Levo tiros não literais todos os dias. Sou bombardeada por padrões cruéis e tiranos
que ditam como devo ser para que seja considerada "bonita".
Eles não querem que você seja você. Querem que seja apenas mais um modelo feito a partir de moldes plastificados, editados e criados para que suas vidas se tornem uma corrida insana atrás de um "toque de luz divina", capaz de mudar sua identidade e te transformar em quem quiser ser.
Papéis, telas iluminadas, banners e outdoors. Arrumo meu cabelo em um coque, como vi na revista. Combino minhas roupas e sapatos como a TV me ensinou e enfio um sorriso confiante no rosto assim como li em um blog, afinal, "mulheres confiantes são mais atraentes". Confiantes? Tive que rir. Estava me olhando no meu melhor amigo e maior inimigo.
"Espelho espelho meu". E a tortura começa.
Cada parte do corpo que me forma é analisada por ele. Estremeço, sinto o suor frio em cada membro e a angústia crescente no peito.
"Por que eu tinha que ser desse jeito?"
A culpa é pesada e a tomo em meus braços como uma mãe super-protetora, aninho-a ao meu peito que fica esmagado.
"Um toque da luz divina e tudo isso acabaria."
Estou sentada, olhando para o meu melhor amigo, ele é o único que reflete as minhas falhas e mostra quem sou sem nenhuma piedade, não murmura nem responde quando digo "estou ficando mais gorda" ou "meu cabelo está horrível". Espelhos não tentam ver o lado positivo.
Cada detalhe do meu rosto e cada traço que marca minha expressão, nada passa despercebido. Ele sabe que está me enlouquecendo e sorri oferecendo uma saída para minha angústia enquanto as vozes em minha cabeça gritam, rasgando-me por dentro elas dizem "Não".
Telas brilham. A tecnologia dita padrões que nunca vou conseguir alcançar. Mais loira, mais alta, menos peso, nariz fino, olhos claros....
"AAAAHH". Caio em lágrimas.
Puxo meus cabelos castanhos. Eu não sou o que deveria ser, meu corpo não está dentro desses padrões.
"Eu preciso tocar a luz das telas, preciso estar atrás desse brilho, preciso sentir a vida de verdade e não ser assim, incompleta e imperfeita!".
Meu amigo cria forma diante de mim, ele fala comigo.
"Você quer que seu cabelo seja como um raio de sol?". Ele me perguntou.
Assenti.
Agora sou loira e poderosa, onde passo os homens viram para me acompanhar com os olhos, olhos estes cheios de uma admiração ardente como a chama de uma lareira quente e aconchegante. Querem me ter em seus braços. Mas eles não me deixariam em paz, os padrões são altos e preciso subir mais degraus, apenas um não é o suficiente.
Precisava de apenas mais um toque, outro sabor do ímpeto divino, e então voltava ao meu amigo para que ele me mostrasse o que era necessário ser feito, qualquer coisa... Eu me perguntava: "De que lado estou?".
"Quer seu rosto esculpido sendo exibido para todo mundo? Pessoas suspirando por sua beleza celestial? Se eu te tocar você pode ser o que quiser". Ele me provocava.
"Qual o preço?". Eu quis saber.
Mas saber o preço não importava, nada importava. Estava me entregando para o outro lado, partes de mim já haviam ido embora e eu era apenas um retalho, uma colcha de retalhos formada por conceitos, padrões e mentiras. Quando seu coração não passa de um buraco vazio, o que lhe resta? Nada. Deixe o demônio dançar.
"Deixe que eu reflita o seu eu verdadeiro". Respondeu sutilmente.
Me puxou através de suas palavras e me envolveu em suas promessas enquanto as vozes na minha mente continuavam a gritar "Não".
Olhando para ele comecei a entregar minhas angustias.
"Sou apenas uma menina sem graça...".
"Sim... medíocre". Ele assentiu.
A cada frase ele rebatia.
"Meus cabelos são castanhos e ondulados".
"Eles não são lisos... Ridícula".
"Meus olhos também não são bonitos".
"Castanho é tão normal".
"Meu corpo é...".
Nem tive chance de terminar e ele me apunhalou.
"Desproporcional".
Agora dançávamos um em volta do outro, ele me dizia o que eu precisava ser e eu abandonava o que era. Qualquer coisa seria capaz de entregar para sentir um pouco do toque da beleza e da perfeição. Meu peito sufocava e perdia o ar a cada vez que via meu nariz tão maior do que deveria ser. Um choro amargo surgia e meu corpo inútil desabava no chão, abraçada em mim mesma, chorava, com pena do que via.
Em meio a esta dança me desequilibrei, já não sabia mais o que era eu e o que era ele. Era eu quem estava do outro lado do espelho? Presa, batendo minhas mãos contra o vidro. Estava quebrada, cacos espalhados no chão que refletiam a febre que começou a se alastrar do meu peito vazio até minhas pernas.
"De que lado eu estou?"
O quarto estava tão vazio, nem as luzes brilhavam mais. Devia ter ouvido quando gritavam "Não".
Quando olho pro meu antigo amigo vejo uma desconhecida. A febre consumia minhas forças, o desejo impulsivo de me tornar o que queria ser fez com que nada restara. A moça no espelho sorri, é linda como um anjo, perfeita em todos os traços e todos os detalhes.
"De que lado eu estou? Acho que não importa mais."
O quarto está vazio e vejo tudo ao contrário agora. Olhando o reflexo no espelho eu penso: "Céus, ela não possui falhas... Então por que será que ela parece morta por dentro?"
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