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História A menina e o Mundo - Fogo Morto


Escrita por: Luciuslestrange

Capítulo 4 - Fogo Morto


Estávamos frente a frente, depois de dez meses.
Ele com seus óculos redondos de armação vermelha, fingia que lia um livro de poesias e fumava um interminável cigarro. Enquanto eu estava  em sua frente,  mudo, estático, sentado com um prato de biscoitos de amêndoas e uma xícara de leite.
Guilherme estava com raiva de mim, eu sabia, eu sentia!  E para retribuir,  olhava-o com raiva, por não esperar nem saber o motivo daquela aquela raiva muda e velada. Na verdade eu sabia, mas achava patético.
No entanto, ele sequer se dava conta da minha raiva, ou se dava conta não dava atenção o que se tornava pior ainda. Ele não  falava comigo, fazia de propósito,  pois  via em meus olhos que eu esperava uma palavra, nem que ela fosse um insulto.
Ele sempre gostou de me ver sofrendo, de me jogar na lama. De me ver bêbado e fracassado nos bares sujos do porto, cantando lamentos e brigando. Tudo isso por um beijo dele. Dizia que meu sofrimento era o combustível de sua poesia. E eu inflamava-o, gostava de dar a ele minha pele como papel e meu sangue como tinta. Tudo para ver aqueles lábios entreabertos tremendo em dizer o meu nome.
Em seus lábios, até um insulto é uma ode, uma cantiga, nem que seja de escárnio. Seus lábios doces e macios, que outrora percorreram cada centímetro do meu corpo pasmoso, hoje não me dizem sequer uma palavra.
Sinto falta de suas mãos em volta de meu pescoço, fazendo carícias ladinas, quando ele elogiava meu perfume, quando depositava mordidas... Eu as exibia feliz, pelo campus da universidade. Saía de mãos dadas com ele, para o deleite de toda aquela gente branca e séria,  achava um impropério um garoto tão brilhante como eu, ficar a mercê de um "sádico" (ele ria quando chamavam-no de sádico), como Guilherme Peixoto.
Mas aquilo era uma mascara, um personagem fictício que ele encarnava para modo de se apresentar ao mundo. Mas quando éramos só nós dois, ele era a mais lírica das criaturas.
 
- Por que me quis aqui se não fala comigo ? O que eu fiz para merecer tamanha desprezo ? - disse eu com uma voz inexpressiva, quase mecânica.

Guilherme não falou nada, mas pude ver seu sorriso oculto pela capa do livro. Era isso, ele estava fazendo um experimento e eu era a cobaia.
Eu estava em uma postura ridícula: Com um bico enfeitando a cara e os braços cruzados como duas barras de ferro protegendo o peito. Como um cavaleiro que guardava com a própria vida um castelo de pedra.

A casa azul estava diferente, mais sóbria, careta com seus quadros de paisagens e sua mesa de vidro. Eu não sabia como, mas a casa cheirava sono. Como se desde a minha partida, tudo ali tivesse adormecido, tudo doía os olhos, tudo monocromático e simplório. Assim como estava o meu Guilherme.
Reparando bem, suas feições estavam pálidas e exaustas. Seus cabelos  castanhos estavam despenteados e sua camisa vermelha estava amassada e com as mangas puídas, gastas pelo tempo que, ironicamente, eram apenas dez meses, pois comprei a camisa para ele antes de Minha viagem.
Alguns já tinham me avisado que desde minha partida ele tinha se entregado as traças, a uma loucura cega e silenciosa. Mas o que poderia eu, no auge de minha incompetência fazer ? Guilherme sempre foi dos mais arredios, sempre disse que "preferia homens a mulheres, pois mulheres tinham uma mania incontestável de superioridade." Ele me adorava e eu me gratificava transformando todo o  meu amor cego em submissão.

 Como num repente ele deposita tranquilamente o livro de capa azul na mesinha ao lado, em seguida apaga o cigarro no cinzeiro de prata e retira óculos redondos. Ele olha diretamente para mim.
Sinto-me nu diante de seus olhos, claros como um trovão. Ele me despia descaradamente, me fuzilava como um comunista na França nazista.
Ele levanta, meio cambaleante, vai até a outra extremidade da sala e coloca a agulha no disco, logo depois pega um charuto e acende, esbaforindo aquela maldita fumaça na minha direção. Em seguida, o disco começa a dar sinais de vida.

Você penetrou como o sol da manhã
E em nós começou uma festa pagã
Você libertou em você a infernal cortesã
E em mim despertou esse amor
Atormentado e mal de Satã...  ��

- Ousado de sua parte, vir a casa de um sádico como eu. - disse ele cruzando as pernas. - você, um poeta tão requisitado, tão cultuado pela mídia e pela crítica, o grande Daniel Oliveira! Será que a sua imagem de poeta bem quisto sobreviverá ao ser visto na casa de um ser tão fétido como eu. Com certeza, conquistará saíra das colunas de literatura e irá coluna direto para a coluna de fofocas Leão!

