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História Apogeu - Liturgia


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Liturgia: conjunto das formas (palavras, gestos) utilizadas na realização de cada um dos sacramentos; rito, culto, ritual.

Capítulo 4 - Liturgia


O tempo do lado de fora parecia ser diferente. Mais dilatado, com noites e dias mais longos, sem a contagem das horas e dos minutos. Apenas a existência e a luz do dia para se guiar. Para os Vilk, naturalmente, aquela era a única referência de tempo existente. Eram sensíveis para as nuances de temperatura, umidade, a queda das folhas, a velocidade do vento, todos esses fatores os localizavam no quando. Para Kenny, no entanto, com seus limitados sentidos de homem da Capital, todos os dias pareciam ser o mesmo. Nos primeiros, sentiu-se terrivelmente mal. Foi acometido por uma febre que o apagou do resto do mundo. Aquilo poderia ser efeito do clima, brusco e rudimentar demais para ele, ou consequência da infecção de sua ferida. Fosse o que fosse, Kenny sobreviveu às noites solitárias de suor, delírio e isolamento, e sonhou com Stan, com a mulher que chamava de mãe, com o grande lobo negro, com as montanhas e pássaros.

Ao sair daquele estado de cólera, arrastando-se para fora da tenda no quinto dia entre os Vilk, Kenny sentiu-se invencível. Começava a se acostumar à pureza daquele ar tão gelado que feria os pulmões.

Foi então que Standish, aquele bom homem, apresentou-lhe uma mulher chamada Nichole. Poderia muito bem ter sido a mulher mais bela que Kenny já vira até então, mas talvez isso se devesse ao fato de ela ser tão distinta de todas as outras mulheres da Metrópole. E ainda, no entanto, não se sentia atraído por ela. Pois havia uma distância tão grande entre eles, e Nichole exalava tamanha força que Kenny sentia-se intimidado demais para sentir qualquer algo que não fosse um profundo e silencioso respeito.

Ela tinha longos cabelos trançados e usava um turbante amarelo na cabeça, deixando que algumas das tranças caíssem sobre seus ombros. A pele era escura, os olhos eram quase rosados. Os lábios eram tingidos por uma tinta marrom, de uma textura diferente dos batons que se usava na Metrópole.

E Nichole falava a língua comum. Era uma linguista, a única da vila, a única que conhecia a língua dos homens fracos. Nunca estivera na Metrópole, e não aprendera nada de livros, mas sim da convivência com os homens fracos que moravam nos vilarejos à margem da Metrópole, aqueles que viviam do turismo pelo mundo externo. Eram poucos e miseráveis, aqueles homens. Pobres, mais pobres que o próprio Kenny. Viver dentro da cúpula de cristal ainda era um privilégio.

Mas Nichole não foi apresentada a Kenny para conversar na língua comum com ele, e sim, para ensinar-lhe vilkiriano. Kenny jamais aprendera nada que não fosse através de livros e da escrita. As aulas tinham início assim que o sol se erguesse no céu.

Nichole foi uma ponte pela qual Kenny ficou extremamente grato. Ela era silenciosa e concentrada, pouco sorridente, mas de uma elegância e gentileza admiráveis. Kenny não precisou conviver muitos dias com ela para sentir que se tratava de uma alfa. Havia algo a respeito da forma com que os outros lidavam com ela que confirmou seu pensamento. Tinha mais facilidade em perceber os gêneros quando observava as interações entre eles.

Nellie, que o visitava com frequência, sempre trazia-lhe as refeições na tenda quando ele continuava vomitando e não conseguia levantar sozinho. Começou a desenvolver afeição verdadeira por aquela senhora cega. Sentia-se confuso e desconfortável com a paternalidade que ela exalava, embora não fosse calorosa e sempre tivesse um comentário debochado a oferecer. Kenny não estava habituado a nenhuma forma de afeição paternal.

