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História Apogeu - Aquiescência


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Aquiescência: ato ou efeito de aquiescer; anuência, consentimento, concordância.

Capítulo 2 - Aquiescência


O estrangeiro dormiu por dezoito horas, graças ao efeito da erva de tigre que lhe foi dada para mastigar. Foi o único jeito de fazê-lo parar de gritar quando tratavam a ferida. Quem cuidou dele foi Nellie, uma idosa cega que curava todos os males ao alcance do ser humano. Ela deitou o rapaz seminu sobre os cobertores de sua tenda, mergulhou as pedras incandescentes em água para que a tenda se enchesse de vapor e performou seu trabalho centenário com facilidade. Um de seus olhos via somente escuridão, mas o esquerdo ainda era capaz de discernir sombras de luz. Ela cantava enquanto tratava a ferida, não por questões espirituais, mas sim para passar o tempo.

Kenny abriu seus olhos azuis quando todo o vapor já se esvaíra. Sentia o corpo pesado e a cabeça leve.

Estava sozinho. Olhou em volta, as pálpebras semicerradas, o corpo em um confortável estado da pele nua tocando algo peludo e macio. Percebeu o estalo e o calor vibrante do fogo, as cores terrosas da tenda alta, enquanto suas pupilas se ajustavam novamente à luz. Já era noite, Kenny percebeu, embora não enxergasse o céu lá fora. Vapor saía de sua boca quando ele respirava. A cabeça latejava, mas com um esforço sobre-humano, conseguiu virar-se de lado para melhor enxergar o espaço. A mão instintivamente tocou o ombro, onde havia ataduras de um material diferente das ataduras que Kenny conhecia em sua terra natal. Era um tipo de tecido mais escuro, com manchas marrons de sangue seco. Umedeceu os lábios. Ainda usava suas calças, mas não sabia onde estava o resto de suas roupas.

-Tudo bem, Kenny. - Murmurou para si mesmo na língua materna, tentando ocultar o desespero em sua própria voz, mesmo que não houvesse ninguém para ouvir. - Tudo bem. - E, coletando o pouco de força que havia em suas pernas, tentou se levantar. Grunhiu de dor, aliviado por não encontrar nada que restringisse seu movimento. Não estava amarrado. Por enquanto.

E então, ao seu colocar de pé na pilha de cobertores, percebeu a sombra gigantesca que havia na porta. A silhueta negra de um animal quadrúpede e peludo. Kenny congelou no mesmo lugar. A tenda preservava calor, mas seu tronco nu o perdia muito rapidamente, e já podia sentir o tremor do frio mesclado à antecipação do que o animal poderia fazer. Era um lobo. Um lobo imenso, de focinho comprido e olhos tão azuis, muito mais claros do que os de Kenny, olhos feitos de gelo. Kenny ergueu as mãos assim que o animal notou sua presença e ergueu as orelhas. Uma delas estava rasgada.

-Ei, rapaz. - Disse, esforçando-se para que as mãos não tremessem.

Havia tanta fascinação naquele pavor. Porque, ao mesmo tempo em que cada célula em seu corpo gritava por socorro, era também um dos seres mais extraordinários que Kenny já vira. Encontrou animais em sua caminhada da Metrópole até ali, certamente que sim, animais peludos ou cobertos por penas, peixes dourados e vermelhos em riachos. Mas era a primeira vez em que seu corpo entendia o que era a natureza realmente. O que era olhar dentro dos olhos de um ser que não fora projetado por e para humanos, o que era a manifestação de um animal com vontade própria, movido somente por instinto. Os olhos daquele lobo, por alguma razão, trouxeram à mente de Kenny a lembrança dos olhos verdes do rapaz responsável pelo ferimento em seu ombro. Seres livres eram simplesmente apavorantes.

Então, houve um assobio. E por um instante, Kenny se esqueceu de como respirar.

