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História Beatriz - Beatriz


Escrita por: Elis_Giuliacci

Notas do Autor


Essa fic é uma one-shot feita a partir da letra da música Beatriz de autoria de Chico Buarque e Edu Lobo.

Ela foi consagrada na voz de Milton Nascimento, mas Ana Carolina regravou no início de sua carreira e particularmente prefiro essa interpretação!

Por favor, ouçam a música!!!

Eu tenho uma paixão pela letra dessa música e resolvi escrever sobre ela.
Espero que consigam sentir todas as nuances que a música proporciona e envolvam-se com a história das duas personagens.

Uso partes da obra de Dante Alighieri - A Divina Comédia - os cantos que mostram o Paraíso. É onde o personagem Beatriz aparece. A mulher inspiradora de Dante é Beatriz Portinari.
A música também utiliza-se de conceitos da obra de Dante.

Leiam as notas finais, por favor

Boa leitura!

Capítulo 1 - Beatriz


Era mais uma chance de ganhar uns trocados. Ali estava eu circulando outro anúncio nos classificados. Não poderia desperdiçar chance nenhuma, a vida não tem sido fácil nos últimos tempos. Últimos tempos? "Francisca, você é muito otimista", dizia minha mãe sempre que as coisas não andavam bem e eu insistia que alguma hora iriam melhorar. Nunca melhorou, não é, mãezinha? Sinto sua falta, estou sozinha e se não me mover serei engolida por esse mundo.

Esse mundo maluco onde há tanta coisa errada! Outro dia mataram o filho da vizinha e ninguém sabe dizer o motivo - alguns dizem que foi o tráfico, outros dizem que foi a polícia - nossa rotina é assim e duvido que quaisquer daquelas pessoas que pedem serviços nos classificados entendam como funcionam as coisas nesse nosso mundo. Sempre trabalho para pessoas que tem casas grandes demais e carros caros demais e sempre estão ocupadas demais para prestar atenção na diarista que corre de lá para cá para deixar tudo limpo e organizado.

Prepotência, não é mesmo? Eles prestariam atenção em mim por qual motivo? Eu sou a Chica, a negra do morro que corre o dia todo procurando o que fazer para não morrer de fome. Eu sou a Chica que nunca vê o morro durante o dia - saio antes do sol nascer e quando volto ele já foi dormir. A Chica não tem ninguém, a mãe morreu no corredor do hospital e o pai ela nunca soube quem era. Mas eu também sou a Chica passista, desfilo na escola da minha comunidade. Sou a Chica que ri da vida e a desafia todos os dias - você não vai me vencer! A Chica que cai no samba no fim de semana, gosta de uma cerveja gelada e se perde por um rabo de saia. Essa Chica aprendeu sob o chicote do preconceito que a escravidão não acabou, mas apesar de tudo isso, sou mulher e faço o que eu quero!

E lá vou eu pegar o ônibus para o centro da cidade. Jornal nas mãos e disposição para trabalhar! Vamos lá! Um pouco de cultura na vida não faz mal, não é?! Trabalhar no Teatro Municipal durante uma temporada de espetáculos. Um grupo de teatro vem para apresentar a Divina Comédia de Dante Alighieri. E como eu sei disso? Eu não consegui terminar os estudos, mas leio tudo o quanto me é possível. Terei minha chance de chegar em casa com um canudo na mão - isso é questão de tempo - por enquanto, eu pratico. E enquanto o ônibus demora uma hora para chegar no meu ponto, demoro esse tempo para imaginar o que eu poderei aprender durante o tempo em que trabalhar nos bastidores desse espetáculo. É claro que vou imaginar que sou parte disso! Quem vai deixar os camarins limpos e as coxias varridas? Quem vai tirar os cestos de lixo cheios dos banheiros ao fim de cada dia e organizar toda a bagunça de roupas, sapatos e bugigangas depois que as luzes se apagarem? A Chica, é claro!

É só confiar! Eu sempre digo isso. Quem conseguiu o emprego? A Chica! Cheguei cedo e o organizador do evento foi com a minha cara. Começaria imediatamente, o grupo chegaria naquela tarde para conhecer o espaço e as acomodações dos bastidores - era a primeira vez que aquele grupo se apresentava na cidade, mas pelo o que eu ouvi, havia uma atriz principal que não fazia parte do grupo - era convidada durante aquela temporada. Quem seria? Eu não fazia a menor ideia e nem vi em lugar algum um cartaz ou anúncio. Isso era o de menos, eu precisava concentrar-me no trabalho. Muito trabalho! Havia um outro rapaz trabalhando comigo, mas ele ficaria com o serviço de levar coisas para lá e para cá - tinha também uma camareira e a "moça do café" como eu gostava de dizer, mas ela não ficou satisfeita com aquele apelido. Só lamento.

O administrador veio atrás de mim apressado pedindo que desse atenção dobrada a um camarim, o maior deles - era o da tal atriz convidada. Beatriz. Eu não sei quem é e só por isso já estranhei - eu conheço gente famosa e já trabalhei para metade delas e nunca ouvi na minha vida alguém famoso que se chamasse só Beatriz. Beatriz de quê?! Sem sobrenome, sem foto no jornal, nem revista de fofoca. Para mim era uma completa anônima assim como eu. Pelo menos uma vez por ano eu sou focalizada por câmeras de televisão quando minha escola passa na avenida!

E lá vai a Chica organizar aquele camarim. Carpete escuro e novinho, armários embutidos, mesa grande com algumas cadeiras, sofá e poltronas, uma penteadeira de madeira com várias gavetas e um espelho enorme. Cabideiro, arara, um baú. Banheiro com água quente, pia grande. Eu poderia morar naquele camarim sem o menor problema! Eu só não esperava as recomendações que o organizador fez a todos nós depois que tudo estava pronto. "Aconteça o que acontecer não incomodem Beatriz. Ela é temperamental e o diretor que queria uma equipe contratada discreta. Então, por favor, sejam discretos!"

O que me deixa mais irritada com esse pessoal é a mina de grandeza.

Será que ela é moça?

Dessas que acham que apareceu na televisão já é maior que a rainha da Inglaterra. Ou uma velha impaciente que resmunga pelos cantos. Ou uma mulher feita que tem tudo na vida mas é mal amada? Eu não entendo. Gostaria de mostrar os mil motivos para reclamar da vida de verdade, mas desisto - é impossível compreender o que passa na cabeça dessas pessoas.

Mais tarde, eu terminava de estender os panos de chão na área dos fundos do teatro quando ouvi vozes estranhas enchendo os corredores. Quando voltei para a cozinha a "moça do café" já havia servido todos os camarins - ela era boa no serviço dela, tenho que admitir. Aquelas pessoas pareciam ter saído de um livro de fantasia - o modo de se vestir, o modo de conversar e sorrir. Um homem alto, cabelos longos e bem pretinhos estava falando com o organizador do espetáculo, logo deduzi que seria o diretor, pois ela fez tantas perguntas que eu que não estava na conversa fiquei zonza. Outro rapaz, branco feito leite, passou por mim com um sorriso aberto e me disse "boa tarde" - educação eles têm, isso é um ponto a mais para eu me sentir confortável naquele lugar. Não gosto de trabalhar com gente sem educação. O rapaz que trabalharia conosco já fazia seu serviço empurrando um carrinho com caixas e logo atrás dele mais dois homens que vieram com o grupo. Bastante gente - deveria ser uma companhia grande. Atrizes, maquiadores, as meninas do figurino, peruqueiro. Todos estavam ali. Ouvi alguém dizendo que a passadeira e a costureira chegariam mais tarde. Seria interessante estar ali, teria um ganho certo e justo, seria divertido e eu aprenderia algo mais.

A movimentação do chegar foi ficando menos intensa e depois de algum tempo já não se ouvia tanto barulho ou conversas, estavam todos organizando cada um seu material para, em seguida, seguirem para o palco e reconhecer o local onde se apresentariam. Resolvi caminhar pelo corredor dos camarins para verificar se havia algo fora do lugar ou, talvez, alguém precisasse de ajuda. Eu só não esperava ouvir um som doloroso logo no primeiro dia.

Será que ela é triste?

