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História Apogeu - Intermúndio


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Intermúndio: espaço que separa os mundos ou os corpos celestes; lugar longínquo, ermo, solidão.

Capítulo 3 - Intermúndio


A vista da imensa janela do escritório exibia do setor 2 ao setor 13, cobrindo a vasta extensão do território branco, pintando um belíssimo quadro para ser apreciado do alto. Os arranha-céus do setor 7, todo o centro comercial do setor 12, com seus restaurantes e lojas de roupa e joalherias, o shopping de cristal, a usina elétrica ao longe no remoto setor 2. Podia enxergar, é claro, as áreas residenciais com casinhas coloridas do setor 8 ao 10, o riacho que cortava no meio da parte arbórea. Os trens brancos que passavam sobre toda a cidade.

O reflexo do observador aparecia no vidro da janela, seu rosto pálido de feições finas, elegantes, um nariz comprido e um queixo estreito, cabelos de um loiro tão claro que mais se parecia com branco, caindo na altura de seus ombros, com duas mechas amarradas para trás. Era jovem, o rosto, jovem demais para olhar o mundo de cima. E no entanto, ali ele estava. Sua imagem no reflexo distorcia a cor azul-lilás de seus olhos, fazendo com que parecessem muito mais escuros.

Ele encarou o próprio reflexo por um instante, relaxando os músculos da face, erguendo as claras sobrancelhas. Apesar de ter um rosto delicado, o maxilar e as sobrancelhas eram de traços fortes, linhas retas e marcadas que o tornavam, em tantos sentidos, uma figura contraditório.

Era belo. Indiscutivelmente belo.

Contemplava a sua cidade do topo, as mãos nas costas, sua silhueta esguia em frente à grande parede de vidro, mostrando apenas o contorno de seu corpo magro quando visto de trás. Usava branco dos pés à cabeça, incluindo as luvas que revestiam suas mãos, com exceção do colete negro bordado em ricos detalhes. Era impecável, tudo sobre ele. Seus modos, sua gola, seus botões, seus fios, seus sapatos lustrosos.

Estava no último andar do Silver Eye, o Laboratório, uma das construções mais antigas e mais altas da Metrópole, cujas paredes externas todas eram feitas de vidro, mas apenas quem estava dentro poderia enxergar o lado de fora. Jamais o contrário.

E ele observava o movimento da cidade com olhos curiosos. Mas os ouvidos aguçaram previram que a porta se abriria em poucos segundos.

-Diretor. - O rapaz disse, uma vez que a porta automática se abriu com o som macio de ar escapando. Ele pôs os pés sobre o carpete vermelho da sala.

Ao se virar, Gregory se deparou com a figura de Leopold Stotch, com seu moicano loiro e seus olhos assustados de cervo; um deles era mecânico. Bem, os dois eram, mas um se mostrava como tal. Uma parte metalizada que tomava conta de toda a cavidade de seu olho e a parte raspada do couro cabeludo, no lado direito de sua cabeça. O olho em si era um estranho círculo vermelho que girava e fazia um som desagradável. O restante de seu rosto se parecia, realmente, com o de um boneco.

O menino era eficiente, mas tinha uma vozinha esganiçada, um jeito afobado de falar que nunca falhava em aguçar o desejo de Gregory em acertar um tapa cheio naquele rosto com as costas de sua mão cheia de anéis.

-Sim?

-Desculpe incomodá-lo, mas surgiu uma situação. - Ele segurava uma prancheta, e a olhou de relance antes de prosseguir. - Stan Marsh está de volta.

-Já?

-É… Eu também fiquei surpreso. Senhor. - Leopold pigarreou. - Me parece… Me parece que algo deu errado. Eu disse que o senhor provavelmente estaria ocupado, mas ele não aceita falar com mais ninguém. Eu posso pedir para que ele…

-Mande-o entrar. - Gregory interrompeu, indisposto a perder tempo. Afastou-se da janela e caminhou em direção à pequena sala de estar em seu escritório.

Leopold assentiu, e em menos de um segundo, as portas estavam se fechando novamente. Dissessem o que fosse sobre Leopold, mas o garoto sabia como seguir ordens. Isso bastava para mantê-lo por perto.

