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História A Parte do Show - Capítulo 2 - Artistas da Sociedade de Mármore


Escrita por: carolinafherdy

Notas do Autor


Yay, gente!
Então: eu prorroguei a data, e ainda assim consegui me atrasar. Muitos imprevistos. Desculpem por isso, sinceramente. Me esforçarei para que não torne a acontecer.

Capítulo 3 - Capítulo 2 - Artistas da Sociedade de Mármore


Capítulo 2

Artistas da Sociedade de Mármore

 

            Clarice encarou a pilha de pratos. Eram quatro, ao total. Deus, como uma casa sujava tanta louça! E ninguém cuidava nem ao menos do que usava; jogavam tudo nas costas de um.

Nas costas dela.  Certo, tudo bem que o padrasto saía cedo para trabalhar na prefeitura, e que hoje a mãe estava fora, fazendo compras e vendendo seus cosméticos. Mas e a irmã? Ana Beatriz não movia uma palha para ajudar!

            Saíra junto da mãe, dizendo que ia rapidinho na casa de uma amiga. “Eu volto e passo pano nos móveis! Esquenta não, maninha!” É, o cacete que voltaria. Os móveis causavam dor nos olhos de tão limpos e brilhantes. Não se via um grãozinho de poeira no chão. E as janelas? Verdadeiros espelhos! Mas quem tinha limpado tudo, hein, Dona Bia?

            Sua irmã a tirava do sério, fato. Mas não podia reclamar. Graças a falta de responsabilidade dela, Clarice tinha o aparelho de som da sala ao total dispor. Nada de fones de ouvido, nada de gente chata a mandando calar a boca. Em uma casa onde assobiar no banheiro incomodava, isso significava muito. Então, pôs várias playlists para tocar em sua conta do Spotify,, conectou o celular no som em volume alto, e cantou igualmente alto enquanto varria, esfregava e espanava.

            Estava lavando o primeiro prato da pilha quando a música parou. A última playlist executada tinha acabado. Conhecia a maioria das músicas, sabia a letra inteira da metade; uma seleção bem divertida. Mas quando o silêncio se instaurou, dando lugar àquele zumbido estranho nos ouvidos, começou a bater o pé no chão e solfejar qualquer coisa. Um som novo para tocar na cabeça e espantar o zumbido.

            Foi quando tirou água de dentro de uma panela, para areá-la, que se deu conta: estava solfejando a mesma melodia por um bom tempo. E era uma melodia legal, até. Improvisada de última hora, lembrava vagamente qualquer coisa que ouvira antes, mas legal, ainda assim. Será que conseguiria fazer algo que prestasse com ela?

            Deixou a panela, a esponja de aço dentro, enxaguou as mãos e as secou de qualquer jeito nos shorts. Não vestia blusa e o top estava molhado de água, espuma de detergente e suor. Atravessou a cozinha em dois passos longos, adentrou o corredor e virou no quarto que dividia com a irmã. O violão estava encostado no guarda-roupa, perto da porta. Apanhou-o e arrancou a capa, jogando-a em cima da cama de Bia. Sentou-se na sua própria, ao lado, e posicionou os dedos nas cordas.

            Pensou na melodia. Ouvia-a tocando na cabeça, e imitava os sons no instrumento. Cantarolava junto, para escutar as notas certas. É, até que alguma coisa saía... Uma música suave, lenta, mas não melosa; algum tipo de Indie romântico. Já tinha uma idéia  de como seria o ritmo. Abafou as cordas com a mão direita e tocou-o. Sim, assim mesmo. Uma batida lenta, mas com certa marcação. Tinha que gravar.

            Uma porta de carro bateu na rua. Droga, será que era sua mãe? Ou Eduardo? Merda... Gravaria depois. Primeiro, tinha que terminar com a louça, isso sim. Talvez bolasse uma letra enquanto trabalhava.

            Levou o violão consigo para a cozinha. Nunca se sabe quando vai ter um novo insight. A mente escolhia palavras ao acaso, “amor, saudade, brisa”, e ela quase colocou-o em cima do celular, que estava na mesa. Que distraída... Melhor equilibrá-lo em uma cadeira. Além do mais, aquela toalha de mesa era nova. Sua mãe não a notaria com um instrumento grande cobrindo os bordados bonitos.

