Entrei na cantina de rosto baixo, e logo pude sentir os olhares dos presentes recaírem sob mim.
“Não demonstres fraqueza, idiota”, pensei.
Levantei o meu rosto e caminhei até à fila de espera. Ao aproximar-me reparei que vários homens se afastaram, quase como se pretendessem deixar o caminho livre para a minha passagem. Estranhei aquela atitude, não compreendi inicialmente.
- Líder Hoseok, hoje o prato é manduguk, o seu favorito. – disse Yoongi, um dos tantos membros do grupo de Kim Namjoon.
Foi então que respirei fundo, embrulhado num certo entusiasmo e num súbito acréscimo de auto-estima. Sorri disfarçadamente olhando em volta. Kim Namjoon tinha-me deixado no comando?
Passei por entre os reclusos e, pegando no meu tabuleiro, fiquei refletindo sobre a minha mais recente incógnita. O que estaria a acontecer?
- Sentamo-nos na mesma mesa de sempre? – Yoongi questionou, por detrás de mim.
- Ãh… sim… sim…
Arrastamo-nos para a tal mesa, e atrás de nós seguiram outros. Sentei-me, ainda bastante reticente, e esperei alguém iniciar aquela constrangedora conversa.
- Kim Namjoon terminou a sua viagem. Foi um notável líder… Mas agora temos você.
- Eu?
Vi as sobrancelhas dos presentes se encolherem.
- Claro… – continuei. Levei comida à boca, procurando pelo tempo necessário para uma resposta apresentável – Tentarei ser tão prestável quanto o líder Namjoon…
“Prestável”? Eu não encontrei um adjetivo melhor?!
- Nós confiamos nas escolhas do Líder Namjoon. – Yoongi disse.
- Líder Hoseok… – um deles pronunciou de forma chamativa – Há boatos de que teremos uns caloiros em breve. Provavelmente os Kkangpae tentarão os recrutar… O que tem a dizer?
Yoongi foi rápido a intrometer-se.
- Nós teremos de averiguar com cautela se os novatos realmente nos serão úteis. Após uma análise rápida, antecipamo-nos, e recrutámo-los nós! Concorda?
Eu não fazia ideia se concordava.
- Sim… Me parece o mais adequado.
Estava sentado no colchão que me pertencera desde que aqui cheguei. Perdido nas ranhuras da parede. Poderia dizer quantas a mesma continha caso me questionassem, e a distância exata em milímetros entre elas. E então ouvi os passos que me arrancaram à força daquele transe assustador e peculiar. Eles aproximavam-se… mais, mais e mais…
- Aqui está a sua cela, detento! Instale-se.
Rodei o rosto para a minha direita e pude vê-lo. Pressionei o meu olhar ao perceber o quanto aparentava ser jovem. Ele deu passos hesitantes na direção da porta, e, por ela adentrou.
Desviou o seu olhar ao perceber que o olhava. Pousou o cobertor no seu colchão e permaneceu de costas durante uns segundos. Permaneci imóvel, aguardando o que se sucedia. Até que o rapaz se virou, sentando-se na cama e abafando o rosto por entre os seus braços. Consegui ouvir os seus suspiros. Aquilo remeteu-me para o dia em que cá cheguei.
- É sempre assim no primeiro dia. – disse, e logo de seguida me deitei.
Pressenti ele retirar os seus delicados braços por entre o rosto e olhar-me de leve. Não me atrevi a retribuir o olhar e logo me virei contra a parede. Aparentemente, tinha ignorado o facto de ter alguém se instalando na cama de Kim Namjoon, mas interiormente, fiquei pensando no olhar aterrorizado que o mesmo continha estampado no rosto.
- SOOK, OUVE A MINHA VOZ! – supliquei.
Avistei suas mãos tremelicarem, o que me deixou mais nervoso. E então pude ouvir seus soluços. O meu coração estalou no momento. Vê-la chorar era, sem dúvida, dos cenários mais apavoradores a que alguma vez assistira.
“Não chores, Sook… Não chores…!”
Abri inesperadamente os meus olhos e virei o meu corpo. Vi-o choramingar, tentando abafar o choro no cobertor. Revirei os olhos e me levantando da cama, caminhei até ele.
- HEY! – sussurrei da forma mais alta possível – O que pensas que estás a fazer?! – bati-lhe no ombro.
Vi seus olhos inchados e avermelhados nascerem por entre o cobertor.
- Eu estou a chorar.
- Sério? E o que te leva a crer que o podes fazer aqui? Tu não estás em casa, caloiro!