O escritório era amplo, com paredes de mármore branco e colunas quadradas, um teto arredondado de vidro, com minuciosos detalhes e linhas de aço que se cruzavam. Todo o ambiente era iluminado pelo brilho artificial do sol. Havia sofás de couro branco, mesas de vidro, estantes embutidas repletas de livros, painéis de controle na mesa e nas paredes, alguns ocultos por trás do mármore. Botões cinzas, azuis, amarelos. Telas que apareceriam em um clique.

Fazia um dia tão bonito, um céu rosa com a imensa bola branca projetada no alto da cúpula. As nuvens, que não serviam qualquer função além de uma belíssima escolha estética, pareciam feitas de algodão branco. Gregory jamais deixaria de se surpreender com a delicadeza com que os criadores daquele céu trataram os detalhes, a fidelidade à coisa real.

O diretor trouxe a bandeja de chá para a mesa de centro, feita de vidro, e começou a servi-lo.

A porta prateada se abriu novamente. Leopold esperou que Stan adentrasse o escritório antes de fechá-la, olhando-o com a desconfiança de um guarda. Era um mero assistente, é claro, mas todos os androides desempenhavam o papel de manter a ordem, a segurança. Era seu instinto primário, Leopold não podia evitar. Não era escolha sua.

Stan parecia diferente. Uma barba crescia em seu rosto, seus ombros pareciam caídos o bastante para suportar o peso do mundo. Arrastou os pés sobre o carpete, mas parou de andar de repente. O som de chá caindo na xícara era tudo o que se podia ouvir. Ao erguer a cabeça, Gregory não comentou sobre a terrível aparência de Stanley, o quão sujo ele estava, o quão fundos eram seus olhos. Tinha olheiras de quem não dormia há semanas. O que, pensando bem, devia ser verdade.

-Sente-se, Stan. - Gregory disse com sua voz mais gentil.

O homem assentiu com a cabeça. Parecia tenso, inadequado, mantendo as mãos contra o abdômen como se não soubesse mais o que fazer com elas. Engraçado. Tão pouco tempo no mundo lá fora e um homem já era capaz de se esquecer sobre seus modos, sentir-se desconectado. Tudo isso era simplesmente natural, Gregory sabia. Stan sentou-se na poltrona à frente dele, esfregando um dedão sobre o indicador, os olhos pesados por culpa.

-Eu não esperava tê-lo de volta tão cedo. - Gregory disse, entregando a ele uma xícara branca, mas Stan recusou com a cabeça.

-Desculpe. Eu não gosto muito do sabor.

Gregory levou um segundo para dar um de seus sorrisos com o canto dos lábios, repousando a xícara sobre a mesa.

-É claro. Eu sempre me esqueço. Bem, quer me contar o que aconteceu?

Stan pensou que, quando a hora chegasse, saberia como explicar. Repassou os eventos em sua mente inúmeras vezes na longa caminhada de volta. O som que a flecha produziu ao penetrar a carne de Kenny, os gritos que ele emitia, a ponta da flecha armada no arco apontado entre os olhos de Stan, aqueles olhos verdes com tinta negra em volta, os pingentes de dente de lobo balançando em seu pescoço, o medo de morrer, o semblante assustadoramente calmo do homem de pele escura, a cor do sangue de Kenny, ele repassava tudo mentalmente, todas as noites. Aquelas tatuagens, tão coloridas, tão fortes, tão características que não podiam pertencer a nenhum outro povo. Agora, toda aquela lembrança se parecia com um sonho muito distante, uma coisa que Stan imaginara.

Gregory percebia as pequenas nuances em seu rosto. As rugas deprimentes em seus lábios voltados para baixo, os olhos azuis e opacos encarando o chão, o ar desolado que o cercava. De repente, Stan levantou a cabeça.

Começou pelo que considerava mais importante:

-Levaram o Kenny.

Gregory estreitou os olhos, virando o rosto de lado apenas em alguns centímetros. Esperou que ele prosseguisse, mas Stan apenas engoliu o acúmulo de saliva na boca.

-Quem, Stanley? Quem o levou?