Quando se fortaleceu, passou a fazer as refeições com a tribo. Passava a maior parte de seu tempo enfurnado na tenda, agitado com as coisas que via, ou treinando a pronúncia das palavras que Nichole o havia ensinado naquela manhã. Os Vilk não podiam entender tal costume, de passar tanto tempo no interior da tenda, aprisionado pelas paredes. Todas as suas atividades eram ao ar livre, as tendas serviam somente para dormir. Se Kenny fosse bem honesto, o frio era um grande fator. Não tinha a mesma resistência que eles. Os lobos, também, ainda o aterrorizavam. Mas gostava de observá-los, e sentia-se observado de volta, visto com estranheza e certa curiosidade.

Ninguém lhe dirigiu a palavra com hostilidade. E Kenny imaginava que Standish fosse responsável por isso.

Tinha o movimento do braço debilitado pelo ferimento da flecha, e Nellie amarrara seu braço em um tecido para estabilizá-lo. Kenny mal podia esperar para retirar aquela coisa, para que pudesse, finalmente, começar a fotografá-los. Conforme sua estamina e disposição aumentavam, ele começou a passar o tempo caminhando por aquele espaço novo e desconhecido, quinze ou vinte minutos por dia, para expandir um pouco dos seus conhecimentos sobre aquela vila. Pensava em Stan, e no que ele estaria fazendo, se teria voltado para casa. Kenny esperava que sim.

Enquanto vivesse, Kenny se lembraria muito bem da primeira vez que viu Christophe DeLorne. Na ocasião, naturalmente, não conhecia seu nome. Mas esteve presente para ver o homem montado em um cavalo negro de manchas e crina branca, cavalgando a toda velocidade, surgindo por entre as árvores altas e vermelhas, o rosto manchado de sangue mesclado a uma pintura negra em torno dos olhos, os cabelos soltos se erguendo com o vento, olhos estreitos e selvagens, selvagens como os de um lobo. Ele trazia, em suas costas, um cervo morto. Não se segurava no cavalo para cavalgar, tão habituado ao lombo que não era necessário. E diminuiu a velocidade ao se aproximar da vila, até o cavalo cessar o movimento por completo, enfim tornando possível enxergar as feições daquele rosto fechado, severo, que parecia muito mais velho. Por um segundo, voltou os olhos para Kenny, sabendo que era observado. Foi uma fração, um piscar de olhos.

As pessoas não tinham olhos como aqueles na Metrópole. Eram esverdeados por fora e cor de mel em torno da pupila negra, quase avermelhados no centro, uma cor fantasiosa, assustadora. Ele tinha tranças por baixo daqueles cabelos longos e emaranhados. Passou a mão pelo rosto para limpar o sangue, manchando a tintura negra sobre a pele, dando-lhe um ar tão plenamente selvagem que os joelhos de Kenny estremeceram de pavor e fascinação. Era uma criatura fantástica. Um guerreiro puro. O filho de quem Standish falava.

 

 

Na Metrópole, Kenny vivenciou diversos tipos de celebração. O antigo costume do Natal, por exemplo, quando neve artificial caía sobre as ruas e o comércio inflava, resquício de uma tradição cristã que há muito se perdera. Na Metrópole, não havia deuses. Não havia nada sobrenatural e imprevisível, nada mais forte do que o homem. Mas o povo cultivava suas próprias festas, como a Passagem da Primavera, o aniversário da Metrópole, o Festim do Renascimento, todas essas datas comemorativas em que as ruas se enchiam de pessoas para dançar e receber comida, embriagar-se de licor de limão apenas o suficiente para esquecer as canseiras da vida, mas com disposição para trabalhar no dia seguinte. Essa era uma parte importante. E Kenny gostava das festas, tanto quanto qualquer um. Gostava dos frescos bolinhos de chuva e dos jogos de pegar a maçã com a boca, tendo as mãos amarradas para trás. Gostava das luzes coloridas que penduravam entre os postes, da decoração simulando elementos da natureza, como flores e pássaros, e gostava também das luzes neon, da música que pulsava em seus ossos.

E, no entanto, ao sair da tenda naquela noite, teve a sensação de que nunca antes havia presenciado uma celebração de verdade. Que aquela era a primeira.

Naquela tarde, haviam-lhe retirado o suporte para o braço e ele podia se mover sem sentir tanta dor.