- Você não é nem um pouco sádico Guilherme, não para mim. Com você eu passei os momentos mais ternos, mais doces que um pecador  como eu direito. - disse eu de todo o coração, mas na tentativa de conseguir um sorriso.
Mas só consegui arrancar dele um olhar de desdém.

- É isso que você tem escrito nos seus livrinhos, é com esse tipo de material que você tem conquistado os Estados Unidos ? Essa baboseira sentimentalista ? Esses gritos de voz embargada por vinho do porto que saem do fundo dessa sua alma patética de fracassado francês ? Sinceramente não li seu livro, mas achei no mínimo que o  tempo que passou comigo, aqui, nesta casa tinha lhe servido de alguma coisa. Mas vejo que nem os meus ensaios freudianos nem minhas poesias de Pessoa ajudaram você a fazer algo que preste.

Ele queria me atacar, queria ferir meu ego para se igualar ao seu coração. Por mais que eu saiba que é despeito pelo sucesso dos meu livro. Podia muito bem dizer que diferente dele, tudo aquilo que eu escrevia era verdade e era meu, diferente dele e do que ele escrevia, que não passava de  uma farsa anarquista. Mas em procuro não dizer nada, mantendo a minha submissão.


- Você pintou alguma coisa enquanto estive fora ? Ouvi murmúrios que você de quadros lindos, um até inspirado em mim. Qual é o nome mesmo... - quis fazer um charme, sabia o nome do quadro como sei o meu - Fogo Morto. Onde está ele.

- Você faz muitas constatações em perguntas, extrapolando a lógica de uma pergunta, que é informação. - diz ele dando uma longa tragada no charuto. - mas sim, pintei muito nesses longos dez meses. Telas vivas, com expressões de horror, sempre pintadas de preto. Uma coisa meio surrealista meio cubista.

Ele expele a fumaça  do charuto e me analisa, como se a resposta da minha pergunta seja óbvia. Tenho medo de perguntar novamente, medo de ter uma resposta agressiva e de uma possível réplica hostil de minha parte, mandando assim às favas a suposta submissão.

- Enquanto ao nosso quadro Daniel Oliveira,  ao nosso Fogo Morto, deve estar ironicamente em cinzas, já que o queimei logo depois de fazer. As vezes me arrependo de tê-lo queimado, sabe ? Era lindo, estávamos nos dois, reles como somos, envolto a demônios que nos cercavam. O fundo era todo laranja, representando o fogo e nos éramos cinza, representando a consumação pelo fogo. - diz ele abandonado o charuto no cinzeiro e olhando com muito carinho para o nada - ele ficava na parade do nosso, do meu quarto. Bem na cabeceira, pois achava  que você me defenderia dos demônios. Com o passar dos dias, comecei a ter sonhos desconexos relacionados ao cenário do quadro, até o dia de perceber que você era o demônio que assombrava os meus quadros e os meus sonhos.

Aquilo acertou o meu eu-lírico como um pai de santo descompensado acerta seu filho com uma tainha.

- Você está sendo injusto comigo Guilherme. Fala e age como se eu tivesse culpa de tudo que aconteceu. E pior, me estrangula como se eu tivesse culpa de eu ter sido escolhido no seu lugar. Como se antes de tudo isso eu não tenha sido a criatura que mais te amou nessa sua vida infeliz.

Ele ri, mas sei que aquele riso de pouco caso é a ultima das armas dele. Que eu tinha conseguido (novamente) acertar em cheio seu coração.

 - É o mínimo. Eu te tirei daquela redoma em que você se encontrava. Burguesinho quadrado que não saia da barra da saia daquela garota que mais parecia uma preguiça bêbada agarrada num bambu. Eu construí o ser que todos esses bostas metidos a críticos ovacionam. Sem mim, você continuaria sendo o criolo sestroso que eu levei para o submundo. A quatro anos e meio, quase cinco

- E em troca, esse criolinho sestroso te deu bem mais que o amor que uma pessoa da sua espécie merece. - disse eu cuspindo aquelas palavras como se fossem feitas de ácido.


Ele apenas sorriu de canto e ficou parado, como se fitasse o desconhecido. Ele era lindo assim. Na realidade era lindo de qualquer jeito, mas quando aqueles olhos que já foram meus olhavam para o vácuo... Era a coisa mais linda nele, aquele mistério.

