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História ...but every apple has its own seeds - Amaldiçoado


Escrita por: likeamoth

Notas do Autor


Eu desavergonhadamente inseri cada headcanon meu que pude nessa série.

[aviso de gatilho para uma tentativa de suicídio. Talvez haja mais gatilhos, inclusive nas citações de Byron que usei. Mas não sei como classificar qualquer outro, esse é o óbvio… uh, crescer com um pai bem bosta também. Ele chega a atacar fisicamente, e agressão verbal era uma constante. É isso que consigo lembrar de imediato]

Capítulo 1 - Amaldiçoado


Ano 1 (1990):


 

Lado bom de finalmente ir a Hogwarts, Edward pensava: menos dias ao ano próximo do próprio pai. Finalmente aprenderia magia de verdade. Contato com criaturas e plantas mágicas estava mais próximo de se tornar realidade. Muitas comidas diferentes para experimentar. O seu gato era bastante único, pois era o único de três patas e seis dedos em Hogwarts inteira.

Lado ruim de finalmente ir a Hogwarts: as pessoas constantemente o lembravam do quanto ele estava respondendo a zero expectativas de seu clã, nem ao menos na casa em que caiu. Seus irmãos ainda não estavam em Hogwarts. Se sentia esquisito no uniforme mesmo que a roupa de casa não fosse tão diferente. Frederick não engoliu a escolha por um gato já adulto de três patas e seis dedos até agora.

Mas a princípio tudo parecia muito bem, bem até demais.


 

♦️


 

Enquanto isso, no outro lado do país, uma Rachel de dezessete anos, batom e esmalte pretos, cabelos pintados, coturnos de plataforma e delineador exagerado tentava explicar pela sexta vez a um bully a diferença entre um pentagrama de ponta para cima, um pentagrama de ponta para baixo e uma estrela de Davi. Após desistir, ser ofendida pela terceira vez e quase ter seu Guardians of the Galaxy #1 roubado, deu um soco no sujeito.

Em três anos de krav magá ela nunca se denunciou como uma moça com tal capacidade – era bastante pacífica em sua natureza e gostava de passar a ilusão de que por trás da estética misteriosa e sinistra só havia doçura, afagos, sorrisos e cupcakes deliciosos. Isso, no entanto, a tirou do sério por completo.

Suspensa por um dia e na geladeira do jornal escolar por duas semanas. Não é o melhor modo de se chegar a uma cidade nova, mas pelo menos Devora estava em Londres (e nunca saberia de nada disso) e agora os góticos de Cardiff tinham uma ótima impressão dela mesmo com zero piercings de verdade na cara.


 

Ano 2 (1991):


 

Até ali Edward sequer sabia que o tal garoto Potter estava vivo, e ele não sabia se isso era porque as altas rodas sangue-puros evitavam falar muito no assunto Potter ou se era porque ele vivia no mundo da Lua mesmo.

O que sabia dele até aqui: tinha uma cicatriz engraçada, andava com os ruivos pobretões, caiu na Grifinória e ganhou o ódio do rapaz Malfoy e de Snape.

O que viria a saber até o fim do ano letivo: Harry não vai para casa no Natal, ele tem uma amiga nascida trouxa e Hagrid tinha arrumado um dragão. Essa última coisa Edward precisava ver pessoalmente antes que o tirassem dali. Sempre quis ver um dragão de perto e não perderia uma chance dessas.


 

♦️


 

A fase gótica sobreviveu ao famigerado Sequestro em Londres e posterior mudança de endereço, como demonstrado anteriormente, mas não ao fim do ensino médio. Antes de partir de volta a Londres (muito pro desgosto dos pais, mas as faculdades de jornalismo mais bem cotadas ficavam lá e ao menos a avó estaria de olho nela) já havia aposentado o spike de pescoço – mas seu cabelo continuava preto, e continuaria assim por um período indefinido. Seu raciocínio era que isso a distanciava um pouco da Rachel de quinze anos que passou duas horas presa num carro com familiares maternos que tinham consigo uma calculadora de contabilidade, uma arma carregada e uma série de concepções borderline antissemitas a seu respeito – aquela Rachel já estava em uma fase gótica mas ainda era ruiva.

Receber a confirmação da University of London a deixou mais feliz até que de fato se formar nela, ela diria anos depois, mas após a euforia toda a desgraça da mudança estava para ser feita. De fato a coleção de quadrinhos, a estante de literatura russa e seus vários LPs não poderiam ir com ela, mas cassetes ainda eram uma possibilidade e a tecnologia só tendia a avançar mais.