Pôde ouvir uma voz masculina perguntando algo em vilkiriano. Reconheceu o intuito da pergunta, algo semelhante a “o que você está olhando?”. De repente, um homem alto apareceu na entrada da tenda. Muito alto. Muito mais alto do que qualquer homem que Kenny já conhecera em sua terra. Ele tinha longos cabelos e uma barba vasta, os fios em loiro escuro ou castanho claro, olhos gentis demais para caber em um homem daquele tamanho. Havia duas tranças finas nas laterais da sua cabeça, pequenos ornamentos azuis enfeitando os cabelos. Ao ver Kenny de pé, Standish sorriu.

-Ah, que bom. Você está vivo. - Ele disse, mais devagar para que o estrangeiro o entendesse.

Kenny franziu o cenho, observando como o lobo esfregava a cabeça nas costas da mão do homem, exatamente como os cachorros robóticos faziam de onde ele vinha. Standish fez carinho na cabeça do animal de forma distraída, esfregando entre as suas orelhas. E por algum tempo, não soube o que esse homem esperava que ele dissesse ou fizesse. Continuou parado, agora estremecendo de frio pela porta da tenda estar mais aberta, os braços caídos ao longo do corpo, os olhos azuis arregalados. Os músculos doíam de tensão.

Pacientemente, o outro bufou com um sorriso que dizia: “como eu sou idiota”. Levou a mão livre ao próprio peito. Kenny percebeu os anéis de madeira que ele usava, as pulseiras de contas em torno do seu pulso.

-Standish. - Ele disse, e então, fez um gesto de questionamento em direção ao rapaz, erguendo as sobrancelhas.

Ah. Certo.

-Kenny. - Ele se obrigou a responder, por mais que a voz estivesse se agarrando às paredes da garganta, sem qualquer vontade de sair.

Com isso, Standish e a criatura que o acompanhava adentraram a tenda. Era um espaço pequeno, mas muito alto, com uma estrutura de madeira que a sustentava por dentro, arredondada no topo. Deus. Ele estava dentro de uma tenda Vilk de verdade. Não havia sangrado até a morte. Como?

– Kenny. - Standish repetiu, colocando as mãos nos quadris. O movimento revelou por baixo da capa de pele de urso que ele usava, uma adaga presa em sua calça e colares longos que desciam até a altura do umbigo. - É o seu nome?

Ele conhecia a palavra nome. Compreendia vilkiriano muito melhor do que falava, Stan lhe havia ensinado coisas básicas como essa. Céus, Stan. Onde ele estaria a uma hora essas?

Kenny assentiu devagar, sentado-se na cama de cobertores novamente, massageando as têmporas com seu braço bom. Estremecia de frio.

Standish o observou com seus olhos paternais, acometido por uma compaixão genuína por esse garoto que parecia não ter ideia de como veio parar ali. Fazia tanto tempo que Standish não se encontrava pessoalmente com um homem fraco, pelo menos tão de perto. Eles estavam sempre pelas redondezas, muitas vezes com guias turísticos ou qualquer merda que o valha, mas esse não parecia ser o caso do rapaz. Sentiu vontade de se desculpar por seu filho, mas não o fez. Em vez disso, foi até o cesto onde estavam guardadas as roupas e sapatos de Kenny. Os sapatos dos homens fracos eram artefatos tão curiosos, que mal pareciam proteger os pés. Standish teria que tomar a providência de fornecer sapatos de verdade ao garoto.

Quando se aproximou com as roupas dobradas, Kenny o olhou durante alguns segundos antes de pegá-las. Standish tomou a longevidade daquele olhar como uma forma de agradecer sem precisar usar palavras.

O lobo, enquanto isso, foi se aquecer junto ao fogo. Deitou-se com as patas dianteiras esticadas e as orelhas em alerta. Kenny o observava pelo canto do olho, mas a forma natural com que o homem agia próximo ao animal, de alguma forma, tranquilizava-o. Não o suficiente para aliviar a dor em seu estômago e o suor sob suas axilas. De qualquer forma, Kenny cobriu o tronco nu com as roupas, com dificuldade para movimentar o braço. Porra, como doía.

O homem apontou em direção ao lobo quando Kenny terminou de se vestir.

-Oak. - Disse.

Hesitante, Kenny perguntou, em vilkiriano:

-O nome?

