O corpo da vítima chegou ao Instituto de Criminalística e foi encaminhado para a sala de exames ainda dentro saco plástico preto para transporte de cadáveres.
Silencioso e sóbrio, o necrotério parecia um galpão com as venezianas fechadas. Sem nenhum letreiro ou placa indicativa.
Hyuna seguiu pelos corredores embalada pelo som de seus saltos altos, que ecoavam sobre o piso de linóleo luzente. As lâmpadas de teto fluorescentes acendendo-se uma a uma.
O local lembrava mais um escritório do Departamento de Trânsito do que um mortuário. Mas talvez essa fosse a intenção.
O escritório que Hyuna ocupava seguia a mesma linha de simplicidade, e contava apenas com o indispensável:
Os diplomas estavam pendurados nas paredes, e a escrivaninha de madeira se assemelhava a que os professores usavam nas escolas. As cadeiras eram do modelo mais comum disponível, e os arquivos eram empilhados e catalogados em uma estante alta e ampla.
Não havia nenhum objeto pessoal – o que fazia muito sentido.
As pessoas que a visitavam nunca estavam lá para uma conversa amistosa.
– E a família? – Hyuna prendeu o cabelo em um coque e vestiu o jaleco sobre as roupas cirúrgicas. Colocou as botas de lado e calçou um tênis.
– Doojoon me disse que estão a caminho. – Hyunseung a avaliou. Vê-la naqueles trajes o deixava fascinado. – Eles identificaram o filho pelas fotos da equipe forense. Você pode começar a necropsia. Caso haja necessidade, farei com que esperem um pouco mais pelo reconhecimento oficial.
– Obrigada, yeobo. Estou indo. – Hyuna sorriu e saiu em direção à sala de exames.
Hyunseung enfiou as mãos nos bolsos e mudou-se para a sala ao lado, de onde via e ouvia tudo o que a noiva estava fazendo através de uma janela de vidro temperado.
Hyuna checou a cobertura para calçados e vestiu o avental. Calçou as luvas, aproximou-se da mesa e rompeu os selos do saco plástico. Em seguida, apanhou uma câmera digital e fotografou o cadáver.
Era de suma importância observar as roupas do morto e a posição delas. Depois que fossem removidas, nenhuma evidência relativa a elas poderia ser documentada.
Como havia recolhido todas as amostras e evidências externas ainda na cena do crime, removeu o corpo do saco e o despiu com a ajuda de um auxiliar para examinar os ferimentos. Os pulsos e tornozelos ostentavam as marcas deixadas pelas cordas; causadas pela própria vítima em uma desesperada tentativa de se soltar.
Havia ainda nos pulsos marcas características de algemas. O padrão não deixava dúvidas a respeito.
A lesão pérfurocortante no tórax havia sido feita de cima para baixo, conforme indicava a cauda da lesão – mais longa e afiada no fim do osso esterno.
O corpo foi limpo pelo auxiliar. Pesado, medido e só então colocado na mesa de autópsia para a sequência do exame.
Os tipos de mesas usadas variavam de local para local. A de Hyuna era de alumínio e inclinada, com as beiradas mais altas e várias torneiras e drenos – equipamentos usados para lavar o sangue acumulado durante a investigação interna.
Hyuna colocou um protetor facial de plástico no rosto e virou o cadáver de frente cuidadosamente. Em seguida, colocou um suporte embaixo das costelas dele – nada mais que um “tijolo” de borracha para fazer com que o tórax do morto ficasse para frente, e os braços e o pescoço caídos para trás. Posição que facilitava a abertura do tórax.
Posteriormente, puxou um gravador portátil do bolso e fez uma descrição geral do corpo com todas as características que serviam para identifica-lo. Uma vez que a vítima não tinha tatuagens ou marcas de nascença, limitou-se ao restante: Etnia, sexo, cor e comprimento do cabelo, cor dos olhos e, uma vez que tinha acesso ao RG, idade exata ao invés da aproximada, além das anormalidades externas. Tirou uma amostra de sangue e coletou material para toxicologia.
Concluída a etapa, passou para o exame interno.
Começou com uma incisão larga e profunda, em forma de Y, feita de ombro a ombro, passando pelo osso esterno até o osso púbis. Soltou a pele, músculos e tecidos moles com um bisturi e puxou o retalho torácico para cima do rosto, expondo a caixa torácica e os músculos do pescoço. Fez dois cortes de cada lado da caixa torácica, dissecou os tecidos que estavam por trás com um bisturi e afastou a caixa torácica do esqueleto.
Com os órgãos expostos, não demorou a avistar o que parecia ser um saco plástico coberto de sangue, exatamente onde o coração deveria estar. Hyuna retirou o objeto estranho e depositou-o em uma bandeja. Voltou-se para o corpo novamente e fez vários cortes. Descolou a laringe, o esôfago, artérias e ligamentos. Afastou a ligação dos órgãos da medula espinhal. Afastou a ligação da bexiga e do reto e puxou o órgão inteiro para fora a fim de disseca-lo para investigação adicional.