A porta do camarim principal já tinha uma placa com o nome "Beatriz" colada nela. Estava entreaberta e lá de dentro vinha um soluço baixo e sentido. Eu não deveria parar ali à espreita, mas foi mais forte que eu. Pela fresta que escapava aberta pude observar uma mulher sentada na cadeira de frente para a penteadeira - tinha a cabeça um pouco abaixada e parecia secar os olhos - estava chorando. Seus cabelos ruivos e lisos estavam presos num coque mal feito, usava um vestido branco com estampas de flores azuis, alças finas e um decote que deixava suas costas a mostra - pele muito branca e um perfume que chegava até mim parada ali na porta com cara de "meu Deus, o que é isso?" Mas o motivo pelo qual aquela figura chorava eu nunca saberia. Saí do meu transe quando ouvi o organizador chamando por mim - era hora de ir para casa, recebemos a orientação de chegar às nove em ponto no dia seguinte e isso era ótimo, pois não teria que madrugar. Votei para casa curiosa por saber quem era Beatriz e pelo quê ela chorava.

Saí de casa mais animada naquela manhã. O sol não castigava tanto e o ônibus nem demorou tanto para chegar. Logo que entrei no teatro já senti o cheiro do café - fui direto para a cozinha e encontrei todos ali - o carregador, a camareira e a "moça do café" - conversamos e trocamos impressões sobre as pessoas que estariam convivendo conosco até o fim do trabalho. Era unânime a boa educação de todos eles, mas ninguém viu ou ouviu Beatriz na tarde anterior e eu também não me pronunciei sobre o que percebi parada na porta daquele camarim - não sabia o que estava acontecendo, não tinha direito de esparramar aos quatro ventos.

Havia pouco serviço à princípio. Eles haviam feito uma inspeção no palco e depois deixaram o teatro, então, eu só recolhi algumas garrafas e organizei os camarins - coloquei cadeiras, almofadas no lugar e limpei todos os banheiros. Tudo cheirando a lavanda e sem nenhum fiapo de nada no chão. "Um brinco!" como diria minha mãe. A equipe de som e iluminação chegou na hora do almoço. Aí sim começaram uma bagunça nos meus corredores com caixas e mesas de som, holofotes de todos os tamanhos, cabos, fios e mais fios. Quanta coisa! Sabia que seria divertido saber como funcionam esses espetáculos por trás das cortinas.

Nosso almoço chegou já passava do meio-dia, era marmitex e estava bom! Tínhamos duas horas de almoço e passaríamos a sair do teatro às 19h. Eu não pediria de cara, mas gostaria de assistir ao espetáculo nem que fosse um dia e nem que fosse pela coxia, eu não me importaria. Não depois do que eu vi chegando e sendo organizado nos camarins - perucas, vestidos, sapatos - era tudo fabuloso! As pessoas iam passando, acertando costuras, um rapaz penteava as perucas e as colocava sobre as penteadeiras, as roupas penduradas nas araras, a maquiadora verificava suas maletas e Beatriz entrava pelo corredor. Era completamente diferente do que eu vi na tarde anterior, não será mais triste?

Será que é o contrário?

Eu vi uma mulher linda desfilando entre as pessoas pelo corredor. Não era muito alta, com um corpo magro, porém, bem feito. Os cabelos que, antes estavam presos, agora movimentavam-se de um lado para outro enquanto ela cumprimentava os que passavam por ela, lindos e longos cabelos ruivos. Lábios finos, nariz fino, olhos pequenos, mas que deixavam à mostra o azul tão forte e ao mesmo tempo tão calmo. Aquela mulher era toda fina. Mas, linda. Beatriz era a figura de uma mulher segura e forte, tinha leveza ao andar e esbanjava simpatia naquele momento caminhando na minha direção.

Será que é pintura?

O rosto da atriz. Uma pintura sem qualquer maquiagem. Vê-la tão próxima deixou-me alarmada por dentro. Rosto iluminado e uma boca que brincava com o riso naturalmente. Os olhos fingindo uma timidez que alcançava a prepotência, como se ela pensasse o contrário do que exibia. Sardas. Eu vi pequenas sardas salpicadas nas maçãs de seu rosto e sorri automaticamente. A pintura em nuances rubras saía da tela de seu autor e caminhava entre os mortais. Completamente o contrário da fragilidade chorosa que vi às escondidas pela fresta da porta de seu camarim. O que eu disse sobre ela caminhar em minha direção? Senti meu coração palpitar e encostei-me na parede para dar passagem para ela. Aquela figura ruiva passou por mim e lançou-me um sorriso seguido de um "boa tarde" quase inaudível dada sua delicadeza. Acompanhei-a com os olhos e acordei quando ouvi "Beatriz!" - o organizador do evento entrou de repente no meu campo de visão indo cumprimentá-la. Aquela conversa fiada de sempre - é um prazer conhecer a atriz mais misteriosa do teatro, parabéns pelo seu último trabalho, é uma honra recebê-la. Tudo bem. Eu gostaria de ver essa ruiva sambando desengonçada lá na roda do morro domingo na hora do almoço enquanto a cerveja gela no isopor e a carne queima na grelha da laje.

Escárnios à parte, Beatriz mostrou-se muito atenta a todo o trabalho daquela tarde. Era a noite de estréia, afinal! Eu não percebi as expectativas com relação a isso, mas estavam agitados, de um lado para outro e falando muito. Passariam um ensaio naquela hora e depois deveriam começar a preparação para entrar em cena. De repente eu estremeci. Era a estréia e eu estaria fora do teatro às 19h. O espetáculo começaria às 20h. Não. Eu teria que continuar ali para tentar ver aquela mulher atuando. A curiosidade em ver Beatriz no palco consumiu meu juízo. Continuei atenta ao meu trabalho, mas não perdia o organizador do evento de vista, assim que pudesse, eu iria até ele para que me deixasse continuar nos bastidores depois do meu horário.

Quando todos se dirigiram para o palco, os técnicos de som e luz já terminavam as instalações e poderiam começar o ensaio. Eu corri para organizar o que poderia lá atrás, mas meus ouvidos estavam concentrados nas falas que vinham do outro lado da grande e grossa cortina preta no fundo da caixa cênica. Misturei-me com a equipe e todos foram bem simpáticos com perguntas e comentários enquanto eu trabalhava entre eles. O peruqueiro era muito extrovertido e fazia brincadeiras o tempo todo, as outras moças riam e até organizavam algumas coisas para que eu não ficasse sobrecarregada. Agradeci profundamente a gentileza e logo estava familiarizada com eles, a ponto de fazer o convite para conhecerem o morro e a comunidade onde eu vivia. Claro! Eu teria que retribuir o ambiente agradável recebendo aquele pessoal no meu ambiente. E isso eu fazia muito bem!

Nesse ritmo harmonioso eu nem percebi o tempo passando. E passou muito rápido. Quando dei por mim a camareira já havia ido embora e nem sinal do carregador ou da "moça do café". "Francisca, o que ainda faz aqui?" Ele mesmo. O administrador do teatro e também organizador do evento estava ali esperando uma resposta para o motivo de eu ainda não ter ido embora. Senti o coração na garganta, mas não deixei que ele percebesse que eu estava intimidada, suspirei, empinei a cabeça e disse que se ele não se importasse eu gostaria de ficar para apreciar a estréia e até poderia ajudar nos bastidores sem que se preocupasse com a remuneração, eu estava ali por gostar de teatro. Tudo de uma vez como se cuspisse as palavras nele. O homem ficou um tempo observando-me de cima abaixo até que brotou um sorriso no canto dos lábios. Ele disse que não haveria problema nenhum e ainda elogiou meu gosto por aquela arte. Sim! Eu consegui! Foi como eu disse: é só confiar!

Agora era só esperar pelo momento e apreciar Beatriz.

           

Dante Alighieri, A Divina Comédia

Paraíso - LUA

A esfera da Lua é a de almas que foram virtuosas, mas abandonaram seus votos, e assim foram insuficientes na virtude da coragem (Cantos II a V). Dante encontra Piccarda, irmã do amigo de Dante. Beatriz discute sobre a liberdade da vontade e da inviolabilidade dos votos sagrados.

 

Espera aí! Beatriz é atriz ou personagem? Beatriz interpreta a Beatriz que acompanha Dante? Era isso mesmo. Ironia ou não era um deleite para os meus olhos o que acontecia naquele palco. Eu estava imóvel num canto da coxia direita de modo que não perderia a atriz de vista e não atrapalharia ninguém.

“Que a Justiça Divina lá na terra

Pareça injusta é, de péssima heresia,

Argumento de fé, que jamais erra."