E agora que a mãe era juíza, dinheiro não era um problema também. Se Rachel mantivesse as notas em um bom patamar certamente a convenceria a lhe dar uma câmera melhor.


 

Ano 3 (1992):


 

Spoilers do ano letivo anterior: Edward conseguiu ver o dragão de perto e, mesmo sendo verdade que ele sempre se atraiu por criaturas mágicas, foi ali que decidiu se tornar magizoologista.

Mais spoilers do ano letivo anterior: boatos de que Quirrell era braço direito de Você-Sabe-Quem surgem e, por incrível que pareça, parecem bastante verossímeis. Dumbledore ficou louco do cu, olhou pro sistema de pontos e disse "foda-se as regras"… não com essas palavras, okay, mas dar vitória para Grifinória ao invés da Sonserina quando Harry Potter descumpriu cada regra que achou no caminho era o mesmo que fazer isso.

Tão logo voltou para casa em Londres, Edward levou a maior surra que seu pai já havia lhe dado porque a sua bisavó materna decidiu que Edward vai levar ambas as suas famílias pro buraco e desgraça enquanto ele esteve fora. Ela ainda não pintou um quadro demonstrando como, mas quem sabe antes de morrer ela não lhe faz esse favor? Todo mundo só lembra que ela está mais do que gagá quando a previsão dela vai contra o senso comum, afinal, e a ideia de Edward ser uma decepção já era popular em alguns círculos.

Mas isso não diz nada sobre seu terceiro ano letivo, certo?

Em primeiro lugar… Harry Potter chegou a Hogwarts num carro voador e Edward nunca, jamais, vai entender o contexto dessa história. Até porque só entenderá em uns cinco anos como um carro trouxa funciona de verdade e, com decepção, descobrirá que eles não deveriam voar.

Gilderoy Lockhart substitui Quirrell, e metade de Hogwarts tinha uma queda por ele. Nas primeiras duas aulas ele legitimamente tinha uma queda por Lockhart também, mas ao perceber que ele era mais fama que feitos… perdeu o interesse por completo. Agradeceu a si mesmo por isso, por achar que aí acabaria sua carreira de quedas por caras charmosos, em especial após descobrir que seu bicho-papão era basicamente o próprio pai… apenas para descobrir que era apenas o começo meses depois.

As brigas entre Malfoy e o trio de grifinórios mais popular de todos os tempos meio que se tornaram um símbolo da rivalidade das suas respectivas casas e nessas horas ele ficava bastante orgulhoso de ser um lufano, já que os lufanos nunca se metem nessas merdas. Não que todos os lufanos fossem gente fina… longe disso, algumas das pessoas mais venenosas de Hogwarts eram de sua casa e ninguém desconfiava, mas o veneno lufano era muito mais sutil. O pico desse orgulho – que era mais um alívio por não ser qualquer outra coisa que um orgulho propriamente dito – veio depois da ameaça escrita na parede durante a festa dos fantasmas.

De algum modo, ele nunca se sentiu tão diferente dos demais sangue-puros quanto ao ver Draco feliz com a tal ameaça, e o modo como seus irmãos não concordavam com Malfoy mas não se demonstravam tão indignados com isso quanto de fato estavam também só fazia ele se sentir mais… firme nesse sentimento.

Pelo menos o boato de que Harry era o herdeiro de Salazar fez seus irmãos tenderem mais pro lado de Potter. E a ideia de que havia um Basilisco em Hogwarts esses anos todos e ninguém pareceu notar até o trio de sempre decidir cutucá-lo com uma vara curta só fez Edward se encantar por criaturas ainda mais.


 


 

A faculdade era mais estressante do que o imaginado, mas ela era um vaso ruim. Difícil de quebrar, apesar da fobia social e o trauma persistente do famigerado Sequestro em Londres serem complicadores na sua vida.

(“é só evitar passar na frente da JCoSS para todo o sempre”, ela se dizia sempre que pensava sobre o assunto)

Rachel ambicionava o jornalismo desde os catorze anos, quando percebeu que sua habilidade para dar notícias era muito maior que a de fazer takes cinematográficos… mesmo para uma adolescente. Sempre ouviu que seu maior talento era dar relatos e contar histórias e, modéstia a parte, sabia que era verdade. Só que até ali, ela não tinha nenhuma ideia do que queria nesse sentido, apesar de às vezes rir de nervoso e brincar que se tudo desse errado poderia se tornar fotógrafa e ser picada por uma aranha radioativa.

