Soneto do Amor Como um Rio
Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.
Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.
Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo
E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.
Vinicius de Moraes
Sete anos depois...
Meus olhos ardiam devido à forte luz do sol grego, aqueles sete anos nos Elísios haviam me desabituado a tanta claridade. Assim que consegui me acostumar levemente, fiquei de pé e caminhei até Atena. Quem eram aqueles dois ao lado dela? Pelo poder de seus cosmos, julguei que fossem deuses; suposição essa que se mostrou correta poucos minutos depois.
Assim que me vi livre da formalidade de cumprimentar Atena, meus olhos vagaram por todo o jardim, acabando por se fixarem no mais belo rosto que já havia visto em toda a minha vida (e em toda a minha morte, devo acrescentar). Eu nunca havia visto aquela face, mas não tive dúvida alguma de que pertencia à mulher que povoou meus pensamentos durante cada segundo dos últimos sete anos (antes até, embora eu não tivesse percebido).
Após assistir – um pouco constrangido, diga-se de passagem – a cena de reencontro nada discreta entre Atena e Seiya e ouvir o breve discurso de Zeus, segui com os demais cavaleiros de ouro até a mesa que nos fora reservada pela deusa. Tentei disfarçar minha ansiedade e inquietude, mas meus olhos não se cansavam de desviarem-se para uma mesa um pouco adiante à nossa. Entretanto, senti-me envaidecido ao perceber que Marin também me observava discretamente.
O tempo se arrastou durante a confraternização, tamanha era a minha ansiedade para falar com Marin em particular. Senti-me um pouco incomodado ao ver como sua atenção era disputada por cavaleiros e aspirantes. Aliás, ao parar para pensar, senti uma pontada de ciúme se inflamar em meu peito... Eu não havia sido o primeiro a ver sua face sem aquela máscara!
Perguntei-me quantos homens haviam sido atraídos pela incontestável beleza de Marin e, principalmente, a quantos deles ela correspondera. Pela primeira vez, percebi que o tempo se passara e ela tivera uma vida sem mim...
Assim que o evento se encerrou e terminei os cumprimentos formais, decidi me aproximar de Marin. Notei surpresa em seu semblante quando sentiu alguém pousar as mãos em seu ombro e, ao se virar, viu que era eu.
– Aiolia...
– Olá, Marin! Quanto tempo?! – durante o tempo que passei nos Elísios, idealizei milhares de coisas que diria a ela caso tivesse chance, porém, ao estar novamente em sua presença, as palavras se tornaram escassas – Como tem passado?
– Estou bem, feliz que vocês estejam de volta! – fiquei um pouco desapontado ao vê-la me mencionar junto com os demais cavaleiros de ouro.
– É bom estar de volta. Pelo que vejo, as coisas mudaram bastante desde que eu... Morri! – hesitei um pouco na última palavra. Era estranho dizê-la, afinal o óbito e a volta à vida não passaram de transições suaves. Se não fosse a saudade de Marin, eu diria que uma coisa e outra não fizeram diferença alguma para mim.
– As coisas estão melhores agora, a paz é realmente um bem precioso!
Dei uma risada ao ouvi-la dizer isso e apontei para seu rosto.
– Na verdade, eu estava falando da máscara que vocês, amazonas, não são mais obrigadas a usar. Está muito melhor assim!
Ela passou a mão pelo rosto e me fitou com surpresa, deduzi que só agora havia se lembrado de que era a primeira vez que eu via sua face descoberta. Era provável que esta lei tivesse sido revogada há tanto tempo que já houvesse se acostumado a andar sem máscara.
– Como sabia que era eu?
– O seu cosmo não mudou, apesar de estar mais forte! – menti ao dizer isso, mas ela pareceu não perceber, pois assentiu de imediato e não voltou a me questionar a respeito. Ainda assim, tive a impressão de ver algo como desapontamento no seu olhar... Devo ter me equivocado sobre isso – Eu gostaria de conversar com você em um lugar mais tranquilo. Você se importaria de passar em leão mais tarde, talvez na hora do jantar? Podemos comer juntos!
– Não, será um prazer. Até mais tarde! – ela acenou em despedida e caminhou na direção da escadaria, mas não consegui desviar meu olhar até vê-la desaparecer da minha vista.