A primeira coisa que ouviu foi a flauta. E não se parecia com som algum que já tivesse escutado nesse mundo. Como uma porta para o outro lado, uma coisa mágica em forma de som. Ao colocar a cabeça para fora da tenda, sentindo em seu rosto a temperatura agressivamente baixa da noite, ele viu a fogueira. Seus pés o carregaram para fora sem muito pensar, atraído pelos sons e pelo calor daquela chama imensa, distante, a maior fogueira que já viu em toda a sua vida.

Aquela luz laranja consumia toda escuridão que houvesse em volta. A flauta parecia fazer carinho em seu rosto, puxando-o para mais perto, e as formas humanas estavam longe demais para que Kenny identificasse quem eram, o que faziam. Mas havia muitos, senão todos os Vilk, e seus animais também, seus cavalos e lobos, todos deixando suas tendas e se aproximando daquela fogueira imensa. Havia algo diferente neles, Kenny notou, em suas vestimentas e suas feições. Alguns deles usavam máscaras, máscaras grandes de madeira, pintadas com tintas de todos os tons de terra e de folhas, com chifres de cervo e focinhos de lobo, os corpos cobertos por mantos de pele de urso cinza, longos o suficiente para se arrastarem pelo chão.

Os rostos, que não eram cobertos por máscaras, eram pintados. Faixas de vermelho em torno dos olhos, três riscos vermelhos descendo do queixo até o pescoço, pontos negros na testa e maçãs do rosto, ou ainda, alguns tinham a face pintada inteiramente de branco. Kenny já lera sobre as pinturas, divididas por gênero, função social ou, mais importante ainda, a qual deus o Vilk pertencia. Os filhos do fogo se pintavam de vermelho, em torno dos olhos se fossem guerreiros, nos lábios se fossem curandeiros. Os filhos do ar se pintavam de branco, mas aqueles que pintavam o rosto inteiro eram, certamente, sábios e antigos, os guias espirituais. Kenny arregalava os olhos pela fascinação, aproximando-se deles quase sem perceber, tomado por um encanto desconhecido. O ar da noite era tomado pela fumaça da fogueira, mas ela ardia um aroma de flores e ervas. Como os incensos artificiais da Metrópole, mas infinitamente mais puro, mais forte.

Os tambores se uniram à flauta. E isso causou inquietação no peito de Kenny, como se os tambores batessem dentro dele. Era um som distante de tudo que ele conhecia. Não havia, afinal, como ler sobre os sons. Era preciso senti-los. E Kenny parou de andar, inebriado, observando a dança que se formava em volta da fogueira, os potentes uivos que poderiam ter vindo de animais ou pessoas, pois não havia distinção. Os Vilk uivavam como seus lobos. Agora, Kenny estava próximo o bastante para enxergar que, após um bom pedaço de terra além da fogueira, havia um lago que começava a congelar com o sopro do inverno. Havia, também, uma imensa árvore centenária de tronco grosso, que já havia perdido quase todas as suas folhas.

No céu, uma lua cheia aparecia extraordinariamente próxima à terra, gigantesca como eram todas as coisas, a árvore, a fogueira, a lua, o lago, os uivos. Kenny piscou algumas vezes, desnorteado.

Viu um homem (ou pelo menos se parecia com um homem) coberto por pele de lobo, a cabeça do animal cobrindo-lhe a cabeça, o focinho no meio de sua testa, um chifre de dois ramos saindo do centro da vestimenta. A maior parte de seu rosto era coberta por penduricalhos de dentes, revelando o bastante de seus olhos assombrosos para arrepiar a espinha de Kenny. Eram verdes, muito verdes. O homem era corcunda e caminhava com um cajado até a árvore. Havia penas em seus ombros e amarrações em torno de seu tronco, por dentro da pele de lobo. Trouxeram até ele uma tina que parecia repleta de água quente o bastante para sair vapor. E os tambores seguiam batendo.

De repente, Kenny lembrou-se da câmera. E correu para buscá-la, como se o pensamento o libertasse daquele encanto.

Kenny gastou não mais do que trinta segundos na tenda, que já parecia estranhamente familiar, quase como uma casa. Ao sair novamente, deu de cara com uma loba branca que não prestou qualquer atenção a ele. Mesmo assim, congelou por um segundo.