Ele permaneceu me encarando de olhar carregado. Aquilo ter-me-ia assustado se eu não o estivesse vendo chorar.
- Por que eu não posso chorar se estou triste?
Sorri no momento, e de seguida gargalhei. A inocência do caloiro acabava – inesperadamente – de me proporcionar um riso sincero.
– Tu podes – respondi – mas não deves. Leis de sobrevivência.
Virei-lhe costas, indo de novo até à minha cama, porém, antes de me voltar a deitar, ele interrompeu o meu ato, quebrando o silêncio.
- Leis de sobrevivência? Eu já estou morto.
Paralisei no momento ao ouvir tais palavras. Tornei a rodopiar o meu corpo, de forma a encararmo-nos.
- Que dizes?
- O que ouviste. O meu coração pode ainda bater, mas a minha alma está morta. – fez uma pausa, passando delicadamente a língua por entre os seus lábios secos – Ficar aqui fechado… – olhou em volta – É o fim. Eu nunca realizarei os meus sonhos… Não posso estar com quem amo… Agarraram no meu pássaro interior e prenderam-no numa gaiola, o impedindo de voar na direção das suas ambições, dos seus desejos… – suspirou – então sim, eu estou morto. E ficarei por uns longos anos.
Permaneci em silêncio durante uns largos segundos. Eu identificava-me. Tanto. Balancei a minha cabeça de forma irónica, pensando no quanto eu também estava morto. Somente não tinha ainda sido enterrado.
- É… a vida prega-nos partidas. – fixei o meu olhar no chão de forma um tanto desesperada – Resta saber se as tentamos contornar ou se permanecemos presos na armadilha. Ambos estamos mortos. – levantei o meu olhar até ao dele – Temos de encontrar uma razão para voltar a viver.
Ele tapou o rosto com o cobertor. Pensei que tinha desistido daquela agoniante conversa. Mas não. Ele voltou a responder… e, eu voltei a identificar-me com a resposta.
- Eu nunca encontrarei uma razão aqui dentro. – voltou a destapar o rosto – Eu sei como isto funciona! Eu vou acabar num canto qualquer despido e ensanguentado.
Sentei-me na cama e senti a minha respiração acelerar devido ao rumo real que a conversa levava. Espalmei as minhas mãos, tentando – em vão – aliviar a pressão.
- Só tens de demonstrar a confiança que não tens, e isso, de alguma forma os intimidará.
Mergulhei nos cobertores e fechei os meus olhos. Não aguardei uma resposta. Não quis uma resposta. Aliás, nem eu mesmo tinha respostas. Era Kim Namjoon a falar no momento.
Agarrei na minha toalha, peguei na minha escova de dentes e, após um longo suspiro ao relembrar que sonhei com ela, caminhei até à saída. Cada sonho, cada recordação, cada lembrança era terrivelmente frustrante.
- Vais tomar banho?
Recuei um passo e o olhei.
- Sim…
- Levas-me contigo? Não sei onde ficam os balneários.
- Como não? Não te deram essas instruções básicas?!
Ele esfregou os olhos e bocejou enquanto respondia.
- Hum… não. Acho que os guardas tinham uma partida de futebol importantíssima.
Sorri disfarçadamente.
- Não demores. Te espero do lado de fora.
Encostei-me contra à parede enquanto aguardava a chegada do caloiro. Tentei afastar alguns pensamentos que insistiam a todo o custo adentrar pela minha mente, sem qualquer tipo de permissão. Apertei a minha toalha com força, tentando-me controlar. Aquele sítio estava alimentando o meu monstro interior duma forma estupendamente arrepiante. Este sítio construiu alguém que eu já não reconhecia, e esse “alguém” vivia dentro de mim, como um parasita.
- Vais bater em alguém?
Olhei para o lado e vi Yoongi com um sorriso um tanto irónico nos lábios e no olhar.
- Não se não me perturbares hoje.
Ele gargalhou, ficando com os olhos quase fechados.
- Prometo que hoje serei um bom menino.
- Olá! – uma nova voz surgiu por entre a conversa, seguida de uma vénia.
- Caloiro! – Yoongi “saudou” o puxando pela parte traseira do seu pescoço – Bem-vindo à melhor prisão do país! Aproveite a sua estadia. – ironizou.
O caloiro encarou Yoongi com um olhar um tanto assustado. Pude jurar que vi uma gota de suor escorrer pela sua testa.
- Conhecemo-nos? – questionou.
Yoongi voltou a gargalhar com a sua sinistra gargalhada.
- Não… mas vamos, não vamos?