-Eu não tenho certeza. - Após uma eternidade, Stan piscou. - Quer dizer, acho que tenho. Eles… Eram dois. Um deles acertou uma flecha no Kenny. E ele caiu. Foi tão rápido, eu nem soube dizer de onde eles vieram, mas… Eram dois Vilk. Eu sei que eram. Porque eles eram… Magníficos.

Os olhos azul-lilás de Gregory começaram a se abrir. Sua boca, antes tão relaxada, passou a uma tensa linha reta. O rosto, que parecia uma escultura em mármore, cada nuance perfeita, agora, ganhava uma expressão tão séria que era difícil dizer o que se passava por trás de seus olhos brilhantes. Não parecia assustado, não, apenas… Stan não saberia explicar. Maravilhado e tenso simultaneamente, contraindo cada músculo de seu corpo, quase estremecendo. Stan trabalhava para Gregory há cinco anos e nunca o vira esboçar uma emoção com tanta clareza.

-Você os viu?

Stan assentiu com a cabeça, hesitante sem saber porquê.

-Bem à minha frente. Foi… A experiência mais estranha. Tenho lido sobre eles há tanto tempo, acho que nunca pensei que realmente fosse…

-Tem certeza?

Stan fez uma pausa.

-A única coisa que me trouxe dúvida foi o fato de nos atacarem. Sempre li que o Povo Vilk era pacífico, que não gostavam de enfrentamento. Por isso é tão difícil encontrá-los, porque eles tendem a se esconder de seus inimigos. E… O rapaz com a flecha, ele tinha cabelos vermelhos. Isso também me deixou confuso. Não é muito comum entre os Vilk, é?

Gregory se levantou. O chá verde continuou esquecido sobre a mesa enquanto ele se afastava, cruzando um braço em frente ao peito, trazendo a outra mão para tocar o próprio maxilar. Seu olhar não se focava em coisa alguma.

-Não. - Disse, enfim. Estava de costas para Stan, então não havia como dizer qual era a expressão em seu rosto. Mas a voz era vaga, como se a mente estivesse a quilômetros daquele escritório. - Não é.

-Mas as tatuagens… A pintura de rosto, os ornamentos com dentes de lobo… Eu tenho quase certeza do que vi, Gregory.

-Eles são inconfundíveis. Não pelo que penduram em seus corpos ou pintam em seus rostos, mas pela sua presença. - O diretor comentou com um riso fraco, abraçando o próprio tronco. Encarava uma pequena estátua de ouro de um elefante que havia em sua estante, ao lado de um globo de neve. - Se você viu um, sabe que viu. São seres extraordinários, não? É difícil esquecê-los.

-Você já viu um?

Se Stanley pudesse ver o rosto dele, perceberia o sorriso fraco e nostálgico que se formava. Mas Gregory fazia questão de enterrá-lo, aquele sorriso, permitindo-se não mais do que um segundo de reminiscência.

-Já sim.

-Oh. Eu não sabia disso. Você já esteve lá fora?

-Eu não me preocuparia muito com o seu amigo. O fotógrafo, certo? Kenneth? - Gregory se virou lentamente, ainda não por completo. - Você está certo sobre o Povo Vilk. Eles não gostam de violência. Mas também não a temem. É preciso entender o lugar deles. Se você visse dois homens estranhos no quintal de sua casa, com roupas desconhecidas, falando uma língua estrangeira, e tivesse uma arma na mão, você também não atiraria?

-Eu entendo.

-Eles sabem quem somos. Sabem como somos. Podem não escrever livros a nosso respeito, mas sabem que a mudança vem conosco. É inevitável. As criaturas do lado de fora, Stanley, tendem a ser… Tradicionais. Mudança é algo muito difícil para eles. É por isso que seu amigo levou uma flechada. Eu fico feliz em saber que você está seguro. - Gregory quase sorriu. - Você fez um bom trabalho. E foi muito sensato vir para casa em vez de tentar resgatá-lo ou algo idiota dessa natureza. Eu sempre soube que podia confiar em você. Porque você os respeita.

-Muito, senhor. Com todo o meu coração.