            Na pia, esfregou um pouco mais a panela com a esponja de aço. A melodia remetia a quê? Amor? Não, não amor... Muito brega. Em saudade sim, mas uma saudade gostosa, agradável... Como sentir saudade de alguém que se sabe que logo vai encontrar de novo. E brisa, ela tinha pensado em brisa também, não é? Sim, porque... Porque a melodia era suave como uma brisa do mar. É, isso! Uma música que fale sobre estar à beira mar e se lembrar de alguém de que sente saudade!... Interessante... Precisava pensar em palavras rimadas; que se encaixassem com o contexto.

Ela pensou. Experimentou versos, fez e desfez combinações, enquanto a louça diminuía. Lavou e limpou a cuba, arrumou melhor os talheres no escorredor, e por fim, com as tarefas finalizadas, duas estrofes estavam mais ou menos planejadas. Uma delas podia bem ser um refrão. Pegou o violão, sentou-se e abriu um aplicativo do celular, um gravador de áudio com qualidade. Não ia ensaiar. Tocaria, saísse o que saísse, para ouvir e refletir sobre depois.

            Primeiro, a introdução. Já a tinha planejado antes de se preocupar com a letra. Três acordes cadenciados, algumas notas dedilhadas entre eles. Ótima... Ficou tão bonita que suprimiu a vontade de soltar um gritinho! Fez uma pausa, deu duas batidinhas na madeira, tanto para acalmar os ânimos, quanto para enfatizar o começo da canção, propriamente dita, e cantou a primeira estrofe. A voz limpa, clara, aguda e controlada, ecoou nas paredes. Nossa, o conjunto ficou perfeito! Mas calma, calma... Nada de emoções fortes, para não quebrar a atmosfera.

            No terceiro verso do suposto refrão, bateram à porta. Merda! A gravação estava ótima!

— Abre pra mim, Clarice!

            Era sua mãe. Batia insistentemente e com força. “Espera, que droga, está mijando nas calças ou o quê?”

            — Calma, já vai...

            A porta estava logo ao seu lado. Só precisava deixar o violão. E nesses poucos segundos que levou para fazê-lo, os vidros já tremiam de tanta pancada. Esticou a mão para as chaves e as girou. Sua mãe a abriu, esbaforida, carregando pelo menos três sacolas de compras, bem cheias, em cada braço. O rosto moreno e rechonchudo reluzia de suor.

            — Caramba, por que demorou pra abrir? — Pôs as sacolas no chão e fechou a porta. — E eu com esse peso todo... Gente... Que calor infernal que está aqui dentro! Abre essa janela!

            “não,  mãe, deixa fechada... O vento vai encher o chão varrido de poeira...” Mas ela nem pôde tomar fôlego para expor o pensamento. Sua mãe não terminara o monólogo.

            — Clarice, você ainda ta com esse violão? Eu já não mandei você devolver pro Gabriel? Poxa, já cansei de falar que se essa merda quebrar aqui em casa, eu não tenho dinheiro pra dar outro pra ele!

            — Mãe, eu vou levar...

            — O cacete que você vai levar! Vai é guardar essas coisas! Eu ainda tenho que fazer a janta! Ai, meu Deus... Eu tô tão cansada... Queria poder sentar e ver a minha novela, sabia, mas ainda tô cheia de coisa pra fazer!

            E era isso. Nenhum agradecimento por limpar a casa. Nenhum elogio à escolha da toalha de mesa. Mas muito, muito a dizer. Tantas palavras, Coisas fora de lugar... As janelas escancaradas, sujando tudo de novo. E nem mesmo conseguiria terminar a música. Clarice sentiu um desconforto na boca do estômago, indo e voltando à garganta. Um bolo indigesto. Trancou os lábios e apanhou os sacos de frutas e legumes. Estavam muito pesados. Agachou perto da fruteira, uma armação de madeira suportando três cestos de metal, encostada entre a pia e a geladeira.

            — Quando acabar aí, coloca uma blusa e vai devolver esse violão. — Sua mãe mexia em alguma coisa nos armários do outro lado da pia. Não se virou para olhar. Ela poderia ver sua expressão, fosse lá qual fosse. Sentia as bochechas ardendo e a pele trêmula ao redor dos olhos.