As horas de espera até a noite foram as mais longas da minha vida. Decidi preparar moussaka[1] para o jantar, era um prato comum, mas que nós dois apreciávamos bastante. Além disso, sabia que Marin era uma mulher de gostos simples. Separei um vinho tinto para acompanhar e arrumei a mesa da melhor forma que pude. Depois disso, escorei-me numa pilastra em frente à escadaria e esperei por ela.
Suspirei aliviado ao sentir o cosmo de Marin se aproximando. Então, voltei para dentro de casa, não queria que ela percebesse minha ansiedade. Assim que chegou à leão, ela elevou o cosmo pedindo permissão para adentrar a área privada, permissão essa que concedi imediatamente.
– O cheiro está delicioso! – Marin disse ao chegar à sala de jantar, onde eu estava – Moussaka?
Assenti, satisfeito ao ver que acertara na escolha do prato.
– Você gosta de vinho tinto? – fiz a pergunta para disfarçar o fato de que já tinha reparado que ela tomara da bebida na confraternização.
– Eu gosto bastante.
– Que bom! – cocei minha cabeça, um pouco perdido quanto ao que fazer – Hun, quer se sentar? Já está tudo pronto!
Antes que Marin respondesse, eu puxei uma cadeira na qual ela se sentou prontamente.
– Obrigada.
– Imagina! – falei um pouco desconcertado. Em seguida, servi a comida para nós dois e enchi duas taças de vinho – Prove e me diga o que acha! – pedi, tentando conter minha ansiedade. Queria que tudo estivesse perfeito!
Eu mesmo comecei a comer e tomei um gole de vinho, mas sem tirar os olhos dela.
– Está delicioso, você não perdeu o jeito! – suspirei aliviado ao ver que Marin havia gostado. Ela já estava acostumada com a minha comida, mas fazia bastante tempo que eu não cozinhava, por isso fiquei um pouco inseguro.
O ambiente pareceu mais leve e descontraído após o início do jantar e alguns goles de vinho. Senti como se o tempo não tivesse passado e nossa amizade continuasse igual, apesar do sentimento que eu descobrira postumamente. Marin contou-me, de forma resumida, tudo o que se passara durante o período em que estive nos Elísios. As leis arcaicas que haviam sido revogadas, a volta de Zeus à Terra, o acordo de paz – que, ao menos até aquele momento, estava sendo cumprido – entre os deuses e como estava a organização do santuário agora. Também me falou acerca da nova geração de cavaleiros e amazonas, que a seu ver parecia muito promissora.
O tempo se passou rapidamente e, antes que eu percebesse, chegou a hora de Marin ir embora. Caminhei com ela até a saída de leão e, ali, não resisti à vontade de abraçá-la, como fazia antigamente. Entretanto, ao sentir as notas amadeiradas do sândalo – em vez do conhecido cheiro de camomila – e fitar os penetrantes olhos azuis, não consegui me controlar e depositei meus lábios sobre os dela.
Marin arregalou os olhos de surpresa, mas não me afastou, por isso tomei coragem para levar a mão à nuca dela e aprofundar o beijo. Não posso negar que uma sensação sublime se apoderou do meu corpo, mas foi, sobretudo, delicado e natural, como se estivesse destinado a acontecer. Mesmo quando nossas bocas se separaram, a sensação de paz e felicidade não me deixou.
Marin pousou um dedo sobre os lábios e me fitou com o que, mais uma vez, julguei ser surpresa.
– Está tudo bem? – perguntei, um pouco apreensivo.
– Isso não deveria ter acontecido! – Marin parecia atordoada. Isso me deixou preocupado, por isso me aproximei novamente, mas ela deu alguns passos para trás, afastando-se de mim – Eu preciso ir!
– Marin...
Minha voz se perdeu em meio ao silêncio noturno... Ela sequer se virou, simplesmente desceu correndo as escadarias. Amaldiçoei-me por minha precipitação, não devia tê-la beijado sem ter certeza do que sentia. Agora, tinha a sensação de que tinha arruinado todas as minhas chances com ela...
Na manhã seguinte, voltei à mesma rotina de treinos e rondas que mantinha antes de morrer. À exceção do meu irmão, ninguém pareceu notar meu humor mais sisudo que de costume. Achei melhor assim, detestava ter que dar satisfação da minha vida pessoal a qualquer um e, graças aos deuses, Aiolos não insistiu no assunto quando eu disse que não queria falar a respeito. Ele era mais extrovertido e sociável do que eu, mas igualmente discreto.