Durante a dissecção, examinou e pesou os órgãos. Retirou amostras de tecidos e também cortou os vasos sanguíneos principais para examiná-los. Abriu o estômago, e examinou e pesou o conteúdo – o que podia ser útil para descobrir a hora da morte.
Quando terminou, transferiu o suporte das costas para detrás do pescoço do cadáver e posicionou-o como se fosse um travesseiro – tudo para facilitar a remoção do cérebro. Já sabia qual havia sido a causa mortis. Soube no momento em que colocou os olhos no corpo. Mas ainda precisava buscar outras evidências de trauma.
O processo variava dependendo do caso, e era bastante detalhado. Como perita forense, Hyuna dedicava-se a um procedimento complexo e aprofundado para se assegurar de que os indícios seriam coletados e documentados corretamente.
Assim, fez uma incisão com o bisturi, passando atrás de uma orelha e através da testa até chegar à outra orelha antes de dar a volta. Dividiu a incisão e afastou o couro cabeludo do crânio em dois retalhos. O corte da frente ficou sobre a face do morto, e o de trás sobre a parte de trás do pescoço.
Hyuna cortou o crânio com uma serra elétrica para ossos para criar uma “tampa” que podia ser levantada e expôs o cérebro. A dura-máter (membrana de tecido mole que cobre o cérebro) permaneceu presa à base da tampa craniana, e ela cortou a conexão do cérebro com a medula espinhal e o cerebelo. Depois, retirou o cerebelo do crânio para ser examinado.
Baseado em uma questão de praticidade, nada voltava para o lugar. Então, ao terminar o exame, “jogou” os órgãos de volta no abdômen e tórax – Incluindo o cérebro, que devido a consistência mole, não podia ser recolocado na cabeça, ou escorreria pela fenda aberta no crânio. – Fechou e costurou os retalhos do tórax e recolocou a tampa do crânio, mantendo-a no lugar pela aproximação e costura do couro cabeludo.
– Limpe tudo. – Hyuna olhou para o auxiliar. Jogou fora a máscara, o avental, as luvas e o propé. Vestiu o jaleco novamente, deixou a sala e concluiu a papelada.
Em seguida, acompanhou a família da vítima para que fizessem o reconhecimento oficial do corpo.
Quando finalmente voltou para o escritório e recostou-se no noivo, percebeu que mais de cinco horas haviam se passado. Eram quase oito e vinte da noite.
– Belo jeito de aproveitar um sábado, você não acha? – Hyunseung passou o braço pelos ombros dela, puxou-a para mais perto e beijou-a no topo da cabeça. Sabia que estava exausta.
– Maravilhoso. Sinceramente, eu não poderia imaginar nada melhor. Eu não queria mesmo um final de semana relaxante...
Hyunseung sorriu e selou os lábios dela.
– Você trabalhou duro. Daqui a pouco vamos para casa.
– Oh, aí estão vocês. – Doojoon apareceu na porta e então aproximou-se deles. Havia conduzido a família da vítima ao estacionamento.
– Tudo bem, oppa? – Hyuna perguntou diante do semblante carregado do amigo.
– Tudo, é só a velha história de sempre. Eles estão estarrecidos, arrasados e com sede de justiça. Mostrar o corpo aos familiares é a pior parte da nossa função, eu acho – ele balançou a cabeça. – Pode me fazer um resumo do seu laudo? Você comentou que não seria bom falar nada na frente da família hoje. Porque o cuidado?
Hyuna passou uma perna sobre a outra e apoiou seu peso contra o peito de Hyunseung.
– Apenas julguei que não seria o momento adequado para informa-los de que o filho teve o peito aberto com uma faca e o coração arrancado da caixa torácica ainda vivo.
Doojoon emudeceu com o choque. Abriu e fechou a boca duas vezes, mas nenhum som saiu.
– Que? – balbuciou.
– A vítima estava no segundo estágio de hipotermia. Ou seja, ainda consciente, embora provavelmente confuso. Na concepção dele, tudo aconteceu de uma hora para outra. O osso do esterno foi praticamente destruído para que o assassino tivesse acesso ao coração. Os órgãos estavam pálidos, o que indica a hemorragia que, diga-se de passagem, já dava sinais óbvios desde que o encontramos. Veias importantes foram rompidas de um modo que só seria possível se o assassino tivesse agarrado o órgão e o puxado para fora. E foi o que ele fez. Essa foi a causa mortis.
– Ele ficou com o coração...? – Doojoon coibiu uma careta de asco.
– Sim, e deixou isso no lugar – Hyuna enfiou a mão no bolso do jaleco e puxou um pendrive. – Estava envolto em um saco plástico.
– E o conteúdo?
– Não vimos ainda. Não tivemos tempo. – respondeu Hyunseung.
Doojoon levantou os olhos para o teto e soltou um suspiro.
– Com certeza não é nada muito grande...
Hyuna afastou-se do noivo e apontou para o notebook em cima da mesa.
– Peguem e saiam. Vocês podem usa-lo. Eu vou me trocar para irmos.
Doojoon sorriu, apanhou o notebook e saiu para o corredor. Hyunseung o seguiu e encostou-se à parede.
