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História Beg me - Capítulo 3 - Multiplicai-vos


Escrita por: ectasy

Notas do Autor


* Plágio é crime.
* A história é da minha autoria e todos os poemas postados ao longo do enredo aqui também são meus.
* A história é ficcional e qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

Capítulo 3 - Capítulo 3 - Multiplicai-vos


                                                                               *

 

É com um balão, de uma dureza que se adivinha azulada e túmida de veias, vidrosa, perturbante - o ventre da mulher, não o de Sara, o daquela. Por que nome responde ela? Joaquina? Tem um hálito de animal, uma voz de louca ou de menina, rala, sem erres. As pupilas errantes e medrosas numas órbitas escuras de luxúria.. ou de fome. Vinha a sair da barraca, quando Jorge, Maria do Céu e Edmundo a interpelaram, perguntando-lhe.. onde moravam as famílias mais necessitadas. Aquilo para eles é quase um desporto, um santo desporto: sacrificam cada um dos pequenos gostos - o tabaco, um táxi, uma noite no cinema - , e, com o fruto desses «sacrifícios», vão todos os domingos a um bairro de latas entregar o pecúlio assim amealhado durante a semana, com «sacrifício». É o que conta: o «sacrifício». Porque o dinheiro, esse não lhes falta. Mas «sacrificaram-se», para «dar». «Venham comigo», dia a mulher. Que idade terá? Vinte? Trinta e cinco? A miséria extrema apaga a idade dos corpos. «Só a mim ninguém me dá nada. O pai do meu menino não qué sabê dele pa nada. Agóa não tem de comê nem de vesti.. Ao meno tem nome quistão: já pode moê..» Nem se percebe o que ela conta. « E vossemecê tem mais filhos?» «Mais dua menina. Estão com a inha mãe.»

 

Deram-lhe vinte escudos. Maria do Céu ficou contente, sob a delicadeza translúcida do semblante sempre fatigado. Edmundo dá-lhe o braço; seguem quase enlaçados: aquela dádiva irrisória, que pouco ou nada adianta, é para eles semente fugaz de felicidade.. estímulo de amor, até. «Mas afinal- pensa Jorge- todos nós estamos sós connosco. Mesmo que eu esteja com Deus e que esfole o meu coração e sofra os Seus sofrimentos e tente elevar até Ele a minha alma, que faço eu mana, pela desgraça enominável desta gente, que nem se revolta, que já nem se condói pela própria?..» Eles a santificarem-se, a penitenciarem-se, a esmolar, a aperfeiçoarem-se à custa do bairro de latas e as barracas sempre na mesma.. Menos do que um ínfimo raio de sol, do que um riso de oiro de sol, eram aquelas amarfanhadas notas, um cesto roto, no saco sem fundo daquela miséria que não ia com panos quentes. E, num momento, cai-lhe sobre as costas um capa de chumbo; o vento ulcera, não é vento: é remorso; e o céu tornou-se uma flor de nuvens, preste a rebentar; algo vai suceder, ele saberá, ele vai conhecer o seu caminho: a bomba, a espingarda, seja o que dor contra aquilo: todo o sangue, ele o dará, todo o seu sangue!.. Ou então a Cruz e as chagas do Salvados, velas e polifonias, lírios de fogo nos olhos doces da alma.

 

                                                                       *

 

- Por amor de Deus, por amor de Deus, senhor prior! Não há direito de nos deixarem assim! Nós não pedimos para vir ao mundo!

 

«Nós não pedimos para vir ao mundo.» Não, não pediram. Foi o que lhe disse também a Albertina, da mesma idade de Sara, ainda ele não era padre, ainda ele hesitava, iam casar-se Edmundo e Maria do Céu. Uma ferida em casa mão, como as de Cristo, sonhava ele. «Deus todo poderoso, ajudai-me!» E saia do jardim litúrgico dos seus arroubos, trocava as cascatas da prece, os lagos da sinopla angelical, pelas lamas da Charneca do Lumiar.

 

Defronta daquela casa que semelha um cortelho,tão baixa que ninguém lhe transpões a porta sem dobrar o espinhaço, Albertina, ramelosa, a boca trocista, os seios eretos, as unhas carranhosas em ame^ndoa- é verdade: em amêndoa- fita-o num desafio. Foi o pai que a ensinou a fazer aquilo: a pegar, às escondidas, no sexo dos homens a quem pede esmola. Jorge afasta-se, com piedade.. e fundamente perturbado. «Não foi para esses vergohas que os teus pais te criaram.» « Ora, ora!, o meu pai é que manda: assim dá mais resultado.» E, depois, aquela frase, como uma girândola de asco e de censura: «Nós não pedimos para vir ao mundo.»

