separar as mãos,as ele as segurou e ela sorriu. Ambos cumprimentaram o porteiro, e ela subiu as escadas rindo como uma criança, segurando ele pela mão. Riam e cantavam sem razão.
Ela abriu a porta, e ambos se atiraram na cama. Ela fez um barulho estranho e ambos caíram na gargalhada. Logo depois,  olharam-se profundamente e Angelina aproximou os lábios dos dele. Beijaram-se. Foi bonito, foi estranhamente calmo.
Eles entraram inimigos, chegaram até a porta amigos e saíram casal.

Que daqui pra frente
Você comigo, não tem mais vez
Não tem, não tem, não tem, não ��

Mas a vida e as minhas historias são feitas de desgraça.
Com o passar dos dias, o amor foi ficando maior, Angelina amava Gustavo com todas as forças, embora não dizia que o amava, dizia apenas "eu ainda gosto muito de você, agora." Ele sorria seu sorriso mais bonito. Também não dizia que a amava, mas ele a adorava e dizia isso com o corpo que dançava pra ela. Eles saiam pouco, ficavam mais em casa comendo cheasecake de morango (especialidade dela) e assistindo "Gracie and Frank", no Netflix. Ela ia para a faculdade e ele ia busca-la, ambos adoravam andar de mãos dadas e saiam caminhar.

Mas as pessoas gostam umas das outras de diversas formas. Gustavo foi dando pequenos concelhos do tipo: "muda o batom, põe um mais clarinho", fecha as pernas pra tocar o violão", "para de beber tanto." E ela ouvia, ele pedia com tanto carinho e com aqueles olhinhos infantis que so ele tinha, ela não sabia como dizer não.
A Mãe dela o adorava profundamente, dizia que ele era o menino ideal pra ela sair daquela "vida." E com o aval da mãe, Gustavo foi se tornando mais acido em seu comentários e agia cada vez pior.
Ela começou a sair menos, os amigos não iam mais a sua casa porque "O Gustavo não gostava", bebia escondido, e nunca mais tocou violão. Quando saiam, os passeios tinham tornado-se menos frequentes, ele olhava descaradamente para outras garotas. Ela se sentia coagida, era como se você vivesse anos a fio em uma ilha e do nada ela começa a se mover. Ela amava, sabia que aquilo tudo era para o seu bem.
Ele começou a cantar umas amigas dela da faculdade, elas contavam para Angelina e ela sorria amarelo. Depois ia ao banheiro e se desatava a chorar. Quando ela ia falar com ele a respeito, ele a diminuía, dizia que ela estava louca e que mesmo que fosse verdade, isto é, se ele realmente a traísse, seria justo, até porque ela era uma incapaz. Ninguém amaria Angelina, só Gustavo.

Uma vez ela encontrou aquele amigo que gostava da Bethânia na rua, foram tomar um café. Ela estava com uma pequena auréola arroxeada no olho esquerdo e ele logo sacou tudo.

- Quando você vai terminar com esse demente Angelina, Quando ele te estrangular ?

- Foi uma brincadeira nossa, nada demais.  - disse ela desviando o olhar para o chão. Ele apanhou a mão dela. As unhas estavam  sem pintar e roídas.

- Eu conheço o Gustavo, sei como ele é. Ele teve um pai barra pesada, comeu o pão que o diabo amassou, mas isso não justifica. Você não ta sendo a primeira que ele destruiu. - ela arregalou os olhos - Sim, você ta destruída. Você não tem mais aquela vontade de viver, aquele brilho... Tu ta acabada Angelina. Ele ta abusando de você.

Ela começou a chorar copiosamente e ele a abraçou. Não sabia o que dizer. Ficaram minutos ali, no meio da lanchonete. Até que ela pagou a conta e saiu. Andou desesperada pelas ruas da cidade até chegar ao apartamento.
Ela abriu e o encontrou estirado no sofá assistindo série. Mandou mensagem para o amigo, pedindo para marcar uma sessão de terapia, calmamente foi até o guarda-roupas, pegou um batom vermelho dos áureos tempos e esfregou na cara toda. Em seguida pegou todas as roupas dele e calmamente jogou tudo pela janela. Depois, pegou tudo do quarto e jogou nele. Ele estava atônito, e ela chorava de ódio enquanto atirava.

- Você endoidou de vez ?

- Você ainda não viu nada meu amor! - disse ela correndo até a cozinha e atirando a cafeteira nele.
A testa de Gustavo começou a sangrar.

- Sai da minha vida! Você destruiu tudo que eu era, me transformou nessa coisa sonsa, nessa coisa retardada que não pensava, nem sorria nem bebia nem falava palavrões! - disse ela jogando o liquidificador no chão.
Ele saiu correndo com a roupa do corpo, nunca mais tinha ligado ou alguma cousas assim. No fundo era um fraco.

Hoje ela está lá, jogada no sofá enchendo a cara de vinho barato. Uma infeliz, feliz envolta em um mundo de cetim. Rindo e debochando desgraça de todos e dela mesma. Tem muita coisa para rir. E nem se importa mais com o dia dos namorados e os filmes. Uma boa oportunidade de fazer trabalhos atrasados.

 Ela é Angelina Rodrigues, Pisciana (cínica, como o signo), cursa jornalismo, solteira, apanhou a bessa, mas assim como Elza Soares, é dura na queda.



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