 

“Mas, como a humana mente poderia

Às alturas alar-se da verdade,

Vou dar-te, o que o desejo te sacia."

 

Aos olhos dos homens a justiça divina é injusta, para os fervorosos isso soa heresia, pois a justiça divina nunca erra. Caso seja certo isso, eu gostaria que a justiça divina substituísse a dos homens, essa não parece de modo algum tão justa.

A voz de Beatriz chegava aos meus ouvidos como um cântico divino e perdia-me no seu caminhar pelo palco - flutuava como diva mítica que acabara de cair entre os mortais para compartilhar sua essência com quem estivesse ali para aceitá-la. E eu estava. Queria ver mais daquela mulher. Eu estava encantada.

Se ela dança no sétimo céu?

Aquela parte da Comédia de Dante era a perfeição. O personagem de Beatriz levava Dante pelo Paraíso e aquela atriz me levava ao sétimo céu.

"O sol por quem primeiro ardeu meu peito,

Provando e refutando, me mostrara

Da formosa verdade o doce aspeito."

 

Fui para casa repetindo aquela trova na minha cabeça. Beatriz era aquele sol que ardeu em meu peito, mas confesso que precisei de um dicionário para saber o que significava "aspeito". Cheguei muito tarde em casa. Quase não consegui coletivo, mas valeu a pena. Sinto apenas por não ter oportunidade de ter cumprimentado Beatriz após o espetáculo - esse privilégio era reservado aos outros artistas e gente importante que estava ali por ela. Queriam estar com ela, falar com ela e ouvir sua voz. Eu cheguei em casa e só precisava de um bom banho, algo para confortar meu estômago. Conferi o que aquela palavra dizia e completei minha trova como um Dante da aurora do morro, dos repeniques da bateria nota dez. Beatriz mostrou-me o doce semblante da formosa verdade - a beleza e calmaria dessa mulher ao pronunciar os versos da peça, que já beirava os mil anos, mostravam-me uma paixão de primeira grandeza, de primeira viagem. Eu estava encantada.

Terceiro dia e eu quase me atraso! Chica, você está ficando preguiçosa ou desatenta. O despertador foi lançado ao chão enquanto eu procurava travá-lo e saltei rápido da cama uns vinte minutos depois procurando por ele. Meu Deus! Eu estava muito atrasada! Café da manhã nem sei o que era até chegar ao teatro. O ônibus balançou e parou tanto naquela manhã que senti-me enjoada. As ruas, as pessoas, os carros, os prédios passavam todos através da janela e eu não enxergava nada de nítido, apenas o rosto iluminado da minha pintura ruiva resplandecendo sob aquelas luzes na noite anterior. Eu absorvi cada detalhe. Cabelos presos por uma tiara entrelaçada de flores e alguns cachos bem torneados desciam pelos ombros. Maquiagem carregada impedindo as sardas respirarem, olhos com longos cílios postiços sombras azuis e verdes tão claros que contrastavam em muito com o negro do delineador e a boca contornada por um vermelho vivo que só não era mais bonito quanto ao vermelho natural de seus cabelos.

Essa melodia imagética embalou meus passos dentro do teatro. Fiquei observando o palco por alguns minutos. "Está atrasada!" Era a voz renitente da "moça do café". E quem era ela para cobrar meu atraso? Não estava pagando meu salário, mas eu nem poderia reclamar, o administrador não estava lá, assim, eu tinha escapado de uma bronca realmente relevante.

Que sujeira e que bagunça! Eu não limparia aquilo tudo a tempo nunca! Chica, você é guerreira, vamos lá! E ademais eu tinha um acalanto na minha rotina do dia - veria Beatriz novamente logo após o almoço. Vassoura, balde, escova, panos, detergente, água. Mãos à obra! E fiz mesmo uma obra de arte durante toda a manhã naqueles camarins - tudo limpo e no seu lugar, tudo cheirando a lavanda. Pediria outro desinfetante, aquele era forte demais ou era eu que estava nervosa demais e sentia-me enjoada. No camarim principal eu fiz questão de uma limpeza mais minuciosa e era o lugar que mais pedia atenção - flores espalhadas por todo o lugar, restos do lanche sobre a mesa, a penteadeira toda revirada, roupas jogadas sobre o sofá e o carpete todo marcado.

O relógio correu assim como eu mesma para terminar e deixar tudo pronto para que as pessoas chegassem sem ter que esperar que eu terminasse. E assim aconteceu. Enquanto eu almoçava ouvia o barulho das pessoas pelos corredores. A voz do diretor, essa eu conhecia bem desde o ensaio que prestei atenção, estava alta e parecia que alguma coisa não corria bem naquela tarde. Tentei apurar os ouvidos, mas era muita gente falando ao mesmo tempo e eu não consegui entender, enfim, saberia mais tarde.

A camareira enrolou-se nas trocas de toalhas e pediu que eu a ajudasse. Eu já tinha terminado meu serviço e não seria problema, então peguei algumas das várias toalhas que estavam em seu cesto e ajudei a distribuir pelos cômodos. Ao chegar próxima ao camarim principal eu respirei fundo - seria a oportunidade de dizer a Beatriz o quanto seu trabalho me deixara encantada e o quanto ela atuava bem. A camareira foi para o camarim da frente e eu bati na porta onde via escrito "Beatriz". Sem reposta. Talvez ela ainda não tivesse chegado. Abri devagar e pus a cabeça para dentro do cômodo. Ninguém. Caminhei até a penteadeira e fui colocando uma das toalhas sobre ela quando a porta do banheiro se abriu depressa.

— Quem é você?

Eu gelei sem me virar, fiquei paralisada. Era ela. Sua voz estava fraca, mas quando me virei fiquei assustada - seus olhos estavam inchados, vermelhos. Estava chorando, eu não consegui palavras em tempo hábil para tentar confortá-lo seja lá pelo que fosse.

— Eu trouxe toalhas. - eu disse a verdade, mas queria dizer mais coisas.

— Deixe onde quiser e suma da minha frente!

Ela gritou comigo. Sim. Vociferou como uma louca desvairada, como se eu tivesse invadido seu espaço de propósito ou para irritá-la. Bateu a porta do banheiro e ainda pude ouvir o que dizia lá dentro. "Esse pessoal trabalha como um bando de dementes!"

Se acredita que é outro país?

Aquela mulher pensava ser uma grandeza única. Outro país, outro mundo.

Se na noite anterior eu experimentei o paraíso de Dante, agora era atirada ao seu inferno. Eu não vi nada nem ninguém, deixei as tolhas, todas elas, sobre a penteadeira e saí rapidamente daquele camarim. Se aquela mulher tinha problemas eu não era responsável por eles, gostaria de ter feito um elogio, mas seu ego não precisava dos meus elogios, talvez ela já tivesse todos os que precisava. Senti o peito arfar e uma sensação de pequenez tomou conta de mim. Logo a Chica toda imponente que descia o morro ignorando os assobios dos homens e deixando a mulherada com a cara torcida de inveja. Uma atriz branquela estava tirando minhas certezas? Não mesmo. Precisava ignorar aquela grosseria, ela não era nada e continuaria assim. O que eu vi na noite anterior era uma atriz interpretando o seu papel. Apenas isso.

Entrei na cozinha e a "moça do café" viu minha desorientação, viu meu assombro. "Está bem?" Não, eu não estava bem, mas não era da conta dela! Ela entendeu tudo isso com apenas um olhar que lancei à ela. Sentei-me e olhei lá para fora, nos fundos do teatro - o céu era de um azul como os olhos de Beatriz. Chica! Eu precisava afastar aqueles pensamentos se não quisesse chorar na frente daquela moça curiosa. Peguei o jornal e fui direto para o caderno de cultura, o meu preferido. Antes não tivesse aberto aquelas páginas - "Estréia de Paraíso de Dante tem uma das piores atuações de Beatriz"

E se ela só decora o seu papel?

Aquela agressividade tinha motivo, mas ela não tinha motivos para me agredir. Afinal, era só uma atriz que decorava seu papel e executava seu trabalho. E, pelo visto, a crítica não gostou do que aconteceu na noite anterior. Eu gostei. Às vezes eu discordo dos críticos, eles podem ter a visão técnica, mas não tem a visão sensível que o público tem. Naquela hora eu sorri. Sorri por ver o que havia feito tanto mal à Beatriz e, por agredir-me, ela merecia. Deixava meu lado mais rasteiro e maldoso subir à tona e deliciar-me com o que estava lendo sobre ela. Ela merecia. Cada palavra.