            Gastou vários minutos, ou pelo menos eram o que achavam suas pernas doloridas, esvaziando duas sacolas absurdamente cheias na fruteira. Levantou, as costas protestando como as de uma velha, e levou uma terceira  à geladeira. A mãe não estava mais ali. Devia estar tomando banho quente, já que as luzes piscavam. Queria tomar também, antes de ir à casa de Gabriel. Jogar água quente nos ombros, esfregar a tensão para fora do rosto. Expelir de fora para dentro o bolo do estômago... Um pensamento esquisito: como uma coisa sai de fora pra dentro?

Sorriu. A menção ao namorado a relaxou. E também, seria bom caminhar na rua, pegar um vento no rosto. Contaria sobre a música, ele ia gostar de ouvir. E se não estivesse ocupado, ela ficaria um pouco de tempo lá. Fora de casa, curtindo alguém que a curtiria de volta.

            As luzes continuavam piscando. Não dava para esperar mais, tudo indicava que sua mãe não fecharia o chuveiro tão cedo. Foi ao quarto, de frente para o único banheiro da casa. Abriu o guarda-roupa, em cuja porta havia um espelho. Olhou-se. Seu cabelo estava uma bagunça. Ajeitou-o de qualquer maneira, com os dedos mesmo, prendendo os fios atrás das orelhas. Trocou o top molhado por um sutiã, agarrou a primeira camiseta que encontrou e vestiu. Pegou a capa do violão, caminhou até a porta do banheiro e bateu com os nós dos dedos.

            — Tô indo no Gabriel! — Gritou.

            A mãe respondeu qualquer coisa inaudível. Decidiu supor que se tratava de uma resposta afirmativa. Caso contrário, ela não dobraria a esquina sem saber.

            Gabriel era um ótimo namorado. E acima disso, um ótimo amigo. Se não fosse ele, Clarice não comporia. Não dá para compor sem um instrumento musical; a  idéia fica rolando, sem forma, imprecisa. É necessário escutá-la, praticá-la. E é aí que entra Gabriel: ele tinha um violão. Ele acreditava no talento da namorada, ele a incentivava.

            Como já sabia, o vento estava a nível levantar poeira do lado de fora. Faltava pouco para o Sol se pôr, o asfalto esfriava e a brisa marítima ficava mais aparente. Venta bastante em Campos Fortunato, mas a essa hora do dia, venta mais. Protegeu os olhos com uma das mãos. Caminhou uns metros e virou uma esquina à esquerda. A próxima, um pouco mais a diante, ao lado direito, desembocaria na rua de Gabriel. Perto o suficiente para não cansar as pernas, mas longe o bastante para respirar um pouco. Ouvir as folhas balançando nas árvores, as ondas quebrando na praia, há alguns quarteirões dali,mas ainda audível. Ou talvez, não fosse possível ouvir o som do mar; mas sentir o cheiro da maresia e imaginá-lo. Um fim de tarde bem gostoso; Bem condizente com a sua música, também. Estava ficando tão bonitinha, não estava?

            Apertou o celular. Trazia-o na mão, a livre de segurar o violão, já que os shorts não tinham bolsos. Pena que a gravação estava ruim. A mãe espancando a porta e tudo o mais. Droga... Como as coisas são injustas! Se Bia dissesse que queria um segundo de silêncio para gravar alguma coisa, a mãe e Eduardo construiriam um estúdio. Que ela usaria por uns dois meses e abandonaria, é claro, como fez com o curso de Inglês, de Informática e de Artesanato. Mas se Clarice pedisse um instrumento musical, um violão de treino, alguns custam menos de duzentos reais, ah, não! Não dá, a família não tem dinheiro para gastar com besteiras!

            Entrou na rua de Gabriel. Engraçado: os pais deles tinham a mesma condição financeira que os dela. Dona Luzia vendia produtos da Erba Life e Seu Maurício era colega de trabalho de Eduardo; funcionário da prefeitura. E Gabriel tinha um violão. Mas... Pensando bem ele era filho único, né? Ah, e daí, Por mais um pouco, Bia também seria! O papai, a mamãe, a filhinha e a empregada doméstica...

            — Ei, psiu!

            Clarice sobressaltou-se. Segurou as coisas que carregava com força contra o corpo e olhou em volta. Na calçada, sem camisa, recostado em um portão de grade entre aberto, estava Gabriel.