(ou, considerando área de interesse do pai, uma abelha ou vespa radioativa)

Um dia, no entanto, enquanto lia a respeito de Erika Mann e Margaret Bourke-White num livro sobre jornalismo na Segunda Guerra, se perguntou: por que não isso? Por que não a trincheira? Guerras existem desde o início dos tempos, guerras existirão provavelmente pelos próximos séculos e milênios – uma pessoa de alma pacífica e empática poderia ser útil nos campos. Se duas judias conseguiram cobrir a Segunda Guerra, uma judia dos anos 2000 poderá cobrir o que bem entender, pensou, e definiu que assim seria. Adorou a ideia e se perguntou por que não pensou nisso antes. Devora, no entanto, detestou e declarou que não subornou três chefes de fronteira e dois agentes de viagem com dois bebês gêmeos e sem marido no meio da guerra para neta se enfiar entre soldados mais de cinquenta anos depois. Assim, por alguns meses, Rachel se perguntou se noticiava a escolha de profissão ao restante da família ou não.

Ensaiou o comunicado aos pais por um longo tempo, e o deu em algum momento próximo do acender da terceira vela do Hanukkah. Não foi bem recebido – eles decididamente preferiam que ela tivesse escolhido algo mais calmo, positivo e com menos chance de traumas, tipo fotografia da natureza, mas não se pode ter tudo na vida. O que não impediu que seu pai lhe fizesse prometer uma coisa relativa a isso antes da filha voltar a Londres.

No ano anterior a União Soviética havia oficialmente se extinguido, e a Ucrânia começava a se tornar um país independente de novo. O grosso dos problemas políticos do país se mostraria em umas duas décadas, mas só para garantir, Borys disse que ela poderia ir pro lugar que bem entendesse a trabalho no futuro e teria apenas sua bênção (ainda que figurada) e os melhores desejos de sucesso… exceto a Ucrânia.

Quando questionado do porquê – ele saiu de lá com menos de seis meses, não tem como ele ter maus sentimentos com relação ao lugar em si, poxa – ele disse que ficaria tentado a pedir por uma busca por parentes próximos, mesmo sabendo por experiência própria que essa busca o deixou péssimo quando ele próprio o fez em suas visitas aos Estados Unidos e a Israel (sempre a trabalho), e que pedir continuidade na busca à irmã quando ela foi à Rússia visitar a família estendida do esposo só o fez se sentir pior. Só faltava a Ucrânia. Ele não gostaria de cometer o mesmo erro novamente às custas da filha.

(isso e tinha outros mil e quinhentos motivos que poderiam facilmente ser resumidos em “eles nos odeiam até hoje, estude História, minha filha”)

Não parecia algo tão difícil de ser cumprido, as guerras do momento se concentravam em países da Ásia Central e na Bósnia. Quem adivinharia que a Crimeia entraria em guerra anos depois?


 

Ano 4 (1993):


 

Sua mãe Elizabeth passou os dias finais de suas férias correndo de um lado e pro outro e no mais completo pânico – Sirius Black fugiu, e como uma auror gente fugindo de Azkaban meio que arruína o dia dela. Se isso acontecesse com mais frequência, seria até menos catastrófico, mas como nunca aconteceu está todo mundo agindo como se fosse o apocalipse.

Mas isso gera mais consequências para ele que apenas caos político. Uma Elizabeth atolada de trabalho é uma Elizabeth que passa menos tempo em casa, e uma Elizabeth que passa menos tempo em casa é uma Elizabeth que pouco pode fazer para defendê-lo do pai abusivo. Assim, a volta às aulas é praticamente um presente dos céus… ou ao menos é assim que ele pensou até o trem parar e Edward começar a sentir como se nada na vida fizesse sentido e que seria uma ótima ideia morrer antes dos quinze anos.

Edward sempre foi meio dramático e tendente ao ultrarromantismo, verdade, e alguém até poderia argumentar que possivelmente ele viveu sua vida toda na corda bamba da depressão crônica – os cigarros furtivos da adolescência e os terrores noturnos poderiam ser lidos como complicadores e como exemplos disso. Mas o sentimento dessa vez se justificava: havia um dementador no trem.

Lockhart havia sido internado por aparente insanidade e Edward não pode dizer que nunca ouviu falar de destinos assim antes – seus genes são meio amaldiçoados nesse quesito e a sua bisavó clarividente (que, novamente, só era levada a sério quando falava no meio da hora do chá que Edward iria desonrar os nomes que representa sem nunca demonstrar como ou os meios de evitar tal destino) não seria a primeira nem a última nos seus círculos originários a ter passagens pela ala psiquiátrica do St. Mungus. Edward tinha os mais sinceros desejos de melhoras a ele, com ou sem crush, porque uma vida na camisa de força não era vida. O substituto dele não tinha seu charme, mas Edward já havia ouvido os boatos a respeito de Lupin.