Irada?! Eu estava e não era pouco, mas minha mãe ensinou a ter piedade pelas pessoas, então, depois que me diverti com o jornal o deixei lá mesmo na cozinha e fui cuidar da minha vida, do meu trabalho. A escala sentimental, essa que temos internamente e que faz nossos sentidos irem de um rumo para o outro, funciona muito bem e de modo que não podemos controlar. Ao final da tarde eu estava triste. De repente tudo ficou pesado. Meus ombros sentiam que todo aquele sentimento carregado de mágoa estava sobreposto neles. Meu caminhar ficou mais vagaroso e eu não consegui sorrir para mais ninguém dentro daquele teatro - as pessoas que, na noite anterior, mesmo com tantas coisas por fazer, ainda tinham um pequeno tempo para dirigir-me uma palavra carinhosa ou um gracejo rápido apenas por passar por mim. meus olhos pesavam, talvez pela noite mal dormida e o despertar frenético da hora perdida. Senti alívio quando o relógio chegou às 19h. Saí antes que os outros, sem dizer nenhuma palavra. Queria o ponto de ônibus, queria o morro, queria o meu barraco, queria minha cama. Dormir e esquecer o dia. Esquecer que as pessoas podem ser imprevisíveis, que podem ser desmedidas ou que podem, simplesmente, não ser nada do que vemos ou pensamos ver.

Se eu pudesse entrar na sua vida.

Tentaria descobrir como pode ser tão triste e tão exuberante ao mesmo tempo. Como pode o divino e o grotesco viverem em um único corpo. Certa vez disseram que seu nome significava "aquela que trás felicidade". Ah, isso é bem verdade. Ao olhar aquele corpo envolto em trajes esvoaçantes passando de um lado a outro de uma caixa cercada de lâmpadas a impressão é que a felicidade plena mora ali e transborda para que possamos levar um pouco dela. Ao apagar das luzes não há mais cor, não há mais som. A felicidade se tinge de negro e invade o seu redor com tristeza.

Adormeci com a imagem de Beatriz.

Eu não disse, mas nosso trabalho seria de quinta a sábado apenas. Portanto, amanheci num domingo cinzento. Demorei a sair da cama. A sensação era que tinha levado uma surra - corpo dolorido e cabeça pesada. Olhei em volta e fiquei mais desanimada ao constatar que minha casa precisava do mesmo trato que eu dava à casa dos outros. Louça por lavar, levar o lixo para fora, organizar roupas e livros. Coloquei logo um pagode no celular e pus-me a faxinar meu barraco.

Logo veio o cheiro do churrasco na vizinhança e o samba esquentava o tempo animando até mesmo o sol que tivera preguiça de colocar-se à mostra naquela manhã. Onde estaria o sol por quem primeiro ardeu meu peito? Poderia estar dormindo ou tentando levantar-se. Talvez tenha dormido com alguém ou apenas chorou em lençóis de seda sozinha.  Quem saberia? Eu não quero saber! Passei o restante daquele longo domingo com o conflito mental de proibir a mim mesma de pensar em Beatriz.

Na segunda bem cedo já estava no grande portão do condomínio de luxo onde duas madames solicitavam meus serviços e eu dedicava aquele dia todo às duas mansões. Futilidades e ostentações. Era mesmo uma segunda-feira - enquanto muitos reclamam de um dia cansativo pós-fim de semana e preguiça, eu investia minha energia em tudo para que terminasse o quanto antes deixando aquelas mulheres satisfeitas e eu mais feliz distante delas.

Na terça-feira era o dia do escritório de advogados e de uma clínica de beleza. Em um eu aprendia como encontrar imperfeições nas leis, em outro eu aprendia como acabar com as imperfeições dos outros. No escritório, os donos eram jovens e sempre tinham problemas com horário - não chegavam na hora e eu tinha uma chave para começar a limpeza antes deles aparecerem, geralmente, acabados por causa da noitada. Na clínica, o casal de cirurgiões plásticos eram metódicos e extremamente exigentes - eu já havia me acostumado e gostava daquilo, além de serem honestos, eram divertidos e traiam-se mutuamente deixando sempre algum horário do dia para discussões à portas fechadas.

Na quarta-feira eu estava dentro do escritório do clube de um time de futebol. Tudo certo se não fosse o time rival do meu time de coração! Gostava dos diretores, dos funcionários, ate alguns jogadores que apareciam vez ou outra, enfim, de todo mundo envolvido com o esporte, mas não admitia usar qualquer coisa que fizesse referência aquele time - de jeito algum trocaria meu time! Meus patrões ali sabiam da realidade e tratavam-me com carinho fazendo brincadeiras sobre a rivalidade de nossos times. Só tínhamos um trato - caso os dois jogassem, não haveria nenhuma palavra dita na semana seguinte, para não terminar com o clima amistoso.

Quinta-feira. Eu estava renovada por tanto trabalho que antecedeu aquele dia, já nem me lembrava da tristeza de uma semana atrás. Tinha noção que encontraria toda aquela rotina de três dias e tudo o que aconteceria pelos bastidores - horários, ensaios, limpeza e o vai-e-vem dos atores, técnicos e todo o resto. O carregador, a camareira e a "moça do café" chegaram juntos comigo naquela manhã. Meu bom dia foi o mesmo do primeiro dia e eles devolveram a saudação tão animados quanto eu, naquele instante senti que o dia seria tranquilo e nada poderia abalar minha paz - de algum jeito torto senti que poderia vê-los como amigos.

Cantei uma antiga canção do mestre Jamelão - eu amo essa música desde a minha infância quando acompanhava minha mãe nas rodas de samba da comunidade, mais tarde foi regravada por Marisa Monte com a Velha Guarda da Portela e apaixonei-me ainda mais pela música. "Quando vem rompendo o dia eu me levanto, começo logo a cantar essa doce melodia que me faz lembrar daquelas lindas noites de luar, eu tinha um alguém sempre a me esperar..." Esfregava o chão, espanava os móveis, guardava as roupas e retirava o lixo com aquele samba delicioso na minha mente. Rotina simplória que me deixava feliz por demais. Fazia tudo com prazer e sabendo que as pessoas notariam a diferença se estivesse bem feito. Depois que limpei os camarins menores era chegada a hora de entrar no santuário da deusa principal do olimpo particular daquele teatro. Trancada. Eu não compreendi. Forcei novamente e estava trancada, de fato. O administrador não estava por ali e não poderia ter trancado sabendo que eu limparia quando chegasse. Fiquei parada um tempo olhando para aquela porta fechada com os olhos fixados em "Beatriz". Bem, eu não sei onde existe uma outra chave para aquela porta, não teria como fazer a limpeza daquele dia antes que a atriz chegasse e eu não poderia ser culpada pela desordem do lugar. Dei as costas e fui saindo quando o eco do clique da tranca me fez parar.

— Entre.

Era ela. Era ela? Sim, era ela mesma. Mas onde ela conseguiu aquela voz eu não sei dizer. Estava rouca, grave, fraca. Eu me virei lentamente e caminhei de volta à frente da porta, agora aberta pela metade - lá dentro um vulto enrolado em um roupão branco arrastava chinelos pelo camarim voltando para o sofá que, por sua vez, estava forrado com um cobertor todo embolado e tinham dois travesseiros amassados de um lado. Beatriz dormiu ali? Não fazia sentido algum. Ela não fazia sentido para mim desde a semana que passou. Eu continuei parada na porta empunhando minhas armas de trabalho, ela virou-se lentamente e me observou por um momento.

— Eu atrapalho se continuar aqui no sofá?

— Não. - agitei a cabeça ainda tentando entender o que ela fazia ali. Entrei. Coloquei o balde dentro do banheiro e fui pegando o lixo para retirá-lo dali. Havia toalha de banho jogada sobre a pia e uma frasqueira grande aberta ao lado. Ela dormiu mesmo ali. Passei de novo por Beatriz levando o lixo para fora do camarim e retornei para começar a varrer o carpete - e nem estava tão sujo. Notei que ela estava sentada, levantou as pernas dobrando-as sobre o sofá e puxou um dos travesseiros abraçando contra o peito. Olhava desolada para o chão.