            — Ai, garoto, que susto!

            E claro, ele ria.

            — Isso é um assalto! Quero celular, dinheiro, violão... — Ele se aproximava mais a cada palavra. Esticou o braço e pousou a mão no ombro dela. — E quero um beijo.

            — Sai, nada de beijo! Você quase me matou de susto!

            Mas ela também ria. Um sorriso de canto de boca, meio trêmulo, o coração quase martelando um caminho para fora do peito... E havia outra coisa: alívio. Felicidade. Ali estava seu lindo, e compreensivo, namorado. Bronzeado, meio magrelo, é verdade; os olhos, dois poços de gentileza, que mais parecia chocolate derretido.

            Beijaram-se antes de ele pegar o violão e conduzi-la para dentro do quintal ladeado por canteiros. Sentia cheiro de grama ressém-cortada, café e a loção pós-barba de Gabriel, a que ela dera de presente de Natal. Em volta dos ombros, o braço esguio e forte dele. Respirou fundo e sorriu mais abertamente.

            — Que foi? — Ele perguntou. — Tá feliz?

            — Na verdade eu tô puta... Quer dizer, não agora, mas... — Deu de ombros. — Deixa pra lá. Só um estresse básico lá em casa, mas já ta passando.

            — Que houve agora?

            Sentaram-se na varanda. Clarice contou tudo, desde a música até o escarcéu da mãe. Gabriel acenava e fazia piadas. Ela ria e lhe dava tapinhas no ombro, fingindo-se de emburrada. Beberam café juntos, falaram bobagens. Ela cantou a música. Ele não parou de sorrir um instante sequer.

            O melhor namorado do mundo; sem a menor sombra de dúvida.

 

*——-*

 

            — E no fim, quando o espectador descobre que a mocinha, a heroína que ele acompanhou por mais de uma hora de filme, não só fracassou, mas sua melhor amiga será a próxima vítima, fica desorientado. Falta o chão, o apoio confortável do clichê. E acredite, essa foi a intenção do diretor desde o começo do filme. Construir uma base sólida...

            Batidas na porta. Ariel estava muito longe, mas ouviu assim mesmo, graças ao eco que qualquer som causava ali na garagem. E se ele ouviu, com certeza o microfone também havia captado. Clicou no botão Pause que piscava, grande, no centro da tela do computador.

            — Mãe? — Chamou, levantando-se da cadeira.

            — Sou eu! É só pra te avisar que já cheguei do trabalho!

            — Tá bom!

            Recuou para sentar outra vez. Sua mãe agora iria para o banho e não o chamaria de novo, pelo menos não até a hora de jantar. Mas ela gritou outra coisa lá de cima.

            — O que foi?

            — Eu falei que comprei chocolate! — Ela repetiu.

            — Ah! Obrigado!

            Voltou-se ao notebook. Ao lado direito da máquina, sobre a mesa de ferro, daquelas desmontáveis, um mouse com pequeninas lâmpadas de Led. Sobre o teclado, headphones com microfone acoplado, e mais Led em volta do arco. Gostava de ter aquele tanto de luzes piscando ao mesmo tempo. Garantia um ar mais tecnológico à sua garagem inutilizada, ao menos para guardar carros. Não tinha carteira de motorista, nem pretendia tirar tão cedo. A mãe não renovava a dela há anos, talvez pelo mesmo motivo. Manter um carro requeria uma condição financeira que eles não tinham. Por isso, a garagem da casa dispunha de um ventilador de pé, pôsteres temáticos de filmes, cartoons e animes nas paredes, e uma porção de outras parafernálias indispensáveis para um lar de um geek que compartilha sua cultura através de vídeos postados no Youtube. Tudo comprado graças aos cinco meses trabalhando de bar tender.

            O botão que piscava no monitor era Record. Clicou e prosseguiu com suas impressões sobre o filme. Toda semana ele fazia isto: escolhia alguma arte com propostas diferentes dos padrões; algo que julgasse quebra de clichê. Preparava um roteiro com os apontamentos que faria, incluindo o que diria sobre, quais imagens ou músicas ilustrariam melhor cada momento do discurso, e por fim, montava tudo separadamente. Gravava uma introdução e um encerramento com a câmera do celular.  Desse modo, só era possível ver seu rosto no começo e no fim do vídeo. O desenvolvimento ficava por conta de edições de trilhas sonoras, fotografias ou filmagens, acompanhando a fala, a qual gravava por último. Era da fala que cuidava agora, alternando o olhar entre a parte visual, já pronta, e o esboço de roteiro, escrito a mão, em um papel ao lado do mouse.