Standish riu fraco e assentiu com a cabeça.

-É o animal do meu filho. - Explicou com uma gestualidade que facilitasse as coisas.

Kenny podia entender isso. Estava entre o Povo Lobo, afinal de contas. Lera inúmeras vezes sobre a relação que os Vilk preservavam com lobos gigantes, e não era exatamente como os animais de estimação que tinha-se na Metrópole. Não. Segundo os livros, conectar-se mutuamente a um lobo era uma parte natural do caminho de um Vilk, como o desabrochar de seu gênero, como descobrir seu deus protetor, como crescer. Aconteceria com todos eles, mais cedo ou mais tarde.

Standish não precisou se apresentar formalmente para que Kenny entendesse que estava na presença do Vadonis da tribo. Era um conceito que nenhum antropólogo da Metrópole jamais soube como traduzir, pois a noção de liderança era muito diferente de uma sociedade para outra. Esse homem era um alfa, Kenny soube de imediato. Embora não pudesse sentir através do aroma, lera o suficiente sobre isso para reconhecer na maneira com que ele caminhava, a maneira como o lobo agia perto dele.

O Vadonis regia a tribo. Não era uma posição de lógica de sangue, como eram os povos antigos da Metrópole, em que o filho de um Imperador se tornaria o futuro Imperador. Não, a genética não lhe dava direito a nada. Ser filho de um Vadonis não garantia nada. A escolha era feita através da força física e espiritual de um alfa que se provasse digno de reger um povo. Até onde Kenny compreendia, ômegas e betas não eram aptos a essa função dentro da filosofia dos Vilk. Mas assim, de perto, tudo parecia tão diferente dos livros. Mesmo após ver inúmeras pinturas e esboços dos lobos gigantes montanheses, nenhum deles conseguira capturar a magnitude de um animal como Oak.

Que, agora, abaixava a cabeça para dormir tranquilamente perto do fogo. A presença de Standish parecia acalmá-lo.

-Como se sente? - Standish perguntou, apontando para o ombro de Kenny. - Dói?

Ele assentiu com a cabeça. Segurou o antebraço por um instante, uma mecha de cabelos loiros caindo sobre seus olhos. Se conhecesse a língua bem o bastante, daria uma resposta evasiva em forma de piada. “Foi só uma flechadinha, não é nada demais”. Mas não sabia como dizer isso. Mesmo não sendo parte desse grupo hierárquico de alfas e ômegas capazes de sentir feromônios no ar, Kenny se sentia intimidado pela presença dele.

Kenny era um beta. Todos na Metrópole eram. Não nasciam um alfa ou ômega lá há pelo menos cinquenta anos.

-Nós não recebemos muitos visitantes. - Standish disse, puxando um banquinho baixo que havia próximo a uma vasilha cheia de água, que se usava para lavar os pés. Trouxe o banquinho para perto da cama e se sentou, apoiando os cotovelos nas coxas, coçando a barba. - Meu filho não quis te machucar. Entende?

Ele não entendia. Talvez não estivesse compreendendo semanticamente o que aquele homem dizia, mas, ainda assim, assentiu com a cabeça. Standish parecia disposto a ser gentil com ele o quanto fosse possível, e Kenny não estava interessado em perder isso. Por mais que não fizesse sentido.

-Agora. Preciso saber se você tem armas.

O garoto franziu as sobrancelhas. Alguma coisa se perdeu ali no meio. Standish sacou a adaga, o que assustou Kenny a princípio, mas o outro ergueu a palma para que ele se acalmasse, apenas mostrando o objeto. Era rústica o bastante para aparentar mais de cem anos de existência, um cabo envolto por tiras de couro, a lâmina curva e imunda.

-Arma. - Standish repetiu, apontando para Kenny. - Você tem?

Kenny negou veementemente com a cabeça, mas lembrou-se de algo de repente.

-Eu… - Falar nunca foi tão difícil. Pigarreou uma vez, coçando atrás da cabeça enquanto pensava na forma certa de dizer o que queria. - Eu tinha câmera.