— Foi você que trouxe as toalhas naquele dia?

— Sim, senhora. - fui orientada para ser discreta e acresci a minha educação no pacote. Continuei varrendo.

— Por favor, eu peço que me desculpe. - ela juntou os cabelos e prendeu um rabo no alto da cabeça - Eu não tinha a menor noção do que fazia ou dizia naquele dia. Não quis ser grossa.

— Não precisa se desculpar, senhora. - precisava, mas eu não poderia expor o que realmente pensava, mas ao mesmo tempo eu me compadecia dela. Beatriz parecia muito cansada e deprimida. Sua voz estava tão fraca que não pude deixar de perguntar - Precisa de um café. Posso pedir para a copeira trazer. É, a "moça do café" era copeira também, ela deveria acostumar-se com tantos nomes que eu daria à ela, sem perguntar qual era o de batismo.

— Sim, eu preciso me desculpar e não, não se importe com o café. - olhou para mim diretamente e eu estremeci com o azul de seus olhos tão perdidos tentando encontrar o frescor de uma noite bem dormida, mas não era o caso ali. Beatriz não dormira bem e mostrava isso no rosto desconsolado - Qual o seu nome?

— Francisca, mas todos me chamam Chica! - ela achou graça, talvez no meu jeito em dizer Chica, mas a pergunta que veio depois me deixou curiosa.

— E você tem um Daniel, Francisca? - olhei denunciando minha ignorância e ela prosseguiu - Daniel é o grande amor de Francisca em um conto de Machado de Assis. - enfim ela sorriu. O céu se abriu e eu contemplei o sol por quem primeiro ardeu meu peito. Que mulher belíssima. Sem maquiagem alguma ou qualquer outro adereço que turvasse o que ela era de fato - Não quero atrapalhar seu trabalho, Chica.

— Não atrapalha, senhora, pode continuar, se quiser, eu vou trabalhando. - de onde eu tirei aquela ideia estúpida? Não perguntem, pois nem eu mesma sei, mas Beatriz viu naquela frase uma oportunidade.

Será que é de louça?

Louça frágil e delicada. Qualquer toque abusivo e grosseiro quebraria aquela peça fina e rara que precisava de todos os cuidados do mundo. Ela ajeitou-se no sofá. Apanhou o outro travesseiro e recostou-se nele enquanto o outro jazia em seu colo e recebia dela carícias que eu mesma gostaria de receber. Suas mãos delicadas e finas seguiam pelo tecido eu acompanhava seus movimentos. Beatriz começou a falar. Sim, ela queria falar e eu seria a sua melhor ouvinte.

— Eu tenho ficado muito tempo sozinha, Chica. Não tenho conversado com muitas pessoas e, às vezes sinto vontade de mandar todas essas pessoas que ficam ao meu redor para bem longe! - pausou e suspirou - Talvez eu deva me aposentar. Gostaria de sair de cena sem muita exposição. Antes não era assim, mas agora me sinto tão cansada de tudo. Tudo! - frisou o tudo de tal maneira que parecia que a vida se mostrava um fardo para ela e eu tive medo, mas deixei que ela prosseguisse - Eu tenho certeza que você consegue ser mais feliz do que eu, Chica. Não precisa se obrigar a dizer coisas ou fazer coisas que vão contra o que você pensa e não precisa estar perto de pessoas que sugam sua alma. Acredito que você trabalhe muito, mas no fim do dia volta para casa, para sua família e encontra paz. - eu comecei a recolocar algumas peças de roupas na arara e Beatriz ia narrando aquilo que, aos seus olhos, era uma tragédia - Em uma certa fase da minha carreira eu não me importava. Eu queria estar no meio dessas pessoas, elas me traziam trabalho, proporcionavam-me estar no círculo ativo da minha profissão. Eu conseguia papeis mais facilmente e era prazeroso viver escondida como se eu fosse uma criminosa, pois eu tinha uma vida pública como um castelo de cartas. A minha vida real não era vivida e eu não me importava. - eu fui para o banheiro e Beatriz aumentou o tom da voz para que eu a ouvisse - Agora eu não suporto mais viver nessa escuridão! Eu quero minha vida de volta. A Beatriz que morava em algum lugar distante de qualquer maldade e interesse, a moça ingênua que descobriu o quão amargo é o gosto de uma vida onde as pessoas querem ver você fazer e dizer coisas que você não quer.

Quando terminei ela também cessou o discurso. A louça quebrada estava em silêncio. Eu parei ao seu lado, de pé, suspirei olhando aquela figura em cacos. Olhei ao redor e puxei a primeira cadeira mais próxima. Sentei-me nela e nem pensei no que aquilo poderia resultar. Eu apenas quis falar.

— Eu trabalho muito. Todos os dias e sem parar. Quero uma vida digna e preciso lutar para conseguir. Não tenho família, todas as vezes que retorno para casa, encontro paredes vazias e cômodos escuros. Mas eu sou feliz com o que eu tenho. Faço as minhas escolhas e não sei se são certas, mas são as minhas escolhas. As pessoas não sabem o que vai dentro de mim e não preciso que elas saibam, pois são as minhas coisas. É a minha vida e só eu sei o que ela precisa. - ela olhava-me com atenção e aqueles olhos azuis verteram um brilho estranho - Eu não tenho formação, mas sei que vou conseguir porque eu quero. Entende? É o que eu quero. Eu preciso confiar em mim, apenas isso. Quando eu a vi naquele palco interpretando vi uma mulher tão diferente do que vejo aqui, mas ela ainda é você. Faz parte de você. Seu jeito de tratar as pessoas ao seu redor, o jeito como caminha, como sorri é só seu e você é quem escolhe como fazer. Não acredito que tudo que tenha feito até agora tenha sido em vão. Tem uma carreira reconhecida, pelo que percebi, e é por suas escolhas. Mas se agora você quer mudar o rumo disso tudo é também a partir das suas escolhas e isso só você pode saber. A pergunta é: você quer?

Um silêncio profundo tomou conta daquele camarim quando eu coloquei um ponto final naquele discurso. E devo dizer um belo discurso. Nem imaginava que era capaz de dizer tantas coisas profundas e de uma só vez. Eu sempre soube que ler nunca era demais, mesmo quando meus amigos diziam o contrário. Aquela mulher parada na minha frente estava estática apenas me observando. Eu começava a me incomodar com aquela exposição. Ela traçava cada ponto do meu rosto e, enfim, eu baixei os olhos tamanha vergonha que senti com aqueles olhos azuis sobre mim.

De repente senti o veludo das suas mãos sobre as minhas que estavam sobre meu colo. Ela segurou uma delas e apertou levemente fazendo com que eu a olhasse mais diretamente.

— Obrigada. - Beatriz sorriu. O sol por quem primeiro ardeu meu peito sorriu tão docemente que me levou a retribuir abrindo-me em um tímido sorriso - Agora eu acho que preciso de um café! - com aquela frase ela se levantou. Caminhou até a porta e olhou para os dois lados. Eu continuei sentada na cadeira não compreendendo o que aconteceria a seguir, mas ela sabia - Tem mais alguém no prédio? - retornou seus olhos para mim e eu neguei - Podemos ir até a cozinha?

A louça quebrada estava com fome. Levei-a pelo corredor e a "moça do café" assustou-se com Beatriz entrando pela cozinha e sentando-se com seu bom dia doce. Eu olhei para aquela moça assustada e pedi que servisse o café para ela enquanto eu terminava o trabalho no camarim. Era a última etapa daquela manhã - o camarim de Beatriz era o centro do meu trabalho e agora estava acabado. Passei pela cozinha e observei a atriz tomando café preto sem açúcar, comeu alguns biscoitos e agora conversava com a "moça do café", perguntava como era trabalhar ali e se era ela quem fazia todas as quitandas que eram servidas nos camarins. Não. Tudo chegava logo cedo da padaria mesmo, mas era tudo muito gostoso, ninguém poderia reclamar.

Beatriz voltou para seu camarim e eu voltei para a minha realidade depois de todas as palavras e confidências ditas. O que aconteceu? Eu tentava compreender.