-E isso é muito bom. Agora… - A voz de Gregory mudou, tomando uma nota mais séria, quase luxuriosa. - Preciso que me conte onde exatamente ocorreu esse ataque. Onde você os viu?

 

À noite, na Metrópole, o painel do céu se tornava uma exuberante vista tomada pela gigantesca lua cujas crateras todas eram visíveis, diversas nebulosas que manchavam o céu de rosa, roxo, azul, e todos os planetas visíveis em suas cores e relevos, como se pudessem beijar a Terra. As estrelas eram aqueles milhões de pontinhos iluminados que se confundiam uns aos outros, e as eternas luzes da cidade jamais poderiam afetar o céu, pois este tinha luz própria. Foi criado para o bel prazer de ser admirado, diferente de como era lá fora.

Gregory gostava, particularmente, da luz rosada que refletia sobre Vênus de forma sensual, causando uma impressão de que o planeta era feito de veludo.

Mas, para onde ele ia, aquela extravagante projeção de um céu ideal não poderia ser vista. Um pé em frente ao outro, passando pelo longo corredor de luzes azuladas, os sapatos do diretor faziam um barulho característico ao encontrar com o granito preto e branco do chão.

Acima dele, o teto era composto por um moisaico de triângulos iluminados que tomavam forma própria quando se olhasse para a continuidade daquele corredor, uma ilusão de ótica fabulosa.

Um rugido ecoou pelas paredes. Os sons de unhas roçando no chão acompanhavam o clique dos sapatos de Gregory. Patas imensas pisavam macio no chão, com a elegância que somente os seres felinos possuem. Ao lado de Gregory, Átilla caminhava. Um leão de três metros de comprimento, de pelagens acinzentada com nuances brancas e uma juba que se confundia entre preto e azul escuro. O rabo, longo e com uma vasta pelagem na ponta, balançava de um lado para o outro. Seus olhos tinham a mesma cor dos de Gregory, exceto que os do animal possuíam um brilho característico daqueles seres que não nasceram, mas foram criados. Certamente que Átilla não era como os leões que habitavam o Mundo Externo, mas isso nada tirava de sua imponência.

Olhando de perto, podia-se enxergar os caminhos dos impulsos transmitidos através de seu corpo. Foi cuidadosamente criado e montado pelo próprio Gregory. Assim que Átilla deu seu primeiro rugido, tornaram-se seres inseparáveis.

Enfim, pararam em frente a uma das portas amplas do corredor. O leão se sentou, a longa cauda se ajeitando em volta de sua pata, observando enquanto a mão de Gregory se livrava da luva para digitar o código no painel de controle ao lado da porta.

“240971”

Em seguida, pressionou o polegar para a leitura biométrica e aguardou. A porta se abriu. Gregory adentrou a câmara, mas Átilla permaneceu sentado, lambendo a própria pata com sua enorme língua vermelha.

-Você não quer entrar? - Gregory perguntou. A câmara era mais escura do que o corredor, mas isso não deveria fazer diferença para um ser como Átilla, que sempre enxergava tudo em vermelho.

O leão seguiu seu dono para dentro da câmara escura. A porta se trancou.

Por dentro, luzes azuladas piscavam por trás dos painéis. Tomaram o elevador e Gregory apertou no botão prateado que dizia “T03”. Começaram a descer, os sons mecânicos do elevador preenchendo todo o ambiente. Naquele meio tempo, Gregory acariciou sob a mandíbula do animal, que elegantemente ergueu o focinho para dar espaço, fechando seus olhos azuis que brilhavam no escuro.

Gregory sorriu para sua criatura na intimidade do elevador.

Quando atingiram seu destino, o sorriso já não estava mais lá.

As portas se abriram, relevando o último andar do Silver Eye, o mais profundo da parte subterrânea do laboratório.

Um pé em frente ao outro, o som dos sapatos clicando contra um piso completamente diferente dessa vez. Concreto puro e cru. Caminhava com naturalidade, seguido por seu animal, através dos tanques enormes, repletos de um espesso líquido rosado no qual corpos repousavam, adormecidos, com respiradores cobrindo seus lábios e narizes. Muitos tinham olhos abertos, mas não havia consciência. Seres de distintas formas, cores e tamanhos. O som dos geradores era bastante alto naquele andar.