- Eu… eu não sei.
Avistei as mãos do caloiro tremelicaram, e aquilo, de alguma forma, me ofereceu um déjà-vu.
- Yoongi! – chamei num tom sério – Larga-o!
Yoongi perdeu o sorriso nos lábios, e encarando-o uma última vez, o soltou, sem sequer questionar a minha ordem.
- Eu vou acompanhar o caloiro aos balneários. Ele não sabe onde os mesmos ficam.
- Está a trabalhar, líder Hoseok?
Aproximei-me dele, o olhando bastante perto, ainda que o mesmo fosse mais baixo.
- Estás a questionar alguma das minhas atitudes?!
Yoongi baixou o olhar de imediato.
- Não, líder. Eu confio exatamente no que faz. Perdão.
- Perdoado. – respondi rapidamente lhe virando costas – Caloiro! Vem!
Ele deu, imediatamente, passos largos para me acompanhar. Fomos em silêncio durante todo o percurso. Eu ocupado com os meus pensamentos e ele ocupado com os dele.
- Líder Hoseok?! É esse o teu nome?
Viramos a esquina e ficamos na entrada dos balneários.
- É aqui.
Ele visualizou o lugar da parte de fora e engoliu – desconfortavelmente – em seco.
- Eu vou ter de me despir diante os outros reclusos?
Aproximei-me do mesmo, após ouvir a pergunta e ver a consequente preocupação no olhar que esta trouxe.
- Caloiro…
- Taehyung! Kim Taehyung é o meu nome. – ele disse, apressado.
- Caloiro – insisti, ignorando o facto que o mesmo acabava de referir –, tu não estás em nenhum hotel! Vê se percebes isso. Aliás, – apontei o meu indicador diante o seu rosto – é importante que o percebas!
O caloiro encolheu-se no momento e, encarou medrosamente, uma vez mais, o interior do balneário.
Agora que acabava de ter espaço para ignorar a sua presença, adentrei apressadamente, deixando-o para trás. Ele surgiu segundos depois.
Comecei a despir aquilo ao que chamam “pijama” mas que se assemelha a tudo menos a um, e coloquei-me debaixo do chuveiro. Avistei por entre a água que escorria perante os meus olhos, o caloiro encostado a um canto, somente visualizando o cenário e ambiente do local.
Após fechar a torneira, enrolei a toalha em torno da minha cintura e fui ao seu encontro.
- Aproveita este horário, pois é o menos movimentado. Da parte da tarde será pior.
Agarrei na minha escova de dentes e fui até ao lavatório. Quando centrei a minha cabeça no espelho pude ver, através dele, o caloiro se despir lentamente. Carreguei o meu olhar ao tentar perceber se o que via diante o mesmo correspondia à realidade, e então tive de girar o meu rosto para me poder certificar.
O seu corpo magro estava coberto de nódoas negras que fizeram o meu estômago revirar. E então a sua pele ficou totalmente nua, com cada marca exposta. Arreguilei os meus olhos perante a situação, e, ao perceber que o mesmo se iria virar, antecipei-me e fi-lo primeiro, para que não percebesse que tinha visto.
(...)
Estava a guardar as minhas coisas, junto à cama, quando pressenti a sua presença na cela.
- Vais tomar o pequeno-almoço? Eu desconfio onde fica a cantina mas não queria ir sozinho.
Levantei-me e ri.
- Calculo que não tenha cara de babyssiter. Mas se tiver, foi algum erro de fabrico.
Ele mergulhou os seus dedos por entre os seus cabelos ainda húmidos e então sentou-se na cama.
- Só queria companhia, líder Hoseok.
- Não sou teu líder! – berrei.
- Tudo bem. Eu posso fazer isto sozinho. – levantou-se e dirigiu-se à porta – Mas antes queria pedir uma última coisa – virou-se para mim num olhar obscuro – Pelo menos trata-me pelo meu nome. A minha mãe deu-me um.
- Não necessitamos de dizer o nome um do outro se não houver diálogos. – pausei para apertar os meus atacadores – Não tenciono que haja.
E então subitamente desapareceu.
Eu não queria que ele me visse como alguém capaz de o proteger. Eu não o podia fazer quando nem a mim mesmo eu era capaz. Eu não era tão forte como Namjoon, e talvez não tão altruísta. Eu só queria cumprir o meu tempo, no meu canto, e sem sofrer pelos problemas alheios. No fundo, eu próprio me poderia tornar num problema para o novato, coisa que – definitivamente – eu não pretendia.
Ele caminharia melhor sem uma pedra no sapato.
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