A palavra, naturalmente, foi dita em sua língua materna, a Língua Original. Tal conceito provavelmente nem existiria em Vilkiriano. A expressão de Standish confirmou isso. Mas em poucos segundos, o homem se levantou e foi até o cesto de onde havia pego as roupas de Kenny. Dele, retirou exatamente o que o loiro esperava. Sua máquina, ainda protegida pela capa preta. Esperava vê-la inteira. Standish não a entregou imediatamente. Parecia desconfiado. Levou alguns segundos para descobrir como abrir a capa e puxou a câmera instantânea, um modelo branco e velho que Kenny precisou trabalhar durante dois anos para conseguir pagar. Ela estava intacta.

Standish inspecionou o objeto com estranheza.

-Para que serve? - Perguntou.

Kenny também se levantou, com muito cuidado, sentindo Standish tão em guarda quanto Oak estivera mais cedo, quando suas orelhas estavam de pé e seu rabo, agitado. Quando Kenny fez menção de se aproximar para pegar a câmera, Standish hesitou, olhando-o de cima abaixo. O loiro ergueu as mãos em defensiva.

-Mostrar. - Disse, estendendo a mão sem invadir o espaço daquele homem gigantesco. - Pode?

Muito vagarosamente, Standish lhe entregou o objeto e observou com atenção. Kenny apontou a câmera na direção do lobo adormecido, que sentiu o movimento e abriu apenas um olho. Aproximou-se do visor e apertou o botão. O som deixou Standish ainda mais tenso, ocasionando um susto momentâneo, mas nada aconteceu. A pequena fotografia foi expelida logo em seguida, e o som manteve Standish em guarda. Kenny fez um sinal para que ele esperasse, mas mostrou a imagem preta que, pouco a pouco, começava a clarear, revelando a imagem do fogo alaranjado brilhando sobre o pelo de Oak, com seus olhos azuis brilhantes e curiosos diante do som, o focinho levemente levantado.

-Não arma. - Kenny disse, e Standish começou a rir.

Tomou a fotografia da mão do garoto e começou a inspecioná-la, virando-a algumas vezes, tocando na superfície, como se descobrisse um objeto sagrado.

-Puta merda.

 

Depois disso, Standish o convidou para dar uma volta pela vila, ou foi isso que Kenny compreendeu. Achou que estivesse preparado para isso. Estudou vilkiriano com todo o seu empenho, mas nunca havia escutado a língua da boca de um nativo. Também não estava preparado para ser recebido com uma flechada, mas esqueceu-se de tudo isso quando saiu daquela tenda e deu uma olhada em volta.

Estava amanhecendo. Antes, quando pensou que fosse tarde da noite, era na verdade o ponto mais alto da madrugada. Kenny jamais vira algo como aquilo, um céu rosa e laranja pincelando as nuvens enquanto o sol se erguia entre as montanhas. Um céu profundo, que não era apenas uma imagem bidimensional projetada em um teto. Kenny já vira o sol nascer em sua jornada, mas agora, estava alto o bastante na montanha para enxergar toda a amplitude. A lua continuava no céu, imensa, brilhante, também pincelada de rosa, e Kenny nem mesmo podia entender como tal coisa era possível.

Não foi apenas o céu que tirou seu fôlego. Olhando em volta, não mais imerso na floresta, Kenny podia enxergar toda a extensão de terra ao longe da montanha, os vales que pareciam não ter fim. Era essa a razão pela qual os Vilk eram tão difíceis de se encontrar: estavam sempre no alto.

A própria vila não se parecia com nada que Kenny tivesse visto antes em sua vida. As tendas não eram postas em fileiras, como as casas da Metrópole, mas sim em uma ordem que lhe parecia aleatória. Kenny estivera acordado ao chegar ali no dia anterior, mas assustado e acometido pela dor a tal ponto que não absorveu a magnitude daquele lugar. Não era como uma cidade, mas Kenny não conseguia enxergar onde as tendas terminavam. Havia uma grande fogueira a alguns metros, com pessoas sentadas em volta, todos vestidos à mesma forma tradicional, mas nenhum deles com o rosto pintado. Kenny podia sentir o cheiro de comida, mas não identificou qual. Havia lobos deitados por toda parte, lobos brancos, acinzentados, ruivos, mas nenhum tão grande e tão escuro quanto Oak.