Não os relativos à licantropia dele, note, mas alguns meio maldosos relativos a relacionamentos dúbios dele na juventude. Edward não sabia se simpatizava mais com ele por tais rumores ou se sentia intimidado com isso e com o quão perto de casa isso batia. Não importava. Tantas conversas sobre dementadores traziam a questão patrono à mesa e a preocupação de que não saberia o que pensar quando lhe fosse ensinado a fazer um no ano seguinte.

Havia poucas lembranças doces em seu coração. Mas se Harry que era órfão, perseguido, fodido na vida e um ano mais novo que ele conseguia produzir um patrono, era questão de honra dar um jeito de corrigir essa desigualdade. A princípio, achou que usaria suas boas lembranças relacionadas aos irmãos e às mulheres da família (quando não estava lhe agourando, sua bisavó era muito gentil e gostava de lhe desenhar), mas logo um pensamento positivo menos agridoce surgiu.

Edward se apaixonou. Não uma paixonite de aluno e professor, nem amor verdadeiro que resiste a décadas. Paixão adolescente padrão, como todo menino de quatorze para quinze anos tem, só que… não era uma menina, como a maioria dos outros meninos de quatorze para quinze anos preferem.

Não poderia dizer que não havia sido avisado antes.

Estava se tornando um padrão um pouco perigoso, e se isso chegasse aos ouvidos de Frederick ele era um rapaz morto (literalmente, talvez). Mas isso não o impediu de expor tais sentimentos ao alvo de sua afeição e descobrir ser correspondido. Passaram vários meses juntos, e era um romance tão inocente quanto o normal pros que normalmente ocorrem por essa idade, mesmo que sustentado por fugas e esconderijos.

Edward passou o ano se fiando à figura de Lupin, pensando que verdadeiros ou não os boatos de diversas naturezas não afetaram seu sucesso profissional… até que afetaram. E foi ao saber que afetaram – se um licantropo em tratamento incomoda tanto assim, imagine um sangue-puro viado de família tradicional – que Edward meio que estragou a sua melhor memória até ali tentando esquecer que ela um dia foi real.

Por alguns anos a imagem agradável que usava para conjurar patronos foi o vulto de Bicuço voando pelos ares, que estranhamente parecia ter alguém em suas costas do ângulo em que o avistou – que viu enquanto se escondia com seu logo ex numa das torres. Parece aleatório e até contraditório quando você ouve de primeira a respeito, mas o hipogrifo havia acabado de adquirir aquilo que ele sempre ansiou – liberdade – e Edward se sentia verdadeiramente feliz por ele (não sem alguma inveja).


 


 

Desde que fez dezesseis anos, Rachel nunca ficou mais de seis meses solteira, mas no seu segundo ano de faculdade a coisa ficou particularmente séria.

Havia esse rapaz. Vamos chamá-lo de 'Aaron'. O primeiro contato se deu na sua turma de Estudo de Campo e ela desde o início não o via como amigo em potencial, mas como algo completamente diferente disso. Dois ou três trabalhos juntos e uma festa depois, o desejo se tornou realidade e assim passaram a fazer tudo juntos.

Devora gostava de Aaron. Não gostava do fato de ele passar mais tempo próximo de Rachel do que ela foi ensinada a ficar perto de homens em sua juventude ou do fato de que às vezes Devora ligava pro dormitório da neta e, por algum motivo misterioso, ela não estava por lá às dez e meia da noite de uma quarta feira. Mas gostava de Aaron. Ele era gentil e respeitoso, com ou sem liberdades excessivas. E era uma chance de ao menos alguém nesse ramo familiar ter um lar completamente judeu, o que era um bônus.

Os pais de Aaron gostavam de Rachel, assim como os parentes mais velhos da família dele. Ela tinha personalidade doce, tinha bons modos e sempre vinha com sobremesas quando visitava. Alguns diriam que seu senso estético era meio simplesinho para quem alegava ser filha de juíza e que ela poderia se arrumar um pouco mais, mas não tinham razões socioeconômicas para cobrar isso dela e eram os anos 90 – por mais simples que ela fosse, poderia ser pior, ela poderia ter escolhas menos femininas que aquelas ou ter aderido ao grunge tão logo a fase gótica se acabou. Era amável com as crianças da família e sabia contar histórias como poucas... sim, eles gostavam de Rachel e por eles no sexto mês de relacionamento eles já teriam casado. Só para garantir que ela não escaparia.

