acabou as crônicas da terça-feira
É terça-feira de novo e a rotina se repete. É um dia árduo, azarento. Está uma noite ótima para ficar em casa pensando na vida. Não é dia de pizza, como sempre, mas o telefone amarelo da pizzaria ainda tocou.
– Deus, é o cara do surpreenda-me. - a moça do balcão, cujo nome ele finalmente descobrira ser Marlene, falou após repor o aparelho no gancho.
Um sorriso brotou instantaneamente e rápido como veio se foi, seu interesse sendo abruptamente roubado pelo sujeito caxias da pizza de abacaxi com bacon. A noite estava relativamente movimentada nessa terça, embora ele estivesse há mais de meia hora sentado em um dos banquinhos rabiscando num guardanapo sujo.
Dava para sentir o calor da fornalha quando ele gritou por sobre o ombro.
– Uma de abacaxi com bacon. Caprichem no recheio!
Que noite ímpar essa.
–/-
O som das notas musicais o faziam sentir-se no paraíso, melhor, em um mundo que não esse. Qualquer lugar que não esse.
Bach era sempre maravilhoso.
A televisão estava ligada no noticiário, o que era um desperdício de energia uma vez que também se encontrava no mudo. Mais adiante estava ele, os olhos fechados e os óculos repousando sobre a mesa de centro enquanto a pilha de livros permanecia intocada ao seu lado. A louça estava por lavar e a casa cheirava a idade e a tapete empoeirado. Que ambiente maravilhoso, respira, sente, uma lágrima de satisfação quase descendo pelas bochechas avermelhadas ao som das vozes do coral no meio da peça;
O leão ruge.
É terça-feira e você já está trabalhando novamente, o currículo pesando sobre a consciência das autoridades. Para comemorar, passara o dia inteiro pensando em um perfeito jantar, ele e Bach, claramente seu par para todas as horas, desfrutando em pleno prazer.
Ao invés de vinho e um prato refinado, entretanto, você não conseguia negar que adorara a afronta do outro dia; lendo-se por esta a mistura ousada de abacaxi e bacon. Por mais que lhe doesse, estava maravilhoso.
É terça-feira e o leão urge.
Imediatamente atenua o volume da música e se dirige até a porta, rezando para que não seja o mesmo entregador da semana passada. Quando abre a porta, claro que é ele parado ali bem em cima do seu tapete "lar doce lar", a caixa de pizza sobre uma das suas mãos enquanto a outra permanecia erguida.
Dejá vu.
– Parece que você gostou da surpresa. - A provocação presente em cada movimento que ele fazia o irritava de fomas inimagináveis.
Isso somado ao fato de já estar praticamente queimando com a vontade - a urgência - de arrumá-lo de uma maneira descente. A mesma calça, DEUS o mesmo tênis ainda mais sujo do que se lembrava. Ajeitou os óculos no rosto, tossindo polidamente antes de estender a mão para o homem a fim de se limitar a pagar pela dita cuja e voltar para os braços acolhedores de Bach.
–/-
Que sujeito mais estranho.
Devia confessar que estava surpreso pelo outro ter se apegado a pizza de abacaxi com bacon dada sua aparência tão...........chata. Ao mesmo tempo, ele sabia que não adiantava negar que se sentia atraído pelo outro. Tirou o boné da cabeça com a mão livre e simultaneamente entregou a caixa a ele, seus olhos dando uma leve arregalada que apesar de ser cômica era também adorável.
– Meu nome é Gilbert.
Ele o encarou meio desconfiado meio estupefato.
– E como isso é relevante? Eu só quero pagar, meu caro, essa é uma noite especial.
"Meu caro", que vontade de rir.
– É 35 mangos, meu querido.
O ranger de dentes mais uma vez.
Enquanto a sensação de nostalgia o invadia, observou-o se ocupar procurando o dinheiro no bolso da calça. Depois de uns segundos, ao perceber que o outro falhava miseravelmente na tarefa de segurar a caixa e procurar o dinheiro ao mesmo tempo, decidiu intervir.
– Posso pegar? - e logo em seguida ergueu as duas mãos frente ao corpo em sinal de paz.
O olhar meio desconfiado meio estupefato mais uma vez. A linguagem corporal do outro gritava explicitamente: mas que ousadia de sua parte, que ultraje. Ele passa a pizza com rudeza e finalmente puxa as notas do fundo do bolso, pagando e em seguida puxando a caixa para si novamente.
O próximo passo era a porta na sua cara.
– Sabe, você é engraçado. - soltou, mais sem querer do que admitiria.
–z-
O entregador de pizza tinha enlouquecido, claramente.
– Perdão?
O maldito riu uma risada fraca e estranha - provocativa era a palavra certa - dando um passo perigoso em sua direção.
– Estou dizendo que te acho interessante. - uma mão no bolso da cargo. - começando pelo leão, é legal.
"legal", que descrição mais refinada.
– Que bom que pareço interessante, agora boa noite. - e tentou fechar a porta.
Ele o interrompeu mais uma vez, entretanto. Puxou uma caneta e um papel sabe deus de onde, rabiscou e colocou-o em repouso sobre a caixa de pizza em suas mãos. Era um número de telefone.
– Da próxima vez, ao invés de ligar para a pizzaria, me liga. Prometo vim bem trajado. - e uma piscadinha barata.
Inacreditável a coragem do sujeito de lhe cantar dessa forma ridícula, meu deus, as pessoas perderam o bom senso. Tentou botar na face uma expressão de pura desaprovação mas só conseguiu permanecer encarando-o como se fosse um ET, a medida que ele andava para trás ainda fitando-o malicioso - os olhos que até agora não percebera serem como grandes rubis - rapidamente sumindo de sua linha de visão assim que o entregador se foi.
Inacreditável.
Fechou a porta, largou a caixa de pizza sobre a mesa, suspirou. Terça-feira era dia de Bach, não de comédia romântica, por deus.
(colocou o papelzinho sob o telefone, ao lado de um exemplar por ler da grande Anne Rice. Não faria mal guardar.)
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