            As edições finais eram o pior. Pegar os vídeos gravados no celular e transferi-los para o computador, igualar a qualidade das imagens e consertar os erros de gravação do áudio. Este dava especial trabalho, principalmente quando o microfone captava o rangido da cadeira ou do ventilador.  Não sabia lidar bem com editores para tirar esses ruídos. Por fim, quando tudo estivesse pronto, sincronizava áudio e vídeo. E voila! Um novo trabalho para seu canal, o Para Paradigma.

            Mexeu no áudio o melhor que pôde. Não estava perfeito; se aumentasse o volume dos fones, conseguiria ouvir, ainda que quase indistinguível, o barulho do ventilador. Teria que desligá-no das próximas vezes. Torceria para que os internautas se distraíssem com o conteúdo e com as trilhas sonoras; elas ajudaram bastante. Suprimiram os ruídos muito bem. Sim... Ia funcionar.

            Levantou-se e caminhou até os lances de escadas que conduzia à cozinha. Chocolate, sua mãe tinha dito? Um ótimo estimulante. Sempre bom comer ou beber alguma coisa gostosa enquanto sincronizava os arquivos para montar o vídeo. Deixava a tarefa menos tediosa. Qual chocolate seria? Tomara que ela tenha comprado aquela barra com amendoins...

            Estava na curva entre um lance e outro quando ouviu uma voz masculina. Um pouco distante e abafada, não conseguia reconhecer. Visitas? Não estava tão tarde, mas já era noite... Quem os estaria visitando? Bem, tentaria espiar antes de se pronunciar. Se fosse algum parente ou vizinho chato, voltaria para a garagem.

            No último degrau, Ariel gargalhou das próprias idéias. À esquerda, formando um L com relação as escadas e o patamar, que servia de varanda e área de serviços, a porta da cozinha estava escancarada. Quem estivesse lá dentro podia vê-lo claramente. Seu plano de olhar e fugir teria ido por água a baixo, não fosse um detalhe: quem estava lá dentro não via coisa alguma.

            — Tá rindo de quê, seu maluco? — Haru perguntou. Ariel já se denunciara, afinal, com sua risada espontânea e escandalosa.

            — É você que ta aí, feioso? Achei que fosse alguém mais interessante! — Brincou, aliviado. Não era um parente ou um vizinho inconveniente. O oposto disso, Haru era sempre um amigo bem-vindo.

            — Ai, tadinho! — Sua mãe repreendeu de algum lugar no interior da casa; a sala, talvez.

            Abraçaram-se. Ariel nunca diria em voz alta, nem pretendia dizer; mas adorava abraçá-lo. Haru era gordinho, e uns dez centímetros mais baixo. Olhar para ele também era muito divertido. Tinha aqueles olhinhos pequenos e puxados, como os de um típico asiático. E quando sorria, aas maçãs do rosto se erguiam e os olhos ficavam ainda mais estreitos. Visualizava-o facilmente estampando alguma revista em quadrinhos, ou qualquer tipo de arte cômica que levante estereótipos  sobre o Japão.

Naquele dia, acentuando o típico visual que transitava entre garoto desleixado e vestido pela mamãe, usava uma camiseta sem mangas e bermuda tactel. Mas os chinelos eram de marca, e estavam inacreditavelmente limpos. Mas a carinha de japonês estereotipado e a vontade que transitava perigosamente entre dar risada e apertá-lo com afeto a cada vez que Ariel o olhava não desapareceriam mesmo se ele andasse por aí sem camisa e com uma tatuagem nas costas. O que jamais faria, de qualquer jeito. Deixar o cabelo preto e liso crescer estava sendo sua maior rebeldia até então.

            — E aí, ta ocupado?

            — Não mais. — Ariel passou pelo outro, que apenas girou o corpo em sua direção, mas não se moveu. Caminhou até a geladeira. — Tava terminando o vídeo dessa semana só...

            — Ah, desculpa, é que eu pensei...