A rotina de todo o dia seguiu. Voltei ao camarim de Beatriz para levar as toalhas, mas ela já não estava mais lá. Saiu sem se despedir? Chica, você é tão ingênua quando quer! Aquela mulher queria apenas alguém para desabafar e talvez nem tivesse dado tanta importância no que você disse. O administrador chegou ao teatro quando estávamos almoçando. Ele nos deu algumas instruções para aquele dia. Haveria uma recepção ao final da apresentação daquela noite e um serviço de Buffet fora contratado, sendo assim, precisariam que ficássemos para orientar as pessoas que viriam para organizar o serviço de copa do buffet. Ele foi bem cauteloso e deixou que decidíssemos, não fazia parte do contrato e teríamos um ganho extra. Eu logo me dispus a ficar, mas a camareira e o rapaz das caixas se recusaram dizendo que precisariam ir para a casa. Justamente a "moça do café" ficaria comigo. Eu consegui lançar-lhe um sorriso de alívio, talvez. Teria um rosto conhecido para trabalhar comigo à noite.

Passamos pela tarde sem problema algum e pude ouvir Beatriz conversando no palco durante um ensaio que ela mesma havia solicitado. Sua voz estava firme e suas falas perfeitas. A equipe do buffet chegou no meio da tarde e começamos nossa jornada para preparar a recepção.

O espetáculo tinha duas horas e meia de duração. Bem extenso, mas os aplausos daquela noite foram mais fortes que da semana passada. Mais prolongados também. Sabia que eram para Beatriz, pois ela reverenciava a platéia sozinha à frente do elenco ao final da apresentação. Eu esperava que a crítica não fosse tão feroz quanto a da semana passada.

Será que é de éter?

Na mitologia grega, o éter é a personificação do "céu superior" ou o "céu sem limites". Éter é o ar elevado, puro e brilhante, respirado pelos deuses. Todos naquela noite respiravam Beatriz. Ela estava a própria deusa Afrodite com o vestido da peça caminhando em meio a um grupo grande de pessoas. Algumas vieram para assisti-la, outras eram da equipe e o diretor estava ao seu lado, de braços dados com ela. Ela recebeu naquela noite uma homenagem assim que a peça terminou. O administrador do teatro resolvera oferecer essa homenagem por ser a primeira vez que ela se apresentava no teatro e sua carreira era relevante para a história daquela arte.

Eu gostaria de saber o que ia dentro de Beatriz depois de tudo que ouvi naquela manhã, mas seria contraditório, pois ui eu mesma que disse à ela que somente nós mesmos podemos saber. Porém, eu via a Beatriz que ela resistia tanto - a mulher de sorriso delicado e olhares suaves para todos que a cercavam. Vez ou outra ela olhava ao redor, parecia que procurava por algo ou alguém. Se tivesse alguém por ela, talvez tivesse me contado naquela manhã. Chica! Pare de se colocar como peça importante dessa história! Você apenas narra os fatos e não participa deles!

Um dos garçons solicitou a limpeza de um dos cômodos ao lado do camarim principal e lá fui eu, discretamente, executar o meu trabalho. As pessoas estavam transitando por ali, entravam e saiam do camarim de Beatriz. Quando eu deixava o lugar uma pessoa esbarrou em mim.

— Desculpe-me! - era ela mesma. Beatriz - Você está bem? - outras pessoas passavam por nós, mas ela insistia em falar comigo - quando soube que estariam aqui fiquei pensando se não é tão cansativo ficar no mesmo lugar por muito tempo!

Eu não entendi nada, mas pude ver de perto o brilho de seu rosto e sua altivez - nada que lembrasse o seu semblante cansado da manhã. Ela soltou as palavras, sorriu e logo o diretor da peça veio levá-la de volta para dentro do camarim.

Foi o último momento em que vi aquela linda atriz repleta de sorrisos e lucidez. Voltei para o trabalho. As pessoas começaram a se despedir, outras ainda colocavam caixas e equipamentos no lugar. A "moça do café" e eu recebemos uma folga na manhã seguinte, o que era bem justo. Aliás, percebi que essa folga também valia para toda a equipe do grupo de teatro. Não haveria ensaio no dia seguinte. Apenas fariam a apresentação.

Algumas horas mais tarde um táxi deixava-me na rua abaixo da minha na comunidade. Um grupo de rapazes estava por perto, o motorista ficou tenso, mas eu logo cumprimentei aquele grupo que conhecia bem. Não fariam nada que eu tivesse que depor na polícia mais tarde. O carro se foi e eu também.

Quando disse que foi a última vez que vi lucidez em Beatriz, eu falava muito sério. Cheguei ao teatro por volta das 13h. Já das laterais da assistência eu ouvi um copo se quebrando. Alguns rapazes estavam regulando os holofotes no palco e olharam assustados para trás. Eu apressei o passo e dirigi-me para o corredor dos camarins.

Será que é loucura?

O diretor da peça passou por mim como um furacão de ira. Seus olhos estavam vermelhos e seu peito arfava, seu nervosismo exalava. Alguns atores permaneceram em seus camarins e pessoas da equipe passavam de um lado para o outro sem expressão. A porta do camarim de Beatriz estava aberta. De lá outro copo saiu voando até bater contra a parede e virar mil cacos no chão. Imaginei como deveria estar o cômodo todo, mas não tive coragem de aproximar-me. O diretor voltou e parou em frente a porta esbravejando.

— Eu não posso fazer mais nada, Beatriz! Não haverá apresentação hoje! Veja como você está! - lá de dentro ouvi uma risada abafada, mas chorosa. Então caminhei devagar para passar dali para a cozinha. Não queria me meter naquela confusão, minha função não era isso.

— Você! - ela gritou. Eu continuei caminhando - Você! - ela disse mais alto e apressou-se pela porta, empurrou o diretor - Francisca. - parei. Parei com o grito, porque era meu nome, porque ela estava dizendo meu nome completamente bêbada. Lentamente eu me virei e senti todos os olhos daquele lugar sobre mim. Ela sorriu quando parei de frente para ela - Venha, por favor... - firmou-se nas pernas e fez um gesto para que eu entrasse no camarim. Olhei para o diretor que entendi menos que eu, mas eu fui. baixei minha cabeça e caminhei para dentro do camarim. Beatriz veio logo em seguida batendo a porta com toda a força que podia.

A loucura que tomou conta daquele ruiva fez com que uma garrafa de uísque estivesse caída vazia no chão. Simplesmente eu não me movi. Parei no meio do cômodo com Beatriz caminhando em volta de mim tentando se equilibrar. Loucura.

— Olhe para mim! O que você vê? - eu não respondi e ela foi adiante - Eu não sou nada, percebe? Eu não sou nada! Tudo o que você viu ontem era teatro, do início ao fim. - ela segurou a própria cabeça entre as mãos e deixou lágrimas rolarem pelo seu rosto - Eu estou farta disso!

Será que é cenário?

A casa da atriz. Loucura minha também, eu sei, mas foi a única coisa que passou pela minha cabeça diante daquela mulher louca aos gritos. Onde ela morava? Onde era seu porto seguro? Para onde ela corria quando queria distância do mundo? E se ela não tivesse nada disso? Para onde iria?

— Por favor, senhora, precisa se acalmar.

— Como eu me chamo, Chica? - pergunta tão vaga em meio a uma tempestade de dúvidas, mas vamos começar primeiro pelo mais simples.

— Beatriz.

— Então, por favor, não precisa me chamar de senhora!

Se ela mora num arranha-céu?

Calmamente levantei meu braço estendi minha mão para ela. "Segure sem medo" Era o que queria dizer. Ela se apoiou em mim e fiz com que sentasse no sofá e sentei-me ao seu lado. A ruiva agarrou-se na minha mão com força e olhou-me profundamente. Eu respirei fundo e tentei elaborar algo reconfortante para dizer, mas eu não conseguia nem me dar o próprio conforto!

— Por que tudo isso?

— Eu não sei... - palavras vagas para uma voz vaga de uma boca trêmula em um rosto pálido. O quanto ela bebera além daquela garrafa de uísque eu não saberia mensurar, mas estava acabada. Cabelos desgrenhados e olhos abatidos - Às vezes me sinto tão distante, longe de tudo! Como se eu estivesse no alto de um arranha-céu e ninguém consegue chegar até mim. Eu avalio se é vantajoso permanecer tão longe ou me atirar desse lugar onde estou. O que você acha? - sua perturbação era angustiante. Beatriz estaca despida de qualquer máscara ou personagem. Era ela ali tentando medir sua distância do mundo e como poderia voltar para ele. Ou voltar para dentro dela própria.