Kenny seguiu a direção para a qual Standish caminhava, sentindo-se um estranho no ninho. Apertava o próprio dedo indicador em sua mão para aliviar o nervosismo. Passou por barracas onde havia panelas de cerâmica e carnes cruas penduradas, cestos de frutas e gente idosa cozinhando.

De repente, Standish fez sinal para uma senhora idosa com o rosto mais enrugado que Kenny já viu em sua vida. Ela tinha a pele escura e seus olhos mal abriam. Ela remexia um pequeno caldeirão que cozinhava algo em um fogo armado no chão, mas largou a colher de pau para se levantar com certa dificuldade. O manto que a envolvia era diferente, colorido, com lã de carneiro para manter o corpo quente. Ela usava um chapéu vermelho e retangular.

-Nellie. O menino está comigo. - Standish disse, repousando a mão no ombro dela. A diferença de altura entre os dois era, no mínimo, hilária. A senhora era baixa e redonda.

-Ah. - Ela disse, aproximando-se vagarosamente de Kenny, o bastante para deixá-lo desconfortável, dando uma boa olhada nele apenas com seu olho direito. Um olho cristalino, cor de água, em um contraste tão forte com o tom de sua pele. Era um ser enigmático, aquela senhora, a ponto de Kenny sentir que olhava um fantasma milenar. Logo, Nellie se afastou com uma risada que revelava os espaços entre os dentes que ela perdera. - Reconheci logo pelo cheiro.

Standish apontou para o ombro de Kenny.

-Foi ela que trabalhou em você.

Ele não entendeu exatamente as palavras, mas apontou em questionamento para o curativo e recebeu confirmação. Antes que se desse conta, a mulher já colocava as mãos nele, puxando as bandagens para espiar por baixo. A proximidade assustou Kenny, mas não conseguiu reagir, congelado enquanto ela farejava sua ferida cuidadosamente. O toque doeu um pouco, mas ele não se moveu.

-O menino não deve viajar. - Ela disse. - Amanhã ele deve sentir a dor de verdade. Ainda está dopado.

-Vai infeccionar? - Standish perguntou, enquanto Kenny observava a conversa entre os dois como um bebê curioso que só entendia poucas palavras.

-Está bem feio. A flecha do seu garoto faz estrago. - Ela tinha um sorriso amoroso no rosto ao falar, e, logo em seguida, virou-se na direção do aroma familiar. Nellie era uma alfa. Os anos levaram seus olhos e seus dentes, mas em compensação, o olfato era mais afiado do que nunca. - E por falar no encrenqueiro.

Kenny se virou na direção para a qual ela olhava.

Ao longe, aproximava-se um rapaz familiar montado em um cavalo. Kenny nunca vira um cavalo antes, não pessoalmente, e se perguntava se todos eram tão magníficos quanto aquele. Ou talvez fosse o conjunto da imagem, o sol nascente que brilhava sobre aquele garoto de cabelos vermelhos como a coisa mais vermelha do mundo, agora domados em uma trança, mas continuavam rebeldes e armados naquela amarração desajeitada, caindo sobre o ombro direito dele. Nos filmes e figuras que retratavam cavalos, Kenny sempre via homens de chapéu em um tempo distante em que a Metrópole ainda cultivava algum tipo de natureza em seu interior, mas aqueles que montavam cavalos utilizavam selas e rédeas. O rapaz, no entanto, não usava nenhuma dessas coisas. Havia, no entanto, um cesto amarrado no lombo do animal. Era um cavalo completamente branco, exceto pela longa crina negra que reluzia ao sol, e ele trotava em um ritmo contido.

-Kyle! - Standish chamou, embora o rapaz já conduzisse o cavalo em sua direção. Segurava-se à crina do animal, o corpo integrado ao movimento dele como se fizesse isso desde o nascimento. E fazia. Quando já estavam próximos o bastante, Standish prosseguiu, acariciando o pescoço do animal enquanto falava. - Onde é que você vai tão cedo? Desça aqui um instante.