-Aya. - Ouviu uma voz conhecida, dirigida ao animal. Logo depois, veio o assobio. A loba se espreguiçou antes de olhar para Nichole, que estava de pé a poucos metros, segurando uma cumbuca de argila. Nichole sinalizou com a cabeça para onde estavam os outros lobos, alguns deitados, outros agitados com a movimentação, próximos à fogueira. A loba correu naquela direção. Nichole não sorriu para Kenny, mas o cumprimentou com a cabeça.

Vê-la foi um alívio.

-Ei. - Ele se aproximou. - O que tá acontecendo?

-Já vai começar. Vem ver. - Ela disse (seu sotaque era delicioso de ouvir), tocando o braço de Kenny para que ele se aproximasse.

Uma mulher de cabelos longos e vermelhos passava entre as pessoas distribuindo as frutas de um cesto, frutas de formas e cores que Kenny desconhecia. Frutas rosadas, roxas, verdes, laranjas, compridas e redondas, com cascas e espinhos e folhas nos cabos, coisas extraordinárias assim. A mulher era bela e se locomovia como se flutuasse. Kenny se lembrou dos contos de bruxa sobre os quais lera na parte de mitologia dos povos externos. Aquela mulher, sem dúvida, era uma bruxa.

Ao se aproximarem bem da multidão, Nichole soltou seu braço. Os tambores diminuíam e as pessoas começavam a se sentar, formando um círculo imenso, perfeito, em torno da fogueira e da árvore. Nichole bebia da cumbuca de argila e a passou para Kenny, sinalizando para que ele bebesse do conteúdo e passasse para a pessoa a sua esquerda. Com os tambores mais fracos, algumas pessoas do outro lado, de pé, começaram a cantar. Foi um embalo de vozes, quatro ou cinco, mesclado a uivos. Uma voz era masculina e muito velha, grave, forte. Outras, femininas e doces, combinadas como se culminassem em um abraço. Kenny deu uma boa olhada no conteúdo transparente do pote, aproximando-o do rosto para cheirar. O cheiro era quente e fresco, como os chás de hortelã artificial que conhecia. Mas ao beber, o gosto era inesperadamente forte e salgado. Kenny franziu o nariz, tentando evitar a careta enquanto passava o pote à mulher ao seu lado.

Ao erguer o rosto, identificou Standish próximo à árvore, com as mãos no ombro de um jovem que Kenny identificou pelos cabelos vermelhos e crespos, apesar de ele estar de costas. Standish subiu as mãos ao rosto do rapaz e sorriu para ele. Kyle tinha o arco em sua mão e o porta-flechas nas costas. Kenny se ajoelhou, apoiando as mãos na terra fria, curioso. O outro homem também estava lá, aquele com olhos de lobo, mas algo sobre sua aparência era muito mais delicado agora. Ele tinha os cabelos parcialmente presos para cima, e as tranças não estavam mais lá. Standish voltou a atenção para ele, que era só um pouco mais baixo, e levou sua mão grande à nuca de Christophe para aproximar seu rosto, tocando sua testa à do rapaz por um instante, sorrindo para ele ao se afastar. Concluído isto, retirou-se para a extremidade da roda. E durante toda a interação, não houve um sorriso nos lábios de Christophe.

Kenny nunca vira um rosto de expressão tão rígida. Mas os olhos do homem eram tranquilos quando encontraram o rosto de Kyle.

O homem com vestimenta de lobo permanecia embaixo da árvore. E os dois jovens, lado a lado, puseram-se em frente à tina de água quente, de pé, sem se tocar. Havia algo tão triste a respeito das vozes que cantavam, da melodia que se estabelecia sob aquele céu amplo e estrelado. Kenny abraçou o próprio corpo, observando o vapor que deixava seus lábios ao respirar.

 

Em Kahlo, seus filhos encontrarão a força dos vulcões

E jamais temerão o sangue

Livres e conquistadores

 

As palavras deixavam a boca do homem, em uma voz gutural e estridente, que não parecia humana. Ele bateu com o cajado na terra.

 

Em Agnoy, seus filhos crescerão como as montanhas

E jamais temerão a tempestade

Férteis e estáveis

 

E o cajado bateu na terra.

 

Em Vahlaros, seus filhos encontrarão a sabedoria do vento

E jamais temerão o vôo

Expansivos e sagazes

 

E o cajado bateu na terra.

