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História Alma Sépia: Oraculo Onirico - Prólogo: Antifona do Despertar Violento


Escrita por: 23seele

Capítulo 1 - Prólogo: Antifona do Despertar Violento


Prólogo: Antífona do Despertar Violento

 

“Passamos a vida a mentir, até, sobretudo, talvez apenas, àqueles que amamos. Com efeito, somente esses podem pôr em perigo os nossos prazeres e fazer-nos desejar a sua estima."

_Marcel Proust

 

Sete Vidas. Uma Única História.

O emaranhado do Destino, as linhas tortas pelas quais Deus escreve. O mundo atual dorme em uma grande mentira, em uma grande ilusão. Assim como os Lotógafos, vivemos em constante alienação da realidade, de nós mesmos, de nosso propósito de vida e de existência. Buscamos Deus em templos materiais, sabedoria na boca de mentirosos, conforto nas riquezas e amor no coração dos outros. Buscamos a nós mesmos através do espelho e nos perdemos durante o caminho. Estamos cansados demais para lutar, e apegados demais para saber sacrificar. O sonho sempre será melhor que a realidade.

Nos acomodamos com a vida que nos é imposta, nos dopamos com essas doses de realidade e nos acostumamos com pouco, nos contentamos com as limitações. Vivemos e morremos como se nunca tivéssemos existido e nos convencemos que fomos úteis de alguma forma.

Porém, quando uma alma acorda dessa ficção, ela percebe que é a única desperta neste mundo em coma. Um mundo que adormece em egoísmo, indiferença, preconceitos, guerras, fome, desigualdade e solidão. Essa alma quer despertar os outros, mas eles estão presos na Caverna de Platão.

Sara e Daniel já haviam corrido o máximo que podiam, estavam cansados e não havia mais onde se esconder. Era muito difícil correr no meio da floresta sendo que o menor sinal ou movimento denunciavam a sua localização. Além do mais, como poderiam fugir de criaturas que se moviam tão rápido que apenas se via um borrão quando corriam desconsiderando a resistência do ar? Como poderiam se esconder de algo que poderia sentir a presença deles mesmo de olhos fechados? Eles não sabiam quantos vultos estavam ali, mas tinham certeza que eram mais de três. Mesmo que eles tivessem armas agora nada disso adiantaria (como já foi provado anteriormente)

A gravidade parecia aumentar a cada passo, era como se um folego fosse muito esforço e até mesmo expirar parecia complicado. Aquele ar de outono e cheiro de folhas mortas penetrava profundamente chegando a gastar o olfato de tanta variedade. A umidade era relativamente adequada para o clima e situação, mas algo estava diferente, era como se o firmamento estivesse caindo e a pressão não tivesse para onde ir, esmagando tudo embaixo tentado adentrar a terra.

A floresta dos índios era densa e famosa pelos relatos de pessoas que desapareceram e coisas sobrenaturais acontecendo. Lendas de bocas da escuridão engolindo pessoas inteiras, cavernas que eram labirintos para dentro da terra, luzes no céu derretendo pessoas e animais como se fossem formigas no foco de luz de uma lupa, pessoas desaparecendo na neblina e espíritos da floresta pareciam muito menos perigosos se comparados aos vultos.

Não importa qual seja a explicação. Aquilo certamente era mais real que qualquer coisa. O estranho é que eles não viram nenhum animal esse tempo todo que estavam correndo. Não havia insetos e o único som era o das folhas e do vento sussurrando através das arvores altas que não serviriam de esconderijo.

Por alguns segundos Sara se perguntou mentalmente se aquilo era um castigo, um tipo de punição ou uma provação que deveria passar. Seria uma lição de algo que ela se recusava a aprender e a vida estava ensinando da pior forma? Ela refez seu mapa mental, inutilmente traçando dela mesma até onde conseguia raciocinar, mas isso não adiantaria agora. (De que adianta rezar antes de morrer?)

Era algo muito cruel, mas de certa forma “apropriado”. Um fim digno? Ela realmente merecia isso? Talvez sim, talvez ela não tivesse ido à igreja o bastante, talvez não tivesse feito boas ações o suficiente em sua breve vida até agora. Talvez tenha lhe faltado conhecer mais da verdade, quem sabe tenha feito poucas boas ações e agora o universo estava retribuindo. Talvez tenha sido por conta de seus pecados, talvez isso fosse o destino, qualquer talvez serviria, na falta da verdade.

O sol estava quase se pondo, Daniel colocou a mão no ombro de Sara e desejou estar em outro lugar, pelo menos, se não pudesse sair dali, que ela pudesse. Desejou que ela escapasse daquilo mesmo que ele ficasse para trás e mesmo que isso lhe custasse a vida ele estava disposto a vê-la salva de qualquer forma.

O coração dela estava acelerado, não só pela corrida, mas pelo medo que crescia lentamente em cada passo. A certeza da morte ou algo pior que isso era quase tocável.