Ele consentiu ao pedido, mas não sem antes oferecer a Kenny um olhar breve pelo canto dos olhos, o tipo de olhar que lançou um arrepio pela espinha do loiro, a lembrança da dor viva e latejante em seu ombro devido ao último encontro.

Kyle desceu do cavalo, que relinchou e sacudiu a cabeça. Standish se aproximou dele para beijar-lhe a testa.

-Vou colher frutas.

-Christophe vai com você?

-Não. Ele saiu mais cedo com a Wendy para caçar. - E então, Kyle fez um gesto em direção ao imenso lobo negro, um estalo de dedos que chamou o bicho prontamente. Oak se aproximou sem pressa, um balanço sutil em seu longo e peludo rabo, mas ergueu a cabeça para que Kyle afagasse embaixo do seu maxilar. A maneira com que Kyle sorriu para o animal foi tão doce que nem mesmo se parecia com a mesma pessoa a oferecer um olhar gélido para Kenny poucos segundos atrás.

Céus, se o visse dessa forma pela primeira vez, Kenny nem mesmo acreditaria que ele era capaz de ferir alguém.

De perto, podia ver que o menino tinha sardas leves no nariz e nas maçãs do rosto.

-Esse é o meu filho. - Standish disse a Kenny. - Acredito que vocês já se conheçam.

Nesse meio tempo, Kyle tomou a mão de Nellie para beijá-la, abaixando a cabeça de maneira respeitosa. Quase solene, classificariam na terra de Kenny. E então, ao erguê-la novamente, o rosto estava tão frio quanto em seu primeiro encontro.

-Esse é o Kenny. - Standish prosseguiu com as introduções. Oak se sentou ao lado de Kyle, em guarda.

-Kenny? Que tipo de nome idiota é esse?

-Kyle. - Standish alertou, o que pareceu mudar a sua postura de forma quase instintiva. Kenny entendeu o bastante para saber que acabara de ser insultado.

Perguntava-se sobre o gênero do rapaz. Ele se comportava como um alfa, mas algo sobre ele parecia… Diferente. Kenny não sabia apontar o que era. Jamais convivera com pessoas de gêneros distintos antes.

-O lobo. - Kenny se arriscou a dizer, apontando com a cabeça na direção de Oak, que o olhava com curiosidade. Ainda era impossível relaxar na presença de um bicho daquele tamanho. - É seu?

Kyle pareceu surpreso por ouvir vilkiriano na boca de um homem fraco. Após reprimir esse momento de despreparo, negou com a cabeça. A mão ainda afagava o topo da cabeça de Oak.

-Não. É do meu companheiro.

Kenny não sabia exatamente o conceito daquela palavra em vilkiriano. “Companheiro”. A palavra em si não lhe era estranha, já tivera contato com ela antes. Lembrava-se de Stan explicar como era impossível traduzi-la de forma realmente fiel, pois ela podia se desmembrar em significâncias muito mais profundas das relações entre os Vilk do que era capaz de se compreender pela perspectiva civilizada.

Mas lembrava-se de ouvir Standish dizer que o lobo pertencia a seu filho, a menos que entendera errado. De qualquer forma, não questionou.

-Se vai para os bosques, leve Oak com você. - Standish disse, voltando sua atenção ao filho, repousando a mão no ombro dele.

Kyle franziu o cenho.

-Por quê?

-Porque eu estou pedindo.

Por um instante, ele apenas observou Standish com seus olhos tão verdes, estreitos, algo de incomodado aparecendo em seu semblante. Mas não quis falar imediatamente. Era impressionante como algumas coisas transcendiam a linguagem totalmente, podendo ser compreendidas por qualquer ser humano de qualquer local do mundo.

-Eu não preciso de proteção.

Kenny entendeu isso. E, em outras circunstâncias, se soubesse como, teria dito “é, você já provou isso” com uma risada nervosa para aliviar o clima de tensão que se construiu muito rápido. Felizmente, teve a sabedoria para manter a boca calada. Lançou um olhar breve a Nellie, que havia largado sua colher de pau e enrolava algum tipo de fumo em palha, os dedos conhecendo tão bem a técnica que os olhos não faziam falta.