 

Em Ayrados, seus filhos serão a pureza dos riachos

E jamais temerão a correnteza

Curadores e gentis

 

E, uma última vez, o cajado bateu fundo o bastante na terra para enterrar-se. O homem o soltou, seus dedos longos e formando uma garra, subindo os céus.

 

Em Saule, seus filhos montarão o mundo

E jamais temerão a vida

Pois os deuses os acompanharão

 

A mão desceu com velocidade o suficiente para dar a impressão de ameaça, mas afundou na água sem derramar uma gota sequer. Foi Christophe quem primeiro fez a concha com as mãos para receber a água quente das mãos do Mestre. E Kenny percebia, na luz dançante das chamas da fogueira, que o líquido tinha um tom esverdeado. Não era água pura, certamente que não. Christophe levou as mãos em concha ao rosto de Kyle para que ele bebesse do líquido. Em seguida, Kyle fez o mesmo por ele. E ao fim, Christophe tomou o rosto de Kyle em suas palmas úmidas, fechando os olhos ao se inclinar para frente, tocando sua testa na dele de forma semelhante à que Standish fizera poucos momentos antes. Porém, durou mais tempo, arrastando-se sem preocupação pelos segundos, os narizes se tocando com intimidade. Kyle tocava carinhosamente o braço dele com a mão que não segurava o arco.

Foi nesse momento que Kenny, hesitante, ergueu a câmera para captar o momento, a silhueta daqueles dois homens sob a luz da fogueira.

Todos os tambores cessaram.

 

-Isso foi um casamento? - Kenny perguntou a Nichole. Estavam sentados sob uma árvore, as costas apoiadas no tronco, dividindo uma porção de algo muito parecido com arroz, só que mais molhado. O hábito de dividir comida não parecia ser grande sinal de intimidade naquela terra, apenas uma coisa natural. Esse tipo de hábito não era descrito em nenhum livro conhecido por Kenny.

-O quê? Não. - Ela fez uma pausa pensativa enquanto mastigava. - Quer dizer, de certa forma, sim.

Kenny brincava com a foto que havia tirado entre seus dedos, a câmera descansado em seu colo. Nichole usava uma longa saia vermelha, tinha os joelhos dobrados e as pernas abertas. Ao redor deles, música tocava e a cerimônia acontecia. Os arqueiros faziam um jogo de lançar suas flechas em chamas em alvos distantes, geralmente frutas. Os Vilk batiam palmas no ritmo da música, dançavam, cantavam alto, bebiam aos montes. E uivavam. Como se a lua cheia os afetasse tanto quanto aos lobos, que eram parte intrínseca da cerimônia e tinham suas próprias brincadeiras. Kenny assistia a tudo com fascinação. Havia um senso de ritmo que parecia ligado ao pulsar dos corpos, dos corações, coisa que não existia na Capital.

Aya, a loba branca, havia se deitado perto deles. Ela era bonita, Kenny precisava admitir.

-O que isso quer dizer? “De certa forma, sim”?

-Hoje é o último ciclo da lua antes do… Não sei como chamam na sua língua. A noite mais longa do ano.

-Solstício.

-Isso. Bem, nós só nos casamos no Solstício do Inverno. - Ela pronunciou errado a palavra, e Kenny sorriu, pois achou charmoso. - Mas o casamento não é um direito, é algo que deve ser conquistado. Não sei como funcionam as uniões na sua terra. Hoje é a celebração antes dos deveres serem cumpridos.

-“Deveres”? - Kenny perguntou com a testa franzida, incerto de se ela aplicava essa palavra da maneira correta.

-É, como… Coisas que você deve fazer antes de conquistar o direito de se unir a outra pessoa. A cada lua, até a noite mais longa, há um dever a ser cumprido.

-Tipo o quê?

-São sempre os mesmos quatro, dois para cada amante, um para cada deus.

-Eu pensei que fossem cinco deuses.

Por um sólido segundo, Nichole o olhou sem piscar, como se ele fosse um completo idiota. Era exatamente o tipo de coisa que fez com que Kenny se afeiçoasse a ela tão rápido. Tudo o que aquela mulher sentia estava estampado em seu rosto.