As coisas estavam acontecendo muito rápido, mais rápido do que qualquer um poderia aceitar e compreender claramente, mas alguma coisa especial nos dois alimentava essa força de vontade em sobreviver e ver o final disso tudo -que aliás, estava perdendo o significado quanto mais se pensava na situação. Era como perder progressivamente a razão ou até mesmo a memória de tudo que lhes havia ocorrido até agora apenas de pensar sobre isso.

-Eu estou cansada. –Disse Sara, se apoiando em Daniel também.

-Eu sei, mas temos que tentar encontrar os outros! –Disse ele, olhando a sua volta, procurando por inimigos. -Eu prometi que ia te tirar daqui!

Daniel estava mais cansado do que ela, afinal ele havia lutado contra uma das sombras anteriormente, e mesmo que tenha tido uma certa vantagem e ganhado tempo para fugir, isso consumiu muito da sua energia.

Subitamente ela foi tomada por um choque de realidade. Como eles haviam chegado ali? Como isso tudo chegou nesse ponto? O que realmente estava acontecendo?

Sabe-se que os sonhos são assim. Não nos lembramos do início dos sonhos, e começamos a lembrar deles a partir de um ponto especifico. Mas como chegar até ali, o que levou, o que desencadeou a série de eventos que resultasse aquele momento? A grande questão agora não era mais o porquê de aquilo estar acontecendo, mas na verdade como aquilo tinha ficado desse jeito.

De repente ela estava sozinha no escuro. Daniel havia desaparecido, então definitivamente isso só podia ser um sonho. Mas era tão real, tudo a sua volta era sensível e até mesmo a escuridão e a sensação de flutuar em um abismo de silencio e frio parecia real. Provavelmente isso era um daqueles episódios de paralisia do sono em que ela tentava acordar e não conseguia e por mais que tivesse um truque (sacudir a cabeça e os pés até acordar) não estava funcionando.

Uma voz surgiu do distante. Sara conseguia se ver, mas não conseguia enxergar mais nada a sua volta exceto por um bloco que estava levemente iluminado por algo vindo de mais longe ainda. Era um retângulo vertical, provavelmente com três metros de altura. Ela já havia visto algo assim em sonhos anteriores, mas não conseguia se lembrar exatamente do que era nem onde tinha visto aquilo.

-Onde estou? –Sara pensou para si, alto o suficiente para ouvir seus lábios sussurrando e ecoando as palavras que se perderam na escuridão.

Sara caminhou alguns passos mesmo sem saber onde estava pisando. Não havia solo, mas ela sentiu, de certa forma que o chão estava se formando a cada passo que dava. A voz que ela estava ouvindo ficou mais nítida e era algo parecido com um distante coral, ela pode distinguir pelo menos cinco vozes diferentes “cantando” em uníssono algo que parecia o som entre as vogais, todas ao mesmo tempo e em perfeita harmonia.

O bloco tornou-se nítido. Realmente era um retângulo como ela havia visto de longe, e parecia que as vozes agora estavam vindo de dentro dele. Com medo, e ainda sem saber o que fazer, ela se aproximou mais ainda do objeto que parecia hipnotiza-la, atraindo para mais perto com a fúnebre e sinistra melodia. Sara percebeu que aquilo tinha uma superfície espelhada, ela se assustou quando se viu, pensando que era outra pessoa. Enquanto tentava olhar para o objeto ela pensou em todas as coisas estranhas que estavam acontecendo nos últimos meses e tentou ligar, inutilmente, os fatos.

-Encontre-me! –Uma voz grave disse.

-Quem? –Ela não deveria ter perguntado. Era algo que não se costuma fazer em situações de perigo ou desconhecido. Mas não era o que Sara sentia em relação a isso.

-I... E... A... O... U... F... S.... –algo com essa sonoridade foi ouvido.

Outras vozes também pronunciaram coisas incompreensíveis que causariam calafrios na mais corajosa alma. Mas Sara não estava com medo, pelo contrário: estava curiosa.

Olhos de várias cores se abriram na escuridão, ela estava sendo observada. Os olhos demonstravam dor e desesperança, algo assim. Ela estava ficando com medo agora. O coral de vozes abissais foi diminuindo até que seu volume fosse baixo o suficiente para que fosse necessário forçar a audição.

-Porque nos abandonou? Não nos amava o suficiente? Não lhe adoramos o suficiente? Somos tão falhos e imperfeitos assim? O que nós fizemos? –As vozes agora se diferenciavam, mas ainda assim se ouvia um eco por trás de cada pergunta. Era como se os olhos estivessem falando. -Por favor, responda nossos apelos! Já faz doze mil anos e isso está doendo! Não aguentamos mais este peso!

Doze mil anos?

Ela não ouviu errado. Isso é mais antigo que a origem da escrita, mais antigo que a torre de Babel, mais antigo que qualquer coisa relacionada com a história da humanidade que ela tentou lembrar. Seja lá o que for que estiver acontecendo esse tempo todo e causando sofrimento a essas vozes, o terror da verdade tomou conta dela quando percebeu que provavelmente aquilo era anterior a humanidade. Se algo assim era possível, não haveria mais nada que não fosse imaginável.

Uma sensação horrível tomou conta dela. O que seriam aquelas coisas?

