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História Always - -1-Como o sangue


Escrita por: N3

Notas do Autor


Chapeuzinho vermelho.

Capítulo 1 - -1-Como o sangue


Fanfic / Fanfiction Always - -1-Como o sangue

"Eu estremeço, o frio batia nas janelas e passava por entre as pequenas aberturas da parede de madeira. As janelas rangiam com o forte vento e a porta ameaçava abrir. Meu irmão já havia saído a horas. A lua brilhava no alto da janela, sua luz refletida no piso gasto de madeira. 

Minha mãe, alheia à minha preocupação, me levantou pelo braço e apertou-me com fervor, tentando nos aquecer, ela então segura meu rosto entre as mãos, me forçando a encarar seu rosto em forma de coração e maçãs do rosto altas, seus olhos pálidos brilhavam com a fraca luz da vela acima da lareira apagada. 

-- Charlot, querida, preciso que vá atrás de seu irmão... Sabe que eu não duraria cinco minutos do lado de fora nesse frio, mas você, minha preciosa, tem a juventude que me falta... Faça isso por sua mãe... Por seu irmão... Leve os cobertores, assim, se o encontrar, pode ir para casa de sua avó. Ela os acolheria com certeza.

-- Mas, mamãe, o frio está congelante, a lua está cheia e meu irmão disse que não deveríamos nos preocupar...

--É justamente por esse frio e lua cheia que me preocupo... Bruxas fazem mal à homens, mas mulheres, elas não tem o que fazer. Pode protegê-lo com isso... -- Mamãe tirou de dentro de sua capa preta, um tecido avermelhado com um brilho incomum. -- Ele te protegerá de todo o mal. Bruxas e Feiticeiros não a farejarão. --Ela me deu uma cesta -- E esse é para seu irmão. Faz a mesma coisa. Agora, minha pequena preciosidade, vá atrás de seu irmão.

 

O frio cortava minha pele descoberta, minhas mãos e antebraços tremiam com a ventania, um uivo ao longe me fez acelerar o passo, meu irmão não pode ter ido tão longe assim. As luzes da cidade já haviam desaparecido a tempos antes. Eu andava a mais de uma hora. Meus pés começaram a fraquejar quando ouvi uma voz... Parecia pedir ajuda... Então eu reconheci... A voz de meu irmão... Ele estava assustado... Só tinha quatorze anos. Mamãe deveria saber dos limites. Eu continuei andando, um pouco mais lentamente a cada passo, o frio me fazia flutuar entre um sonho e a realidade. Um cheiro metalizado irrompeu o ar ao meu redor e então levantei o olhar, apenas neve podia ser vista, neve e os galhos nus das árvores e amoreiras. A voz ficou mais alta conforme me aproximava, mas parecia mais arrastada. O vento se intensificou e eu pensei em voltar, meus instintos afirmavam que algo estava muito errado... O vento se revoltou ainda mais e poderia jurar que ele entoava um canto me pedindo pra voltar, no entanto eu continuei, não poderia parar agora, além disso, já não tinha certeza de onde estava, a cesta em meus braços caiu, e assim que atingiu o chão, o vento parou.

Como num sonho, os flocos de neve ficavam no ar, parados, podia tocar cada um, ao me mover, os flocos parados tocavam minha pele e se prendiam em meus cabelos. A minha frente, havia uma trilha, mas não ouvia nada, era tudo um silêncio interminável e insuportável. Eu entoei uma leve cantiga, levemente baixa, para me acalmar um pouco, podia sentir meu coração pulsando dentro de meu peito, então finalmente me abaixei para pegar a cesta que havia derrubado, o pano vermelho cor de sangue parecia brilhar na luz da lua, estiquei levemente o braço, pegando a cesta e notando que tremia, meus dedos se enrolaram no pano aveludado e eu o puxei, o colocando apertado contra o peito. Mas somente parte dele veio, imaginei. Estiquei a outra mão, tremendo ainda mais que anteriormente, mas ao tocar o vermelho do chão eu me calei. Minha cantiga se silenciou e meus olhos arregalaram levemente, meu coração acelerou ao ouvir mais um pedido de desculpas, desse vez bem próximo. Quando levantei o olhar do sangue derramado no chão, pude ver algo que nunca irei esquecer enquanto viver. Meu irmão, com s costas presas em arbustos e o peito perfurado por um galho o mantendo de pé... Dilacerado da barriga pra baixo.