-Saule não é como os outros deuses. - Foi tudo o que ela disse a esse respeito.

-Ah. - Kenny piscou algumas vezes. Quis fazer alguma piada sobre Saule ser o líder da matilha, mas teve medo de soar ofensivo.

-Eu realmente espero que eles consigam. - Ela murmurou, quase que falando sozinha. Kenny seguiu o olhar de Nichole até os dois homens, Kyle e Christophe.

Em todas as outras ocasiões em que Kenny os vira, eles pareciam tão sérios, fechados, intimidadores. Mas nada disso fazia sentido para as duas figuras naquele momento. Eles giravam ao som contagiante da música, o braço de Christophe tão firme na cintura de Kyle, que tinha as duas mãos no rosto do outro como se o enxergasse com as palmas, rindo, dançando, os pés quase saindo do chão. Kenny voltou o olhar a Nichole.

-É comum as pessoas não conseguirem?

-Só não conseguem aqueles que não deveriam se unir para começo de conversa. É para isso que os deveres servem, para separar aqueles que realmente pertencem um ao outro daqueles que se unem por vaidade ou qualquer outra razão. É preciso ser muito forte para se unir a outra pessoa diante dos deuses. - Havia um tom de melancolia na voz dela. Após uma longa pausa, acrescentou – Eu sinto um pouco de inveja deles.

-Inveja?

-É. É uma cerimônia muito preciosa. Mas eu nunca vou passar por ela.

-Por quê?

-Ah. A cerimônia é apenas para alfas e ômegas. Eu sou alfa, meu companheiro também. Os deuses não reconhecem essas uniões.

Kenny não soube exatamente o que dizer. Voltou a observar a festa, os olhos brilhando de curiosidade, perguntando-se se eles estavam embriagados de algum líquido como se bebia na Metrópole.

-Isso não parece muito certo. - Disse, por fim.

-É como as coisas são. E eu compreendo. Mas não se escolhe por quem se apaixona, no fim das contas.

Amor e casamento pareciam funcionar de maneira muito distinta ali. Na Metrópole, o amor se parecia com um tolo conceito ficcional. Aquela mesma frase que Nichole acabara de proferir seria dita na Metrópole como uma forma de debochar da ideia de amor. O que Kenny sempre achara bastante curioso, pois, na prática, as pessoas se apaixonavam com frequência. Talvez fosse apenas uma maneira vazia de buscar aprovação social, reafirmação, melhorar a autoestima, provar seu valor. Na Capital, não se acreditava em deus algum. O conceito de alterar sua vida por conta de uma crença em seres invisíveis era muito distante de tudo o que Kenny conhecia.

-Eu sinto muito.

-Não é preciso. - Ela disse com sua frieza habitual. E, após alguns segundos, quase sorriu. - Obrigada.

-Que tipo de coisa se faz nessas tarefas exatamente? - Kenny perguntou, buscando desviar o assunto.

-Ah. Bem, o ômega precisa da aprovação de Ayrados e Agnoy, que são as forças femininas. Água e Terra. Na lua cheia, a primeira coisa que um ômega deve fazer é se banhar nu no lago de Ayrados durante a primeira noite do ciclo. Kyle passará por isso amanhã.

-Caralho. - Kenny franziu o rosto ao imaginar. - Isso é cruel.

-Não é cruel. Todo Vilk que deseja se unir a outro Vilk sabe que deve passar por isso. É como renascer.

-As pessoas não morrem congeladas?

Nichole encarava a chama da fogueira que começava a se apagar ao longe. O fogo refletia em seus olhos.

-Já aconteceu. Muitas desistem ao colocar os pés na água, temem a morte. Mas isso é seu símbolo de fraqueza. Houve anos em que o lago já havia começado a congelar. É difícil, eu entendo.

-E o que mais?

-Para a bênção de Agnoy, o ômega come um coração de cervo cru.

Kenny se virou de frente para ela, erguendo as sobrancelhas, mas não fez comentários a respeito. Tudo isso soava tão grotesco quanto fascinante.

-Além disso, - Ela prosseguiu. - Durante meio ciclo solar, o ômega borda o manto que vai usar na noite da união. O que parece fácil, em perspectiva. - Nichole quase riu. - Mas é um trabalho minucioso e rico. Bordar nunca foi muito o forte de Kyle. Acho que ele prefere a parte de comer o coração.