Antes que ela pensasse em qualquer outra coisa, o conjunto de vozes repetiu a mesma frase, na mesma entonação, como se estivessem lendo forçadamente um texto ou fosse somente mais uma ladainha.

Abandono? Amor? Adoração? O que isso tem a ver com perfeição? O que esses “seres”, essas vozes haviam feito ou com quem? Parecia a letra de uma dessas músicas de perda de um grande amor, em que tudo se torna tão absurdo e enorme como se fosse supremo.

Pela terceira vez a frase foi dita. As vozes pareciam falar por trás de paredes.

Sara estava tomada pelo horror. Ela não entendia o que estava acontecendo e quis gritar, mas não saiu voz. Sua mão tentou alcançar algo para se apoiar mas acabou acidentalmente tocando o retângulo negro. Sentiu um choque percorrer todo o seu corpo e a sensação após essa era de que cada célula de seu corpo estava virando do avesso, a sensação de que cada átomo estava mudando de forma e que seu corpo físico estava se desfazendo e se recompondo ao mesmo tempo.

O que é isso? Poderia ser o demônio? Seria um anjo? Seria uma abdução ou um arrebatamento? Não fazia diferença agora.

-Me encontre! –Disse a voz grave do início. Essa voz era diferente de todas as outras.

Toda a escuridão se desfez e Sara abriu os olhos. Será que tudo aquilo não passava de um sonho? Era real demais... A paralisia do sono havia causado mais momentos de terror do que ela se lembrava (isso estava acontecendo com frequência há alguns dias, embora a última vez que ela sentiu isso constantemente tenha sido na infância)

O dia havia começado. Em sete minutos o despertador iria tocar, então Sara se apressou e o desligou. Ficou ali parada uns instantes na cama, tentando apagar de sua mente tudo aquilo que havia acontecido recentemente em seu sonho.

 Ainda faltavam alguns minutos para que o sol surgisse no horizonte, espantando a escuridão e trazendo mais uma oportunidade.

Tentou cochilar por mais alguns instantes, ainda tinha alguns minutos de crédito. Pensou em várias coisas, quis orar, mas não sabia o que dizer, talvez Deus estivesse chateado com ela por alguma coisa que ela não se lembrava.

Os minutos passaram rápido como se fossem segundos, e antes que pudesse concluir seu pensamento atual, se assustou ao perceber que muito tempo havia passado.

Ela deveria se arrumar pois já estava atrasada. Eram as primeiras semanas de aulas do último ano letivo dela. Em breve todos estariam se separando, cada um seguiria seu rumo e a grande maioria das amizades feitas até ali se romperiam. Era inevitável: muitos jovens não queriam ficar na cidade pois ali só teriam sucesso se trabalhassem em algo da família ou fossem sortudos o suficiente para viver de herança e outras regalias.

O tempo, os lugares desgastados, livros inacabados, lugares não visitados, comidas novas não experimentadas e roupas não usadas estavam se tornando comuns e a lista aumentava cada vez mais. Era uma sensação de que a vida não estava sendo aproveitada e de que as coisas estavam perdendo o sentido. 

Essa cena, esse ritual se repetiria por mais algum tempo, antes que tudo tivesse perdido completamente o sentido e caído em um labirinto infinito de rotina e apatia. No entanto, seria bom olhar para trás e ver a simplicidade e reencontrar o sentido para todas as coisas (e estava ali tão perto...)

Sara se levantou e ainda pensativa caminhou até a mesa que estava do outro lado do quarto e tirou o pano que estava cobrindo o espelho. Olhou para si mesma rapidamente antes de cobri-lo novamente e sair dali.

Mas da forma como começou, o dia não acabaria. Mal sabia ela que todos esses presságios significavam algo que já estava acontecendo. As peças estavam tomando seus lugares lenta e certamente. O mundo estava prestes a mudar de uma forma que ninguém perceberia, mas que todos sentiriam.

Coisas estranhas estavam acontecendo em todos os lugares e a opinião religiosa vulgarizava isso como sinais do fim, mas o que estava se desdobrando mundo afora era algo muito menos escatológico, embora de certa forma não deixasse de ser.

Os primeiros raios de sol atravessaram o vidro velho da janela e iluminaram algumas coisas sobre a mesa. La fora os pássaros cantavam em sua sinfonia matinal, mas isso já havia perdido a importância muito tempo atrás.

Nuvens finas e levemente douradas se desfaziam e se redesenhavam bem ao longe, enquanto as luzes encardidas da cidade ainda estavam se apagando. Tudo parecia tão distante assim como o lilás daquele céu que em breve se transformava em azul...

Seus pensamentos foram interrompidos, ela se assustou quando um borrão preto voou do lado de fora da janela e se chocou como vidro. Foi um ruído razoavelmente alto para algo tão pequeno: uma borboleta preta que se chocou violentamente contra o vidro e fez um barulho mais alto que o esperado. Sara se assustou com aquilo, mas não podia desviar seus olhos de seu animal favorito. Embora aquele par de asas negras fosse bastante macabro, não tirava a beleza do inseto.



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