O terror percorreu minhas veias e meus olhos se encheram de lágrimas enquanto um grito irrompia minha garganta, as lágrimas desciam quentes em meu rosto gelado e o grito cortante no ar parado. Dei um passo para trás, caindo no chão quando meus pés se enroscaram no vestido longo. Meus olhos, ainda brilhando de terror observaram a vida se esvair do corpo de meu irmão. Não ouvia mais nada a não ser o som de meu coração em meus ouvidos, não via mais nada a não ser um borrão causado pelas lágrimas, não sentia mais nada a não ser o gosto cortante de sangue no ar daquela madrugada.  Foi quando ouvi... O som mais agonizante que já experimentei, o uivo de um lobo a poucos quilômetros de mim. As lágrimas congelaram quando chegavam ao meu queixo. Me levantei com o vestido molhado de neve e sangue e o coração pulsando em meus ouvidos. Tudo que fiz depois disso foi correr.

A trilha parecia querer me jogar pra trás, a cada passo meus pés afundavam mais na neve enlameada, a cada passo mais galhos prendiam em meu vestido e braços, a cada tropeço, um novo arranhão em minhas pernas ou braços. A casa da Vovó estava perto... Mas o lobo também. Continuei correndo e tropeçando, perdi um de meus sapatos e deixei o outro pra trás, podia ouvir os passos do lobo ao meu encalce, o cheiro de sangue a minha volta, meus olhos voltaram a se encher de lágrimas enquanto relembrava todos os momentos  bons em que eu havia passado naquela trilha. A ironia é que o pior deles também seria por ali. 

Atravessei o portão da frente, entrando no jardim de ervas castigado pelo inverno, meu vestido já estava todo enlameado e as bordas rasgadas. Tudo que conseguia ouvir era minha respiração pesada. Entrei pela porta destrancada e a tranquei, me perguntando se Vovó estaria bem. O frio do interior da casa era quase tanto quanto o de fora. Minhas pernas bambeavam de tanto correr e minha respiração queimava de tão forte. Tudo que eu sentia era um turbilhão, não sabia o que pensar, o que imaginar, o que sentir.

Continuei andando, meus pés faziam o assoalho ranger. A mesa estava posta com um pedaço de pão e um pote de geleia de mirtilos, o cheiro se misturava com o de sangue preso em meu vestido e a única coisa que fez foi me deixar mais enjoada. 

--Vovó...? -- O silêncio continuou o mesmo. -- Sou eu, Charlot... --Meus pés continuavam se movendo, deixando marcas enlameadas no chão.--  Eu sei... Sei que não esperava mas... -- Todas as portas do corredor estavam trancadas, exceto a do quarto.-- Meu irmão... Chuck... --Quando me aproximei, pude ver um machado no chão, onde a luz da janela não pegava, eu o peguei, mantendo o passo e o único barulho sendo o do meus pés. -- Vó...?

Entrei no quarto e tudo que vi fora um corpo encolhido debaixo das cobertas enquanto tremia. Mamãe sempre dizia que Vovó era doentinha demais para viver sozinha, então deixei  o machado de lado, o colocando em cima da lareira e me abaixei para acender o fogo, o quarto era um dos cômodos mais frios da casa. Me distraía olhando as chamas dançarem a minha frente, aproveitando para me aquecer, a noite de hoje tinha sido um pesadelo e a última coisa que eu precisava agora era relembrá-la. Ouvi o barulho dos lençóis se mexendo e imaginei que minha vó estivesse se levantando.

--Posso esquentar o pão que está na cozinha, a geleia pode azedar se tentarmos.