-É pra você não se sentir sozinho. - Standish respondeu com um sorriso afetuoso, mas havia uma imposição em seus olhos, no aperto firme no ombro de Kyle. - Ele é ótima companhia, não?

-Então eu levo o Sly.

Sly, a uma hora daquelas, dormia na tenda de Kyle. Era um lobo de barriga e focinho brancos, mas pelos e cauda castanho-avermelhadas, com manchas pretas no lombo, um temperamental lobo de olhos cor de mel e porte consideravelmente menor. Acompanhava Kyle desde que ele tinha quinze anos.

-Não me faça pedir de novo. - Foi a resposta de Standish.

Com hesitação, Kyle balançou a cabeça e bufou de leve, tornando a subir no cavalo que o esperava pacientemente. E o fez sem esforço, apesar de não ser um homem alto e não haver o apoio de uma sela. Os corpos dos Vilk eram muito diferentes dos corpos da Metrópole.

-Certo. Você ouviu, Oak. - Kyle disse, mantendo um olhar irritado em seu pai antes de assobiar para o lobo segui-lo ao retomar seu caminho.

O sol já podia ser visto por completo, grande e vistoso no céu, sua luz banhando os cabelos e barba de Standish enquanto ele observava a direção para a qual Kyle cavalgava, Oak correndo agitadamente ao seu lado. O animal era uma extensão de Christophe, seus olhos quando ele estava ausente.

-Você os trata diferente demais. - Veio a voz de Nellie de repente, que continuava pacientemente enrolando seu fumo na palha.

Standish se virou para ela com olhos curiosos, talvez um pouco magoados, mas o rosto permanecia sereno.

-Bem, eles são diferentes demais.

-Não é por isso. - Ela disse em um tom entretido, despreocupado, quase pretensioso. Nellie tinha o sorriso de quem podia enxergar tudo, por mais irônico que isso fosse. Conquistara o direito de falar com o seu Vadonis como quem fala com um neto que faz bobagens, em um tom carinhoso o suficiente para não sofrer consequências por isso. - Você sabe que não é.

-Há coisas que eu não consigo evitar. - Standish admitiu após uma longa pausa, olhando novamente na direção em que Kyle havia seguido, mas ele não estava mais em vista.

Sabia que era verdade. Criou dois meninos que foram parar em seus braços de formas distintas. E nenhum dos dois jamais conheceu outro pai que não ele. Um, que nunca o aceitou completamente como pai e se criou por conta própria, que nunca realmente se permitiu ser cuidado por outra pessoa. E o outro, que o olhava com gigantes olhos verdes de admiração desde a infância, que conservava um espírito de liberdade e rebeldia que sempre encheu o peito de Standish de orgulho, mas também o aterrorizava.

Sabia, também, que as coisas seriam diferentes a partir do momento em que um desabrochou em um alfa, um espelho do próprio Standish em tantos sentidos, até mesmo nos sentidos que Christophe renegava. E, mais diferentes ainda, quando o outro desabrochou em um ômega, justamente o ser a quem Standish mais desejava proteger em sua vida. Havia algo que estava além da compreensão relacional, uma camada fisiológica que os regia, que impulsava Standish, enquanto pai, enquanto alfa, a manter Kyle sempre sob seu alcance.

E tal coisa era impossível. Pois Standish havia criado dois guerreiros. Dois seres que não poderiam, jamais, ser mantidos aprisionados por ninguém. Nem por ele mesmo.

-Contanto que você saiba o que faz. - Nellie disse antes de acender o cigarro na chama do fogareiro onde a carne de carneiro cozinhava.

-Eu sinto muito. - Standish finalmente reconheceu a presença de Kenny, forçando um sorriso. O loiro se esforçava para não parecer curioso demais. - Tenho algumas tarefas a fazer agora, mas vou arrumar alguém para lhe mostrar o restante da vila. Seja bem-vindo, Kenny.



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