Kenny soltou uma gargalhada alta que fez a loba erguer as orelhas.

-Parece.

-E na lua minguante, o alfa escala a montanha de Vahlaros sozinho e desarmado para trazer uma coruja viva, precisa fazer com que ela o siga. Também marcam suas costas com ferro incandescente com o símbolo de Kahlo para obter sua bênção. São as forças masculinas. Ar e Fogo.

-Puta merda. Eu não consigo imaginar amar alguém a esse ponto.

-Bem, essa costuma ser a parte fácil. O que impede muitas uniões é o último dever. O alfa deve caçar um urso sozinho para usar sua pele no dia da união. A carne é servida no banquete. Muitos não voltam. - Ela ergueu o olhar ao céu. - O pai de Christophe morreu assim.

-Eu pensei que… Que ele fosse filho do Standish.

-Ah, ele é. Mas não nasceu da carne dele. Kyle também não. - Ela fez uma pausa pensativa. - Christophe vai voltar. Ele é filho de Saule. Os dois vão se sair bem.

-São seis deveres, no fim das contas. - Kenny murmurou, mexendo em sua câmera. Logo, pretendia se erguer para registrar a celebração. - Não quatro.

-É, bem. Uma para cada deus, uma para o seu companheiro. É justo.

Kenny percorreu o lábio superior com a língua, incerto de se concordava com tal afirmação.

-É. - Disse, por fim. - Talvez seja.

 

Na alta da madrugada, quando os lobos ficavam mais agitados e saíam para caçar, e os Vilk se encontravam no mais puro estado de embriaguez da celebração, a música só se fortalecia, contemplando um estado de transe que era inevitável após horas e horas de repetições. Cantavam canções do mundo antigo, canções que existiam antes da vila ser erguida, antes dos homens andarem sobre a terra, canções que nasceram no coração da natureza, nas ondas do mar e no sopro do vento, no uivo das montanhas, nos primeiros homens lobos que habitaram o mundo. Havia um delicioso regresso ao estado mais primitivo conforme a noite avançava. E havia muito o que celebrar. A união de duas almas, a vida fugaz que poderia não existir amanhã.

E, no entanto, a pequenez da carne ainda falava tão alto, embora o espírito quisesse se elevar às estrelas.

Houve um momento, em meio ao caos, Kyle percebeu o longo momento em que Christophe repousou a mão sobre o quadril de uma jovem moça de cabelos castanho acinzentados, de nome Heidi, uma das ômegas que trançavam cestas e redes de pesca. Ela queria atirar uma flecha em um dos frutos posicionados na longa mesa besuntada do suco de outras frutas atingidas, cascas e pedaços de todas as cores. Ele mostrava a ela como posicionar o arco, como se ela já não soubesse, como se não tivesse passado pelo mesmo treinamento que Kyle quando era criança. E no entanto, lá estava a mão dele em seu quadril, o rosto dele próximo à curva do pescoço, os olhos dilatados como os alfas sempre tinham ao inalar o cheiro de um ômega.

Kyle começou a andar na direção oposta ao caos. Ouviu Token chamar seu nome, mas não houve uma célula em seu corpo que se dispusesse a responder. Ele se afastava da fogueira quase morta, dos corpos dançantes, das tendas, subindo a colina que levava ao campo aberto. A lua, gigantesca e rosada no céu, sorria para ele. Kyle não carregava mais o arco, mas ainda tinha o porta flechas nas costas, uma ou duas restando. Sly, o lobo, correu atrás dele.

Kyle soltou um grunhido irritado ao se lembrar que não trazia o arco consigo. Queria atirar em algo.

A música e o coro de palmas e vozes podia ser ouvido à distância. Longe dos corpos e do fogo, o frio roubava o calor de seu corpo com mais agressividade. Kyle olhou Sly, que se aproximava calmamente, seus olhos reluzindo no escuro. Suspirou, tocando o topo da cabeça do animal, que abaixou as orelhas e pesou os olhos, agitando seu rabo peludo.