- Não entendo como você foi escolhido no meu lugar- disse ele carregado de amargura - eu te ensinei tudo, toda a métrica e toda a rima! Eu criei você...

-... Certamente você nunca dará valor a mim e ao meu trabalho, se é que você considera as minhas "baboseiras sentimentalistas" como trabalho de escritor. Você prefere se entocar aqui, fugindo da verdade espantada que eu superei você, a sua suposta criatura.

Esperava uma cara deformada pelo ódio, mas ganhei apenas um olhar clínico, os olhos verdes ou azuis dele (nunca soube a cor ao certo), me penetraram como nunca fui, mas não consegui decifra-lo. Nunca consegui na verdade.

- Nós sempre fomos perfeito um para o outro. Nós nos éramos a dupla perfeita, na cama e fora dela. Éramos celebres e líricos e sãos... Mas você tinha que estragar tudo, você e essa sua homossexualidade explicita! Eu ainda amo você Daniel, mas não sei se o ódio não é maior.

Naquele momento, tive vontade de gritar. Gritar tão alto que toda a vizinhança escutasse, que até os nós do ultimo dos porões fosse desfeito.

- Eu sei como é - disse eu de olhos semicerrados - passei quatro anos assim, relevando as suas traições, muitas delas com amigos nossos, debaixo do meu nariz. Acha que eu não soube, de você e daquela outra fulana do cabelo de arco-íris ? Você realmente acha que eu sou tão tapado ao ponto ? - Eu levanto e sinto meu corpo crescer, como se tudo aquilo fosse uma grande verdade esquecida - todos me olhavam, cochicavam... E eu aguentei, Mesmo passando dias a fio, sozinho! Sabe por que Guilherme ? Porque eu te amei.
 

- Você seria entediante se não fosse por mim.

Dito isto, ele apenas me olhou relance por alguns segundos, depois apanhou o livro de poesias de novo.
Eu tinha ganho. Enfim ele tinha me dado o direito de ganhar, sem eu estar nu e estirado na cama, esvaído em sangue, sem vento batendo na minha janela, sem bolero, sem blues.


- Vamos para o quarto. - disse eu indo em direção. Estranhamente ele me seguiu sem pestanejar. Chegando lá, notei uma infinidade de telas, terminadas ou não, uma crosta de tinta vermelha estava no chão e os lençóis macios da cama estavam sujos de tinta, como se alguém tivesse limpado a mão ali.


- Isso tudo faz parte de algum conto passional e depravado que você está escrevendo ? - pergunto eu deitando na cama de sapatos - você nessa sua cabeça está programando um conto e, no final o meu personagem vai transar loucamente comigo ?

- Desculpe se a insignificância dos meus contos ferem as borboletas e as nuvens de suas poesias.

- Me fere saber que nesses dez meses, nessa cama onde eu estou deitado agora, passou todo tipo de gente, incluindo aquela vagabundinha do cabelo colorido.

- Foi tudo sexo - disse ele desabando em uma cadeira, numa outra extremidade do quarto.

É sempre essa a desculpa! - disse eu alterando a voz. - você é homem, tem lá suas necessidades... Você usa a desculpa de um pai de família. E eu nunca amei um pai de família.

- Mas você não entende Daniel ? - perguntou, irritado. Enfim tinha  percebido que ele estava se escondendo  no quarto para discutir o assunto. - Eu estava com ódio de você, você levou a minha oportunidade de ir até os USA, você levou  o seu amor! Eu precisava me vingar,  precisava que você soubesse que eu estava em cima dela, possuindo-a, que  eu comi a sua ex namoradinha!


 Mas de repente eu o vi estranhamente ferido, não queria aumentar o problema.

Acendi um cigarro e atirou a verdade na cara como um pastelão:
 
- Pois muito que bem. Você me feriu, satisfeito ? Mas todo sofrimento é uma aprendizagem e nenhuma dor é eterna. Eu sobrevivi as calamidades, a ruína e a morte. Quando eu soube que você tinha deitado com ela, deus, como eu sofri! Um vazio imenso percorreu o meu peito. Mas eu aprendi a viver com ele, sentir o vazio de bom grado.

Ele sabia o que eu ia dizer em seguida, por isso vi algumas lágrimas escorrendo de seus olhos.

 -Chega Guilherme, você já teve o seu direito de fazer da minha vida um inferno na terra. Terminamos.

- Você disse que eu era tudo pra você.

 - E você é, quer dizer, era.

Dito isso, eu me levantei da cama e fui em direção a porta. Foi o ultimo momento de sofreguidão que eu tive. Da porta, ouvi-lo dizer em estado grave:

- Você não vai me esquecer, eu sempre vou estar nessa merda dessa sua vida!

- Adeus Guilherme.

E saí.

 



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