            — Não, não, tudo bem, já terminei. Ia começar a editar agora. — Abriu-a e apanhou a barra de chocolate. Meio-amargo com amendoins! “Valeu, mãe!” — Bom que você ta aqui, assim me ajuda a consertar uma coisa no áudio.

            Desceram juntos. Ariel não se lembrava da última vez em que precisou orientar Haru nas escadas. Aliás, já não o orientava em parte alguma da casa. O garoto andava confiante, desviando dos obstáculos como se conseguisse vê-los com os olhos fechados. Experimentara fechar os próprios uma vez, e o resultado foi uma colisão bem desagradável com a quina da mesa da cozinha. No andar de baixo, sentaram-se no chão e dividiram o chocolate. Não precisaria mais dele para aliviar o tédio enquanto editasse o vídeo, mesmo. Conversar com o amigo seria muito mais eficaz.

            — Me conta da viagem, — pediu, comendo um quadradinho de chocolate em pequenos bocados para aproveitar cada amendoim.

            — Ah, foi maneiro... Sabe como é, viajar com o Alê e tal...

            — Uhm uhm, sei não.

            — Ah... Ele é muito mais de boa que minha mãe, saca, a gente não ficou preso dentro do SESC e tal... E tipo. — Soltou sua típica risadinha estridente. Lá estavam os olhinhos apertados! Uma cena cômica e fofa, incrementada por um dos cantos da boca sujo de chocolate. — A gente foi numa festa, saca, e lá tinha cerveja, aí minha mãe ficou toda: ah, que você não pode beber, mas aí o Alê conversou com ela...

            — E você ficou doidão.

            Riram. Um adolescente de dezessete anos se vangloriar do padrasto que o liberou algumas cervejas seria algo patético, mas não vindo de Haruki Watanabe. Ariel o conhecia há pouco mais de dois anos , e por conseqüência, conhecia a mãe dele. Uma mulher que sufocava o filho de tanta super proteção. Foram meses até que ela permitisse que Haru saísse com Ariel, ou o visitasse em casa. Então, sim, estava genuinamente feliz que ele conseguira ser um adolescente descabeçado normal, mesmo que por alguns dias, mesmo que sob as asas da mãe e do padrasto.

            — Ah, doidão não, né... Até parece que eu ia chapar.

            — Sei lá, você ficou uma semana viajando, vai que virou um porra louca?

            Tentaram fazer o chocolate perdurar o máximo de tempo possível. Conversaram amenidades, sobre o tempo que passaram sem trocar mensagens ou ligações, o que fizeram de bom, ou não, na virada do ano. Ariel fingiu decepção ao saber que o amigo tinha beijado uma garota.

            — Então você é hétero mesmo, né?

            — Sou, cara. Foi mal aí, mas eu gosto mesmo de garotas.

            “Sortuda ela”, pensou. Haru merecia uma menina que valorizasse toda aquela fofura. Ele seria um bom namorado. Um pouco bobo, talvez, e também teria que se livrar da mãe. Mas quando superasse esses pormenores, certeza de que seria um excelente namorado. Inteligente, atencioso, prestativo... Ele próprio gostaria de um homem assim. Não Haru, claro; não o seu japonês estereotipado, quase um irmão mais novo.

            — E então, pra que você quer minha ajuda? — Ele perguntou, após comer o último quadradinho de chocolate e amassar a embalagem nas mãos. — No lance do vídeo lá?

            — Ah! Eu ia deixar isso pra lá... — Levantaram-se. — Mas acho que você vai conseguir arrumar. É que eu gravei o áudio, e acho que dá pra ouvir o ventilador no fundo...

            Enquanto Haruki inseria comandos no teclado do notebook, os fones na cabeça, pelos quais ele ouvia o seu leitor de telas, que falava rápido demais e o guiava pelo sistema, Ariel voltou à cozinha, pegou Coca-cola, dois copos e avisou a mãe que jantaria na garagem. O vídeo não sairia na hora em que ele costumava postar às Quartas, mas sairia. Isso que importava.


Notas Finais


Não se esqueçam de me alertar sobre qualquer problema na escrita, erros de formatação... Sas coisa. O próximo capítulo chegará no dia 27/11, Segunda-feira. E será o último com essa vibe de introdução de personagens, prometo <3
Então, até lá!


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