A luz, lá embaixo, era alaranjada e vinha de baixo para cima, como pequenos holofotes. A capa branca do casaco de Gregory se arrastava no chão conforme ele andava em direção às mesas de trabalho, não esperando encontrar uma alma sequer. No entanto, lá estava Craig Tucker.

Craig, diferente de Leopold, havia nascido e era feito, majoritariamente, de carne e ossos. O braço esquerdo, branco e liso, era robótico. A prótese subia até o seu ombro. Repleto de ramificações musculares visíveis e complexas, divisórias que lhe permitiam o movimento completo, como se tivesse nascido daquela forma. Suas pernas, cobertas pelas calças pretas que usava, também não eram feitas de carne. E, em seu pescoço, subia uma estrutura metálica que lhe servia como mandíbula, pois a sua havia lhe sido arrancada. Mas todas as partes importantes ainda eram humanas.

Tinha cabelos negros e muito curtos, raspados acima das orelhas, e olhos tão pretos que mal se podia diferenciar íris e pupilas. Trabalhava com atenção, adicionando gotas de um líquido transparente em uma amostra de sangue sobre a lâmina de vidro.

-Ah, você ainda está aqui. Pensei que todos já tivessem ido para casa. - Gregory comentou casualmente, separando-se de Átilla para se aproximar da mesa. O leão caminhou em direção às jaulas ao leste do laboratório para fazer a contagem.

Craig respondeu com um olhar silencioso que durou um ou dois segundos, retornando sua atenção à tarefa. A expressão era imutável.

-Tenho muito o que fazer.

-Não pretendo atrapalhá-lo.

Sua atenção, naturalmente, voltou-se para a criatura dentro da estreita caixa de vidro atrás de Craig. Um homem gigantesco, um dos maiores que Gregory já vira. As pupilas cresceram enquanto se aproximava da extraordinária figura. Não estava imerso em qualquer líquido, mas apagado por um eficaz sonífero injetado em seu braço, do qual Craig havia extraído o sangue poucas horas antes. O homem nu era coberto por uma grossa camada de pelos, mas seus cabelos eram curtos, uma característica mais comum das tribos do Oeste. Deitando a cabeça de lado, Gregory analisou seu nome. Havia um adesivo com os dizeres “Theodore Cartman, E.” na placa de identificação.

-Um Paciest, eu suponho.

-É.

Os Paciest se tratavam de um Povo canibal e nômade, mas que sempre seguiam as encostas de rios e escolhiam habitações em que facilmente pudessem encontrar ursos. Acreditavam que, ao comer a carne do animal, tornar-se-iam guerreiros maiores e mais fortes. Frequentemente se casavam ou se envolviam sexualmente com ômegas de outras tribos, raras vezes com consentimento. Eram um dos poucos povos monoteístas do Mundo Externo, adorando somente à Grande Mãe, a Ursa Maior criadora de todas as coisas. Não era uma tribo de grande desenvolvimento intelectual, mas tinham um forte contato com suas raízes, quase primitivo demais, com pouco desenvolvimento de linguagem. Eram os maiores homens da Terra, dizia a lenda, descendentes dos gigantes.

-É um belo alfa, este. - Gregory comentou, cruzando os braços.

-É tão fodido como você sempre sabe identificar isso. - Craig disse, erguendo a cabeça de seu trabalho por um momento. - Eu sempre achei que os grandalhões fossem os alfas e os fracotes fossem ômegas, mas essa lógica quase nunca se aplica. Eu sei que merda essas aberrações são porque tá na ficha, e só, mas você olha pra eles e sabe. É esquisito.

-Bem, é muito mais complicado do que isso, de fato. - As pontas dos dedos de Gregory tocaram o vidro que o separava do homem adormecido. - É isso que você pensa deles? Que são aberrações?

-E não são?

-Depende do ponto de vista. De qualquer forma, essas “aberrações” provavelmente salvarão a nossa raça. Deve-lhes um pouco de respeito.

