eu não paro de me dar presentes
Terça-feira é dia árduo. Não é só meramente dia de trabalho, mas também é dia de aceitação. Você odeia ter que aceitar o começo da semana como odeia o emprego de entregador de pizza, mesmo que adore a sensação de velocidade que dirigir a motocicleta lhe proporciona.
O fato é que você continua odiando bastante.
Hoje não era dia como todos os outros. O movimento e o número de pedidos é extremamente baixo, quase ninguém se atrevia a comer pizza no segunda dia da semana, francamente. Ainda assim havia alguns pedidos aqui e acolá, nada muito estressante ao ponto de deixá-lo puto da vida.
Você senta em um dos banquinhos atrás do restaurante e ouve a ladainha que seu colega de entregas solta a cada cinco minutos, o cheiro do cigarro que tragava por todo o lugar. A noite está fria, você nota, embora não estivesse chovendo e você sentisse o peso das nuvens sobre sua cabeça e o cheiro da umidade mesclada a fumaça do vício alheio enchendo seus pulmões.
Já de saco cheio da conversa fiada do outro você se levanta sem pressa e entra no restaurante, dando de cara com a face bonita da moça no balcão - cujo o nome não se lembrava - e que agora parecia inquieta e confusa. Curioso.
– O que tá pegando?
Ela se assusta por um segundo ínfimo e logo suspira, soltando.
– Esses clientes não respeitam nem a terça-feira, quando a gente mal consegue pensar imagina surpreender.
Você se pergunta se aquilo faz ao menos algum sentido. - Como assim?
– Um cliente acabou de pedir que nós o "surpreenda-mos".
Você não consegue segurar um sorriso de deboche, a vontade de passar a perna no tal cliente queimando-te por dentro.
– Eu sei o que é perfeito.
Ela te olha e ergue as mãos frente ao corpo em um claro sinal de "lavo minhas mãos"
Você pede a tal pizza e espera e espera e esper-
– Prontinho!
Depois de pegar o endereço exato do apartamento do sujeito com a mesma moça, ela ainda espia o conteúdo da caixa e dá uma risadinha quase silenciosa. Você sorri de volta e sobe na moto, preparando-se para a sensação sublime de estar flutuando sobre o asfalto. No caminho, uma garoa fraca te atinge e você se sente dentro de um filme dramático no qual o mocinho se sente perdido e fraco e sem rumo
mas você está indo só entregar uma pizza, afinal.
Assim que chega frente a porta já sente o ímpeto de dar uma gargalhada - aquelas de roncar feito porco - ao fitar os olhos de leão que o encaravam. Certamente um jeito vintage de imitar uma campainha. Você se pergunta se lá dentro haveriam cortinas de veludo pesadas ou autorretratos gigantescos e fantasmagóricos.
O homem que atende tem uma postura impecável, um olhar metódico atrás de lentes finas e um cabelo ensopado de gel. Ele te estuda de cima a baixo e você sente desaprovação em cada gota de reflexo dos olhos alheios. Terça-feira e você entregando pizza para um chato de galocha.
Você a entrega sem mais delongas e olha para as próprias unhas enquanto o sujeito abre a caixa e analisa - longamente - seu conteúdo. Depois do que diria 10 segundos, ele te encara com uma sobrancelha mais arqueada que um devido arco-e-flecha e aponta para a caixa de forma ofendida;
– O que é isso?
Você estufa o peito - por que não? - antes de responder.
– É pizza de abacaxi com bacon, senhor, tenho certeza que é surpreendente.
A confusão, raiva e indignação irradiam em ondas do homem. Você só não gargalha porque precisa do emprego, apesar dos pesares. Ele volta a te fitar e você sente tudo de uma vez, ainda tendo a pachorra de sorrir-lhe simpático a espera de seu pagamento.
– Quanto lhe devo?
– 35 pilas.
O ranger de dentes.
Que maxilar bonito, inclusive, você nota.
Ele te entrega as cédulas com um mal gosto quase satisfatório, não fosse toda a sua beleza distrativa. Você as recebe de bom grado e enfia em um dos bolsos da calça, acenando sobre o boné e se virando.
– Espero que aproveite. - ainda sussurra antes de atravessar o corredor e encontrar novamente as escadas.
Porque sim, claro que o elevador estaria em manutenção. Por que não? É o que você sempre disse, terça-feira não é dia de pizza e, principalmente, não é dia de surpresas agradáveis.
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