Os dias se arrastavam como lesmas e o clima pesado entre Marin e eu parecia cada vez pior. Eu evitava cruzar com ela, mas o destino parecia não querer ajudar. Por causa da sua posição como treinadora dos aspirantes a cavaleiro, constantemente Marin precisava subir ao décimo-terceiro templo para conversar com o grande mestre. Nestas ocasiões, por algum motivo, acabávamos sempre nos esbarrando. Perdi a conta de quantas vezes tentei falar com ela, mas na hora H simplesmente perdia a coragem.
Após duas semanas, decidi dar um fim àquela agonia. Quando Marin voltava de mais uma reunião com o Shion, encurralei-a na quinta casa. Por alguns segundos, ela arregalou os olhos de surpresa, mas logo voltou a me fitar com a altivez que lhe era característica.
– Em que posso te ajudar? – Marin questionou-me, cruzando os braços defensivamente. Era um péssimo sinal!
Ignorando o claro desejo de distância que ela demonstrava, eu dei alguns passos em sua direção, mas não ousei tocá-la. Ao menos ela não recuou, o que já era alguma coisa.
– Eu quero pedir desculpas, me precipitei ao beijar você! – os olhos dela faiscavam ainda mais do que antes.
– Era só isso? Não precisava se preocupar, cavaleiro de leão! Agora, se me der licença...
Sua voz, um tanto irônica e raivosa, incomodou-me intensamente. Por esta razão, em vez de deixá-la ir, eu encurtei ainda mais a distância entre nós e puxei seu braço bruscamente, trazendo-a para mim.
– Eu já te pedi desculpas, por que continua agindo assim? Se tem algo a dizer, fale de uma vez. Você me conhece e sabe que eu não gosto de rodeios e ironias!
– Não tenho nada a dizer, não é como se este tivesse sido meu primeiro beijo. Agora, me solte!
Estas palavras atingiram-me em cheio, não só por causa do ciúme que me corroeu por dentro, mas também por ferirem meu orgulho.
– Se nosso beijo não significou nada, por que continua me tratando com frieza?
Vi em sua face que ela não sabia o que responder e isso me deixou ainda mais irritado. Somente após longos segundos de silêncio, Marin decidiu falar alguma coisa.
– Não vai voltar a acontecer. Eu entendo que você passou muito tempo morto e voltou sentindo falta de companhia feminina, por isso acabou confundindo as coisas. Só não deixe que isso volte a acontecer, eu não sou este tipo de mulher!
Soltei uma gargalhada. Não queria soar sarcástico, mas foi a única reação plausível diante da besteira que ela disse.
– Durante os nossos onze anos de amizade, com quantas mulheres você me viu sair? – perguntei, fitando seus olhos de forma inquisidora. Marin emudeceu, claramente atônita – Responda! – falei com mais veemência.
– Eu nunca te vi com uma mulher, mas isso não significa nada. Você sempre foi discreto, é normal que não saísse se gabando de suas conquistas como os demais cavaleiros!
– Pois saiba que nos Elísios não faltavam mulheres à disposição, eu poderia ter quantas quisesse! – ela abriu a boca para falar algo, mas eu a interrompi – Sexo casual não me interessa, eu jamais ficaria com alguém que não fosse importante para mim. Aquele beijo pode não ter significado nada para você, mas foi o primeiro que eu dei em alguém.
– Aiolia, eu...
– Você é a única mulher que conseguiu despertar qualquer tipo de sentimento em mim. No entanto, eu sou um idiota que precisou morrer para descobrir isso! Ainda que eu não tenha pensado em outra coisa que não fosse fazer você minha, caso tivesse chance, foi um erro te beijar daquela maneira. Peço perdão mais uma vez, não voltará a acontecer!
Soltei o braço dela e lhe dei as costas, voltando para dentro de casa. Sentia uma dor e uma sensação de vazio enormes, comparáveis unicamente às que senti quando Aiolos morreu. Porém, se Marin não me queria desta forma, não voltaria a tocar no assunto. Eu era orgulhoso demais para me arrastar atrás dela...
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