– Eu seguro, você coloca o pendrive. – Doojoon apoiou o notebook sobre o antebraço e segurou a tela a fim de promover estabilidade.
– Vamos lá... – Hyunseung plugou o dispositivo na entrada USB e esperou que o sistema operacional o reconhecesse.
De repente, a tela ficou preta.
Hyunseung franziu a testa, e estava prestes a levar as mãos ao teclado quando uma imagem apareceu na tela. Ele ficou paralisado e imediatamente sentiu o sangue correr frio nas veias.
Era Hyuna.
Os cabelos estavam soltos, e a expressão em seu rosto, séria. Usava óculos escuros, calças pretas e uma camisa branca. Hyunseung lembrava-se daquele dia. O dia da necropsia de Lee Min Young – a qual também havia assistido.
Hyuna caminhava em meio a uma movimentada calçada, e o fundo consistia em cidadãos comuns.
Hyunseung encarou a foto buscando em suas memórias qualquer sinal de aproximação ou movimentação suspeita na ocasião.
Nada. E então aconteceu.
Hyuna começou a derreter. A desfazer-se diante de seus olhos.
Os fios de cabelo deslizaram e se misturaram à pele, a testa caiu, o nariz se dissolveu, os óculos caíram e os olhos se reviraram e fecharam. Sangue começou a escorrer das órbitas, tingindo o rosto de vermelho.
Hyunseung sentiu todo seu corpo tremer e quase gritou.
O sangue cobriu toda a imagem e, por um momento, ele teve a impressão de que vazaria da tela. Logo, o som de uma gargalhada saiu pelos alto-falantes. Uma gargalhada cruel, e ao mesmo tempo feliz. A gargalhada de um psicopata.
Depois, tão abruptamente quanto começou, a tela ficou preta outra vez e a gargalhada cessou.
O protetor de tela do Windows 8 reapareceu.
Hyunseung sentiu tamanho ímpeto de ódio que quase pegou o notebook das mãos de Doojoon e o jogou no chão.
– Isso é impossível! – gritou, não sabia o que fazer. Com pouco, deslizou para o chão completamente sem ar. Como se estivesse afundando e não conseguisse nadar de volta à superfície.
Que merda havia sido aquela?
Seu coração batia contra as costelas como se quisesse explodir. Podia senti-lo mesmo na garganta.
Atônito, esticou as pernas e segurou a cabeça com as mãos trêmulas.
– Hyunseung, que diabos está errado?! – Doojoon colocou o notebook no chão e o segurou pelos ombros.
– Hyuna... Hyuna é o próximo alvo... – ele explicou rapidamente o que havia visto.
Doojoon sentiu o estômago se contrair e apertou os ombros do amigo. Mesmo confuso, estava convicto de que tudo não passava de uma ameaça vazia e sem sentido.
O mundo explodiria antes que Hyunseung desse ao psicopata uma brecha para um sequestro.
– Calma. Sua voz está horrível. Ele não vai pegá-la. Não há a mínima possibilidade de que você deixe que aconteça. Ele só está tentando mexer com a sua cabeça. Não caia no jogo dele.
Hyunseung respirou fundo, passou as mãos pelo rosto e levantou-se. Doojoon estava com a razão. O assassino o havia assustado momentaneamente, mas só. Nada mais. E a audácia custaria caro.
Quando a noiva saiu para o corredor e perguntou sobre o conteúdo do pendrive, não escondeu a verdade dela – que inicialmente empalideceu, mas logo evoluiu do choque para a raiva.
– É muita coragem a dele! – Hyuna soltou uma risada de escárnio e cerrou os punhos. – Então aquele desgraçado tentou me usar como uma peça? Porque se foi esse o motivo de tanto empenho e dedicação ficarei exultante quando ele descobrir que falhou. Eu não caio nessa. Ah... – ela colocou as mãos na cintura e soprou a franja para cima em um gesto de óbvia frustração. – Eu vou mata-lo! Mesmo que eu o mate, Deus me dará seu perdão.
Quanta petulância. Petulância suficiente para que se acabasse rindo. Não sentia uma gota de medo, mas não havia um limite para a sua irritação. Queria gritar de ódio.
Olhando para o corpo rígido e o cenho franzido, Hyunseung e Doojoon foram incapazes de conter um sorriso.
– Yeobo – Hyunseung pegou a mão da noiva e a beijou no rosto. –, vamos para casa. Nosso trabalho aqui está feito.
Hyuna o encarou pelos dez segundos que se sucederam, respirou fundo e acalmou-se. Nada aconteceria. O maldito imbecil não valia uma enxaqueca.
– Vamos – ela sorriu, selou os lábios dele e o abraçou pela cintura. – Merecemos mesmo isso.
Doojoon riu pelo nariz e balançou levemente a cabeça enquanto se encaminhavam à saída.
Típico. Os dois eram sempre assim.
No estacionamento, despediu-se e os avisou de que o pendrive seria enviado à um dos técnicos da delegacia. E com a promessa de que ligaria caso uma nova pista aparecesse, também seguiu seu caminho. Não havia pecado em esperar pelo resultado das analises em casa. Haviam feito tudo o que podiam.
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