— Quer saber o que eu penso de verdade? - pensei em ser mais cautelosa, mas ela estava bêbada, isso era determinante, ou me ouviria ou deixaria de lado como, provavelmente, fazia todas as vezes que passava por essas crises. Ela apenas assentiu com a cabeça e eu fui em frente sem rodeios - Quer mesmo a Beatriz de volta? - seu sorriso veio fácil acompanhado de lágrimas e eu também quase deixei que as minhas rolassem por aquela mulher fragilizada - Abandone tudo isso! - mostrei-lhe ao redor. Sim, se ela queria voltar a ser o que deixou, se perder deveria começar abandonando o que a levara de si mesma. Eu sei que ela compreendeu, apertou minha mão com mais força.

— E para onde eu posso ir, Chica?! - seu rosto verteu-se numa expressão de agonia e quase deixei que ela me escapasse, mas contive sua mão agarrada à minha - Não entende? Eu não tenho lugar nesse mundo, não posso buscar pela Beatriz, pois eu não sei onde a deixei!

E se as paredes são feitas de giz?

Não existe nada antes dessa Beatriz? Seria isso? Suas verdades antes da atriz são feitas como giz que se esfacela à medida que é usado? Uma realidade que não existe mais, foi usada, exauriu-se. Fim. Não! Fim, não! Deveria existir algo para além das paredes frágeis, pintadas com textura sólida e não rabiscadas de giz que se vai ao sabor do vento. O giz que pode ser desfigurado com um simples correr de dedos.

— Para onde você vai quando tudo isso termina, Beatriz? - lançou-me um olhar duvidoso como se eu quisesse fazer chacota com a sua dor - Para onde você vai quando a luz do palco se apaga? - ela chorou. Não precisei de palavras e àquela altura eu estava torturando a mulher desfeita de seus personagens. Eu mesma acabara de passar os dedos pelos rabiscos de giz de suas paredes e feito um borrão desfigurado.

E se ela chora num quarto de hotel?

Nada. Beatriz não era nada. Senti um pânico invadir-me e quis me desculpar, mas isso não importaria. Ela estava sentada num lugar que não era seu, com uma total estranha dizendo verdades secas e cortantes. Voltei à imagem da primeira vez em que a vi - chorando sentada na frente daquela penteadeira cheia de coisas que não eram suas. Onde ela estava? Chorando num quarto de hotel. Chorando num lugar que não era seu.

E quem eu era? Eu fazia parte daquele cenário? Seria eu a apresentadora daquele espetáculo deprimente onde a atriz se vê perdida sem falas num palco vazio. Eu quis abraçá-la, envolvê-la em meus braços e dizer que tudo aquilo acabaria assim que eu saísse de cena. Não poderia. Eu jamais poderia imaginar ter aquela mulher em meus braços.

E eu tive.

Enquanto pensava em todas as rupturas que aquela tragédia grega causou dentro de mim mesma, Beatriz lançou-se sobre mim e tocou meus lábios com os seus. um estalo. Como um raio caindo num descampado durante uma tempestade pavorosa. Foi isso que eu senti. Não tentei afastá-la, mas mantive meus lábios cerrados sentindo os seus bem grudados, macios e molhados de suas lágrimas. Ela continuou ali. Seus braços encontraram os meus e ela tentou um abraço puxando-me um pouco para perto dela. Foi quando eu mesma a abracei e meu peito soltou-se da armadilha em que eu mesma me coloquei e arrastei aquela mulher sem querer.

E se eu pudesse entrar na sua vida?

De certa forma eu já estava. Só não entendia em que ponto daqueles dias loucos e intensos isso foi acontecer. Recolhi aquela louça quebrada com todo o cuidado e trouxe para meu peito arfante. Ela chorava. Senti seu coração saltando e afaguei seus longos cabelos tentando colocá-los em ordem. Aos poucos e bem devagar a respiração dela foi aquietando-se, mas a minha continuava à galope. Eu mostrei a ela o meu lado que lutava por sobrevivência e agora ela veria a criança medrosa que se escondia.

— Fique comigo. - balbuciou aquele pedido ao mesmo tempo que ajeitava seu corpo junto ao meu. Se alguém entrasse por aquela porta eu não saberia o que fazer, mas pouco me importava. Beatriz estava mais calma. Continuamos caladas, abraçadas. Sentíamos apenas o ritmo de nossos corpos entrando em sintonia. Nada mais.

Minha cabeça deu giros alucinantes. O que ela pedia? Como ela pedia? Ficar com aquela mulher significava o que? Eu não sabia o que pensar ou o que dizer. Eu só queria estar ali tentando retirar todas as suas lágrimas e dores. Por que, Beatriz? Por que pedir algo que talvez nem você possa sustentar? É injusto. Eu não poderia querer aquela mulher, mas eu quis.

Naquela noite não houve espetáculo. Ficamos durante muito tempo fechadas no camarim e ninguém ousou bater naquela porta. Depois soube que o administrador soltou uma nota em nome do teatro e do grupo que não haveria apresentação devido ao um mal súbito de Beatriz. Isso causaria especulação na mídia e ela teria que enfrentar as suposições e mais críticas.

Quando ela deixou meus braços senti frio. Medo. Ela havia recobrado a consciência, mesmo o cheiro de uísque exalando por todo o camarim, senti Beatriz lúcida e eu aflita. Ela caminhou para o banheiro. Continuei sentada até que ouvi o barulho do chuveiro. E agora Chica? O que acontece agora? Você volta para seu mundo e tenta fingir que nada daquilo aconteceu? Qual Beatriz sairia daquele banheiro? Qual personagem seria levado para fora daquele camarim para continuar a vida? E a sua vida, Chica?

Meu medo subiu pelas paredes de giz que agora compunham a minha casa. Dentro de mim foi criando-se um turbilhão de perguntas e sufoquei-me com minhas próprias dúvidas. Levantei-me depressa e abri a porta do camarim. Corredor vazio. Caminhei depressa até a cozinha e lá estava ela, a "moça do café". Sem dizer absolutamente nada ela colocou uma bandeja com uma xícara e a pequena garrafa de café.

— Ela vai precisar disso.

— Onde está todo mundo?

— Alguns voltaram para o hotel e outros estão nos camarins e no palco.

Aquele silêncio parecia traiçoeiro. Segurei a bandeja e, enfim, lancei um sorriso sem máscaras para aquela moça que foi a única que participara de todo o espetáculo.

— Obrigada. - sai dali levando o café para o camarim. Beatriz ainda não havia terminado deu banho e isso me deixava mais apavorada. Eu não teria outra distração que não meus pensamentos sobre a minha própria vida.

 Eu desejei aquela mulher desde o momento em que a vi chorar de costas para mim. Eu a desejei enquanto caminhava em minha direção quando coloquei meus olhos em seus olhos azuis. Desejei a ruiva que vagava pelo palco na noite de sua estréia. Desejei a explosão de palavras cruéis. Desejei a depressão e a loucura que prostrou-se diante de mim rasgando-se em pedaços.

Ela saiu enrolada no seu roupão com os cabelos molhados e a expressão mais cansada, porém, o brilho voltara aos olhos ainda tímidos. Servi-lhe o café e dei as costas para sair do camarim.

— Aonde você vai?

— Vou deixar que fique sozinha para descansar, caso precise estarei na cozinha.

— Chica, não. - ela foi até mim. Olhou-me buscando em meu rosto algum sinal que entregasse o que eu estava pensando. Ela não poderia. Nem eu mesma sabia tudo o que passava na minha cabeça naquele momento - Você não entendeu? Eu quero que fique comigo.

— O que quer dizer com isso? - minha irritação foi notada. Ela deu um passo para trás e franziu o cenho estranhando o tom agressivo na minha pergunta. Inclinou um pouco a cabeça e observou-me por mais um tempo até que suas palavras começaram a rolar de sua boca como um texto decorado e interpretado.

— Chica, você não deve ser real. Se fosse real já teria me magoado. E nem pense que tudo que me disse deixou-me magoada. Longe disso! - passou as mãos pelos cabelos molhados - Quando sentou-se e contou-me sobre sua vida e suas escolhas eu percebei o quanto eu depreciei minha própria condição. Eu nunca poderia ter feito tal maldade comigo. Privei-me de ser quem eu sou por acordos e contratos. Nunca consegui viver um amor por não ser adequado para a minha carreira eu me envolver com outra mulher. - sentia meu corpo estremecer e de repente vi a luz de seu sorriso aos poucos iluminando aquele rosto tão machucado - E você apareceu. Eu não sei de onde você veio, mas chegou até mim como um sopro de realidade. Se eu tivesse encontrado você no meu caminho há mais tempo eu tenho certeza que seria tão feliz quanto você me disse ser. - eu tentei assimilar tudo aquilo, mas era incompreensível, porém, Beatriz não percebeu minha confusão e continuou - Você tem uma vida simples e é sua própria dona. Como você mesma disse: você apenas confia em você.