 

E é que ele se afasta cabisbaixo, culpado, vencido.

 

Foi aquele dia o último. Viu tais coisas, ouviu tais brutalidades!.. O primarismo mais confrangedor, o mundo subterrânea ali exposto, claramente, sem disfarce, sobre os colchões, nos monturos, nas poças de lodo e de dejectos, a tinta do desejo, as convulções do desejo, os sapos, as mulheres nuas, as aranhas, os seios túrgidos à mostra, amamentando crianças, as pernas trigueiras, os corpos inextinguíveis, inxtripáveis dos seus sonhos.. Só lá voltou depois de padre, para baptizar os que viviam no pecado e na ignorância de Deus.

 

                                                                                     *

 

- Meus filhos, há uma solução: o sofrimento, a penitência, e o perdão de Deus. - Mas não consegue continuar. Tomás fixa-o intensamente, e os seus olhos verdes, dúbiamente verdes, são uma paisagem infinita de repulsa, de negação. Não, ele não quer aceitar um Deus que o rejeite. E ela aperta a barriga, no mesmo gesto protetor e infantil da encodeada Joaquina.

 

«Mais um catraio, Joaquina?» «Mas um, é Deu que o manda, mia menina», responde a doce lavajona. Maria do Céu põe-lhe uma tímida mão em cima do ombro. A criatura tem o nariz muito largo, a boca um pouco torta, e os pés descalços, endurentados, chapinham no chão de bosta e de palha. Aquilo, em Lisboa, ali a dois passos do Campo Grande, das casas com «chauffage», das salas de banho de mármore negro, dos andares alugados do três contos! «Não, não, não é possível: isto não pode continuar», pensa Jorge. «Há-de haver um progresso.» E, enclavinham-se-lhe os dedos no gesto de revolta, na ânsia de lutar, de se bater por aqueles todos do bairro de latas, de ir ele próprio acordá-los aos gritos, chamá-los à liça..

 

Mas ouve a voz pausada do seu confessor, como uma seda roxa e álgida: «A Deus o que é de Deus, a Cézar o que é de Cézar.» Flores vesperais, flores sonolentas, fulgores de altares, tão suaves, tão belos, tão calmos.. A infinita presença de Deus nas convulções, nas injustiças, a sua carícia na lepra e na cegueira, porque Ele tudo sabe e, se quer também o mal e a miséria.. é porque assim deve ser.

 

«Faz-te pega,, que na tua idade já eu era pega». diz a ti Rosária para a filha, sovando-a com um espanador roto. «Então é isso o que tu me trazes para casa: essa m…?»

 

As nascentes da piedade não jorram, não, para aquela gente. Ali, chupando uma pastilha elástica, ainda no alto da rampa que desce para as barracas mais escuras e tristes, diante das quais à noite se acendem fogueiras, por causa do frio, ali vai a Tonica, de doze anos, que, minutos atrás. resistiu às blandícias e aos conselhos da Maria do Céu. «A minha mãe não quer que eu namore, mas o corpo é meu.» Já tentaram levá-la, como criada, para casa de uma senhora de idade, antiga atriz de teatro. Fugiu. Colocaram-na noutro lado. Roubou. Foram buscá-la à esquadra. Nada a fazer: mente, inventa histórias fantásticas, acusa as companheiras, queixa-se de dores imaginárias, pede pelas ruas para ir ao cinema.. Maria do Céu trata-a bem, mas com certa reserva, com certa desconfiança, por ela ser assim. E que culpa tem ela de ser assim? E todos os outros, os que que dormem numa enxerga, em montão, aos quatro e cinco, os que vão para o Rossio vender canetas, relógios e preservativos, para comprarem as sardinhas de alguma patusca de domingo?..

 

Leonardo..sim, Leonardo, este mesmo, de olhos verdes. Verdes de junco e de rama.. É, dos poucos da sua idade que trabalham e ganham. Já correu Lisboa de cabo a rabo como ardina, mas caiu de um elétrico e aleijou-se. Um joelho de água paralisou-o durante meses. Ou não terá sido assim?

 

                                                                                      *



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