Ele sentiu o cheiro de Christophe no ar gelado muito antes de ele aparecer subindo a colina. Lá de cima, podia-se enxergar a magnitude das montanhas ainda mais de perto.

Kyle não olhou para ele. Podia senti-lo se aproximar, e conhecia cada passo que ele dava, sabia exatamente qual era a sua expressão sem precisar olhá-lo. Em vez disso, manteve seu foco na paisagem, na névoa da madrugada que cobria as árvores vermelhas ao longe, muitas delas já nuas, o formato das pedras gigantes e a cor escura da grama. As montanhas eram sua casa. Seu lar.

-Não me toque. - Foi a primeira coisa que disse. Pois conhecia seu homem bem o bastante para saber que ele não intencionava dizer nada. Não era esse o seu forte. Christophe sempre resolvia tudo que era possível com seu corpo. Farejava como Kyle se sentia e chegava dessa forma mansa, tão perto, deitando a cabeça em seu ombro em vez de pedir perdão, colocando as mãos sobre ele. Antes que chegassem a esse ponto, Kyle cortou. E enfim, encarou seus olhos.

Mas as barreiras sempre foram difusas entre eles. Christophe não obedeceu, erguendo a mão para tocar seu rosto, e no mesmo segundo, Kyle sacou uma das flechas para apontá-la diretamente no maxilar do outro, apenas com uma pressão leve o suficiente para mobilizá-lo. No entanto, Christophe esboçou um sorriso fraco. Sly tinha as orelhas de pé, em alerta.

-Você vai me matar? - Christophe perguntou com curiosidade, umedecendo os lábios. A mão tocou o rosto de Kyle mesmo assim, o que fez com que a ponta da flecha pressionasse em sua pele com um pouco mais de força. Não havia medo nele, é claro que não havia. Mas deveria haver. Porque algo fervia dentro de Kyle.

-Se você me obrigar. - Ele cuspiu com raiva, desviando o rosto daquele toque em um movimento brusco. - Eu vi como você tocou nela.

Da maneira mais lenta possível, Christophe inclinou o rosto para frente. E a ponta da flecha, pressionada em sua jugular, recuou junto para que ele se aproximasse. Mas Kyle apertou a mão em torno do cabo com tanta força que os músculos tremeram. Aquele cheiro… O cheiro que Christophe exalava do pescoço, dos pulsos, aquele cheiro que era seu lar e, ao mesmo tempo, era como se um vulcão entrasse em erupção dentro de Kyle toda vez que o sentia. Forte demais para manter a sanidade. Christophe tinha o cheiro das montanhas e do sol, da terra, cheiro de proteção e de algo perigoso, algo ao qual Kyle deveria se submeter. Kyle o odiava por isso. E o amava por isso.

-Você não acha mesmo que aquilo quer dizer alguma coisa. - Christophe sussurrou, próximo o bastante para que Kyle sentisse o calor em seus próprios lábios. - Você só quer brigar um pouquinho.

-Você é meu. - Kyle respondeu quase sem separar os dentes. Se fosse um alfa, teria rosnado de verdade naquele instante. Com a mão livre, cravou os dedos no maxilar de Christophe, colocando-se na ponta dos pés. A pressão em torno da flecha enfraqueceu. - Meu. Eu te mato se você me deixar.

Christophe fechou os olhos de forma embriagada, deixando que seu rosto roçasse contra o dele, ouvindo a flecha cair no chão.

-Por que você escolhe fazer essas coisas quando eu não posso te ter? - Perguntou baixinho, passando o braço em torno do corpo de Kyle, puxando-o possessivamente contra si. E ambas as mãos de Kyle seguravam seu rosto agora, apertavam-no, puxando-o para que os lábios se encontrassem.

Foi breve e faminto, úmido e desajeitado, o sabor de uma coisa proibida por devoção. Christophe se permitiu experimentar a língua dele, apenas um pouco, o suficiente para se lembrar das noites em que arderam juntos quando eram mais jovens. Beijaram-se com vigor e agonia, agarrando-se ao calor do outro em meio ao anúncio do inverno. E se abraçaram um ao outro. Christophe deitou a cabeça no ombro de Kyle, sentindo os lábios úmidos pela saliva dele, e fechou seus olhos, pedindo, assim, perdão por algo inevitável.



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