Me virei, esperando ver Vovó, com seu sorriso doce e pele translúcida, mas o que vi foi uma cena terrível. O lobo estava sentado na cama, com as presas cheias de sangue e os olhos focados em mim, o cheiro de sangue no ar. Gelei. Meus olhos se arregalaram e o tempo pareceu parar enquanto eu prendia a respiração. O machado estava a poucos metros de mim, bastava eu me levantar e o pegar. O lobo rosnou e senti que se não fosse agora, não seria nunca. Me levantei, quase que perdendo o equilíbrio e peguei o machado, acertando o lobo em cheio quando o mesmo pulou em cima de mim, sua pata dianteira voou do outro lado do quarto, enquanto ele se contorcia de dor e gritava feito um filhote ferido, quando sua atenção se voltou a mim novamente já era tarde demais, o machado acertou sua jugular, de novo e de novo, não conseguia parar, tudo que via era meu irmão pendurado na árvore, com o sangue empapando suas roupas e derrubado na neve branca do chão. Meus gritos irromperam a batida compassada do machado contra os ossos do lobo,

"Morra! Morra seu cão sarnento!" 

A porta da frente se abriu, mas tudo que eu enxergava era o sangue do lobo derramado no chão, espirrando na parede e em meu rosto, manchando o carpete e a cama. Foi quando um homem entrou pela porta do quarto e quando me viu, não hesitou em atirar.

 

Acordei com o o som de gritos e xingamentos. Abri os olhos e tudo que via era fogo. Senti uma dor absurda em minha coxa esquerda e quando olhei para baixo senti meus olhos marejarem e todas as forças de meu corpo se esvaírem. Uma multidão de pessoas com tochas e garfos de feno afiados gritavam em minha direção, atirando coisas, quando uma pedra me atingiu no rosto. Virei o rosto gritando de dor e pude ouvir eles uivando de alegria. Minhas pernas nuas cobertas de sangue e hematomas mostrava que essa não era a primeira vez que me acertavam, com os braços presos para trás, não sentia nada além do frio cortante contra minha pele totalmente nua. 

Um homem, o reconheci como chefe da aldeia apareceu na minha frente, estremeci de frio quando um vento forte passou, ele se virou para mim com seus olhos cheios de desdém.

-- Está com frio, Bruxa? Não se preocupe. Logo tudo que vai sentir será as chamas do inferno dançando junto com o diabo ao seu lado.

Todos os cidadãos gritaram de "orgulho" quando ele se virou de costas para mim e começou um discurso.

-- Essa noite, meu povo, eu estava caçando um lobo, quando ouvi um grito. Acreditei ser de uma jovem pura e casta sendo atacada por algum animal, então a segui o som. Conforme andei, percebi, que tipo de jovem estaria fora de casa numa noite de nevasca como essa? -- O povo seguia cada gesto de mão e cada passo que o homem dava. -- Essa Bruxa, meu povo, -- Ele falava com desdém. -- arrancou a cabeça de um animal que a anos vem sido caçado por nós, homens de bem. Além de ter atacado um jovem de família. Ele foi encontrado morto, estilhaçado a poucos metros da casa de Dione. A mesma foi achada morta no quintal. Lhe faltavam as pernas... Acreditamos que essa mulher lhe fez essa terrível ocorrência. Algo a acrescentar, Bruxa?

-- E-era minha Vó! -- Lágrimas escorriam quentes em meu rosto, desciam pelo meu queixo e pingavam em meu peito nu. Era a única coisa que sentia a não ser terrível angústia. -- Meu irmão foi morto por aquele lobo... Minha Vó também... P-por favor... Acreditem....

-- Por que acreditaríamos num demônio? -- Alguém da plateia gritou e todos começaram a uivar.

Senti meus joelhos tremerem... Mas a última coisa que eu faria, era me ajoelhar para aquela gente... Ergui o queixo enquanto ouvia o barulho do fogo se aproximando, quando senti o calor em meus calcanhares e as lágrimas irrompiam em meus olhos. O fogo alcançou minhas pernas e foi a dor mais agonizante que já senti na vida. Meus gritos começaram a silenciar os gritos do povo e o cheiro de carne queimando tomou conta do ar. O fogo subia rapidamente e tudo que eu podia fazer era gritar, logo já estava em minha cintura e minha voz já havia acabado a muito tempo, eu continuava a gritar, espernear e xingar tudo e todos, meus olhos, mesmo fechados bem apertados, ardiam com a fumaça e a dor era insuportável. A última coisa que vi, foi a lua cheia brilhando no céu enquanto eu cedia ao fogo."


Notas Finais


Até a próxima, leitores.


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