-Eu vou acreditar nisso quando a gente realmente conseguir engravidar alguém.

Gregory virou o tronco inteiro na direção de Craig, devagar. Franziu o cenho por um instante.

-Nós já engravidamos. Mais de uma vez.

-Ah, é mesmo? E um bicho morto, que se parece mais com um porco do que com uma criança, conta?

Após uma longa pausa, Gregory se virou por completo para Craig. Esse tempo bastou para que Craig largasse o conta-gotas e olhasse para o diretor contra a sua própria vontade, encontrando um sorriso condescendente esboçado nos lábios do outro. Por mais que nunca fosse admitir em voz alta, Gregory lhe dava calafrios.

-Sabe, Tucker. É exatamente por isso que você trabalha aqui embaixo e eu trabalho lá em cima. É por isso que você só executa o trabalho manual e ninguém lhe pede para usar seu cérebro. - Ele começou a se aproximar. E ao mesmo tempo, a sombra do leão começou a crescer na parede à direita. Átilla voltava do corredor das jaulas como se sentisse a tensão na voz de Gregory. Craig mordeu a bochecha por dentro. - Você mistura o que eu mando você misturar, corta e disseca e injeta o que eu mando, porque você não entende a grandeza de se criar vida. É um tolo ignorante, e isso não é culpa sua. Mas significa que você trabalhará nesse porão pelo resto de sua vida miserável.

Não havia qualquer tipo de raiva em sua voz. Pelo contrário. Era quase… Gentil, afetuosa, como se explicasse algo muito simples a uma criança. E ao final, sorriu, chamando Átilla com um gesto simples. A forma escura do animal se movia com elegância pelas sombras do laboratório.

Craig odiava aquele maldito leão. O que sentia por Gregory era muito mais complicado do que ódio, e havia camadas e mais camadas de sensações que fundamentavam o respeitoso rancor que Craig desenvolvera por Gregory. Mas o leão… O leão era uma coisa maldita. Mesmo após cinco anos, Craig não se acostumara à imponente presença de Átilla. E o bicho, apesar de não ser feito de carne, parecia saber disso. Passava muito perto dele, de forma cruel, proposital, a longa cauda roçando pela perna de Craig no caminho para se aproximar de Gregory. Átilla rugiu, e Craig fechou os olhos por um instante.

Silenciosamente, voltou a misturar reagentes às gotículas de sangue e deslizou uma lâmina por vez no microscópio para observá-las. Registrava o comportamento das células, o braço biônico digitando em um holograma verde de teclado sobre a mesa de aço.

-Ouvi que Marsh voltou. - Comentou após algum tempo, erguendo a cabeça para procurar onde Gregory estava agora.

O homem se encontrava em frente à grande tela do computador, embutida na parede e dividida em três partes. Era um modelo muito mais antigo do que aqueles que havia nos andares de cima.

O que era natural, visto que a maior parte dos funcionários não tinha acesso (ou sequer conhecimento) ao T03. Gregory acreditava na preservação da consciência. Era um fator indispensável para manter uma equipe de funcionários felizes. Poupá-los de quantos detalhes fosse possível.

-Sim. - Respondeu distraidamente, focado no mapa em alto-relevo que aparecia na tela. Gregory navegava por ele com o cursor, em busca de uma localização específica. Estreitou os olhos, concentrado, seguindo como referência a fina e irregular linha azul que representava o Rio Riga. A marcação de território do Mundo Externo era muito mais complexa. Tribos diferentes tinham nomes diferentes para o mesmo rio, a mesma montanha, e ninguém era dono de terra alguma. Isso tornava o rastreamento de uma localização muito mais difícil. - Ele nos trouxe excelentes notícias.

-É? Eu pensei que tivesse dado merda.

-Ah, Craig. - O diretor marcou um círculo vermelho sobre a região de Ozols. - Muitíssimo pelo contrário.

-O que é isso? - O rapaz perguntou, franzindo o cenho, afastando-se da mesa de trabalho para se aproximar da tela iluminada.

Gregory olhou por cima do ombro. Craig teria dificuldade de esquecer o brilho em seus olhos naquela noite.

-Sabe guardar um segredo, Tucker?



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