— Você tem noção das coisas que me diz? Quer que eu entre na sua vida?

— Você já entrou, Chica. Está aqui comigo e quero que não vá embora. Por favor, eu confio em você! Ajude-me a confiar em mim.

Chica, a negra do morro, solitária e marrenta. A Chica dona de si que sambava na vida. A Chica que tomou os lábios da atriz naquele momento e deixou-se queimar ao sol por quem primeiro ardeu o seu peito.

Sim, me leva pra sempre, Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão

Para sempre é sempre por um triz

Diz quantos desastres tem na minha mão

Diz se é perigoso a gente ser feliz

Eu quero. Quero que Beatriz leve-me para algum lugar que não seja meu e nem dela. Um lugar que nós vamos criar. Eu não quero mais andar com os pés arraigados no chão, quero que ela me ensine a voar e eu vou ensiná-la a confiar. Se a vida é sempre por um triz, que eu esteja sempre um segundo antes desse triz, mas com ela junto de mim. Essa vida e tão incerta, Chica, não há como escolher o certo. As escolhas são feitas por nós, mas o que vem depois delas é sempre um delicioso mistério que só é delicioso se o caminho não for solitário. Essa felicidade que tanto se busca pode ser feita de louça ou de éter, nós escolhemos como vamos sonhá-la e nisso não há perigo, é como eu sempre digo: é só confiar!

Tudo o que veio depois daquele beijo cheio de ternura e incertezas foi como um filme que nós duas, sim, nós duas juntas assistíamos. Eu nem sei por onde começar, mas eu dancei no sétimo céu.

Será que é uma estrela?

Beatriz terminou suas apresentações como estava previsto no contrato. Concedeu entrevistas, a crítica voltou a notificá-la no caderno de cultura, mas elogiando sua atuação deixando para trás o estigma do fracasso. Eu cumpri meus horários durante os dois longos meses em que a peça ficou em cartaz e até fiquei mais próxima de Lourdes - isso mesmo! Era esse o nome da "moça do café".

Será que é mentira?

Esse tempo de correria pelos camarins, luz, som, perucas, vestidos e maquiagens foi feito para germinar a sementinha que começava a brotar dentro de cada uma de nós duas. Nada de olhares, nada de sorrisos ou horas dentro do camarim principal. Ela era a atriz que interpretava uma deusa e eu a arrumadeira que deixava tudo limpo e organizado cheirando a jasmim. Sim! Eu fiz com que o administrador do teatro trocasse aquele desinfetante enjoativo. Nossa permanência naquele teatro ema uma mentira contada como numa peça de teatro e eu nunca imaginei que conseguiria interpretar um personagem tão bem.

Será que é comédia?

Em um desses domingos que a ressaca da apresentação pegava toda a equipe, eu levei todos para o morro e passamos o dia com a comunidade. Samba, cerveja e churrasco. Levei Beatriz para conhecer o meu mundo e ela perdeu-se na alegria da simplicidade - era lindo vê-la sorrir por qualquer coisa - minha ruiva estava feliz! O diretor da peça abusou da cachaça, e aquela era realmente boa, mas seu fígado não estava acostumado. No fim da tarde os mais resistentes desceram para a roda de samba de um bar de esquina que havia no pé do morro. E, pela primeira vez, eu deixei de trabalhar na segunda-feira. Amanheci com Beatriz ao meu redor ouvindo o cachorro do vizinho latindo para o dono da venda.

Será que é divina?

A vida da atriz. Quando Beatriz anunciou que deixaria os palcos uma avalanche de notícias salpicavam em jornais, revistas, internet. A especulação sobre sua saída da vida artística era absurdamente agressiva e eu fiquei incomodada com toda aquela agitação. A vida de Beatriz estava escancarada para o grande público e eu temia sua recaída. Em uma noite, quando vimos num site de fofocas a nossa foto feita por um paparazzi senti meu coração gritar no pescoço - eu fiquei nervosa, esbravejei e praguejei amaldiçoando a mão que fizera aquela imagem. Beatriz permaneceu serena e apenas sussurrou em meu ouvido enquanto acalmava-me num abraço "Tudo se ajeita. Apenas confie!

Se ela um dia despencar do céu

Depois daquela imagem nada mais foi tão tranquilo. Eu caminhava para o trabalho e alguém aparecia fazendo perguntas. Eu corria. No escritório de advocacia recebi uma oferta de processo por danos morais contra o site que publicou a imagem - os dois advogados ficaram indignados com a invasão de privacidade, mas eu fiquei tão indignada quanto depois que eles apresentaram seus honorários! Beatriz reagia à tudo com tamanha suavidade que eu não compreendia de onde vinha toda a sua certeza. Ela respondia com uma única frase: "Eu fiz a minha escolha." Havia recusado dois papeis em peças e um convite para uma participação especial em um longa-metragem. Se estrelas despencavam do céu, minha ruiva tinha atirado-se de lá. Ela dizia que era temporário, um dia poderia voltar, mas caso não acontecesse ela continuaria feliz da mesma forma.

E se os pagantes exigirem bis

Era impressionante a insistência em criar histórias e articular com malícia a vida das pessoas. Descobri que Beatriz era cliente da clínica onde eu trabalhava, aquele casal de adúlteros continuava com o negócio prosperando, mas não deixaram de ganhar um pouco mais por avisar quando eu estaria realizando a faxina das quartas-feiras. Beatriz trocou de esteticista e eu procurei outra coisa para fazer durante aquele dia da semana.

E se o arcanjo passar o chapéu

Depois de tantas confusões a ruiva decidiu que era hora de tomarmos outro rumo e isso complicou um pouco nossa relação à princípio. Ir embora daquela cidade implicaria em abandonar toda a minha vida, deixar tudo o que eu tinha para trás. E o que eu faria em outro lugar? Não deveria me preocupar? Ela insistia que poderia segurar as pontas enquanto eu não tivesse um emprego. Eu não admiti, porém caso eu conseguisse um emprego em outro lugar poderíamos ir. Não demorou muito. O que eu gostava e sabia fazer de melhor - continuei como diarista. Claro! A Chica de nariz empinado não se deixaria ser sustentada. Vive-se de amor, mas não vive-se nas costas do amor! Logo deixamos a cidade. Era hora de passar o chapéu. Era o fim do espetáculo.

E se eu pudesse entrar na sua vida?

Hoje estamos bem e ainda nos amamos intensamente desde quando vi aquela ruiva chorosa dentro do seu camarim. Estou estudando! Enfim vou ter um canudo nas mãos! E nem pensei duas vezes ao escolher o curso - Letras - Claro! Chica não passou boa parte de sua vida no morro lendo e escrevendo para fazer Matemática, não é? Eu queria brincar com as palavras e ensinar as pessoas que elas poderiam brincar também. Minha saudosa mãezinha teria orgulho do que me tornei. Beatriz estava completamente feliz em sua nova atividade - formou a sua própria companhia de teatro. Era pequena, mas minha ruiva sentia-se plena escrevendo, dirigindo e ensinando. Eu perdia-me a observá-la trabalhando, com o mesmo encanto de quando escondi-me na coxia daquele teatro para, pela primeira vez, vê-la atuar.

Nossa escolhas foram paralelas e tão certas!

Sobre entrar na vida da atriz? Isso já faz tanto tempo, mas vejo hoje que não era bem onde as nossas escolhas nos levariam.

Nós entramos.


Notas Finais


Agradeço do fundo do coração por lerem essa história que foi para mim um surto que precisava ser exposto! =D

Perdoem-me algum erro que tenha passado despercebido. Avisem e eu corrijo! =P

Por favor, digam-me o que sentiram com toda esse universo ao redor de Beatriz! ♥

Tenho um grupo no Whats para trocar ideias sobre as fics, caso queiram participar é só mandar o nº e eu add!

Mais uma vez obrigada!

Até a próxima


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