Não havia como saber o que os pais de Rachel achavam de Aaron ainda, pois eles só entrarão em contato com ele muito tempo depois do oposto ocorrer. Mas ela não escaparia. Definitivamente era o cara mais bonito dos dormitórios próximos.


 

Ano 5 (1994):


 

O acampamento bruxo era sempre uma experiência e tanto.

Como sangue-puro e branco, Edward cresceu numa mentalidade meio tacanha. Sua família e as demais próximas tendiam a se ver como superiores até mesmo a outras famílias sangue-puro com menos dinheiro ou de origens diferentes. O intercambista Kam, por exemplo. Sendo de Hong Kong e pouco relacionado às famílias puro-sangue do Reino Unido (com exceção do ramo inglês de seu clã), ele tinha um status ambíguo, era meio esquisito e não estava na categoria intocável que as famílias de Edward – por parte de pai e a por parte de mãe – estavam, mas... ao mesmo tempo de fato se considerava superior até aos mestiços de famílias brancas. Preconceitos específicos a bruxos eram mais forte que os preconceitos coincidentes nos dois mundos, pelo que parece. Apesar de seu clã ser conhecido por seu caráter negociante que os forçava a interagir com toda sorte de pessoas, este sonserino em particular - avesso a varinhas e um tantinho arrogante - sequer tocava em mestiços e pessoas de vida trouxa. Alegava que “a energia dessa gente era ruim como o seu sangue”, ele.

Mas independente de como bruxos estrangeiros eram tratados na maior parte do tempo, independente de status sanguíneo, era ano de copa mundial de Quadribol e isso sempre era um sopro de ar fresco na sociedade bruxa. Tudo parecia que ia acabar muito bem, a Irlanda venceu, estava tudo quase que em casa e até os perdedores estavam felizes neste lindo clima de confraternização.

Só que não.

Um bando de comensais da morte decide surgir do nada e torturar nascidos trouxas e seus parentes. Edward se horrorizou com tudo, seus irmãos pareciam ligeiramente mexidos também, Elizabeth foi pro fronte enfrentá-los e tentar minimizar danos, mas Frederick parecia… quase satisfeito? Ele abominava as fronteiras cada vez mais borradas entre o mundo trouxa e o mundo bruxo tanto assim?

A cada ano que passava Edward o desprezava mais e, vindo sua bisavó clarividente a falecer no correr do ano letivo ou não, ele nem precisava de Visão para prever que eventualmente ia se encher dele e que quando isso acontecesse seria feio para ambas as partes. Na melhor das hipóteses Edward ganharia um tapa na cara, na pior um dos dois morreria.

Ao voltar para Hogwarts foi confrontado com o Torneio Tribruxo também, e embora não pudesse competir (nem se fosse cara de pau que nem Harry Potter, que fez exatamente como Dumbledore vinha fazendo em todos os anos até aqui e disse para si “fodam-se as regras” – Edward não era esse tipo, ao menos não ainda, e por isso era lufano), isso tornava as coisas diferentes também. Talvez por só levar em conta as histórias europeias, talvez por empolgação com a retomada de uma tradição. Havia um lado ruim nesse retorno, no entanto, porque ele adiava um plano que Edward havia feito para si no caminho de volta para casa pro verão passado.

Quadribol.

Edward começaria a jogar quadribol. A motivação era deixar seu casulo de pessoa pouco relacionada e sem muito jeito para relacionamentos interpessoais e contatos de interesse, também, porque até aqui ele estava se criando um verdadeiro clone puro-sangue de Hagrid em termos de preferências de companhias. Ao menos inicialmente, quer dizer, porque quando confrontado com a ideia de que não ia poder jogar quadribol neste ano o motivo para decepção se tornou outro: Cedric Digory.

Cedric era lufano, e era seu biveterano – óbvio que o conhecia. Mas nunca havia reparado de verdade nele até Cedric se tornar meio que o centro das atenções aquele ano. E nunca havia reparado que havia reparado nele até ficar irracionalmente irritado com o fato de a colega Cho ter conseguido levar ele ao baile.

Alguém poderia alegar que havia coisas mais importantes para ocupar a cabeça de Edward, tipo o professor esquisito de Defesa Contra as Artes das Trevas ou o debate em torno da polêmica ‘elfos merecem respeito ou não?’ ou seus iminentes NOMs. Ainda assim, na maior parte do ano foi mais ou menos isso que o incomodou: sua obsessão por Cedric, o fato de tanto Cedric quanto ele próprio parecerem praticamente imunes à influência da moça Fleur (que deixava os outros garotos babando – seus sentimentos por ela eram dúbios, a apreciava esteticamente mais que às outras moças mas não se sentia compelido a tê-la de um jeito físico) e do quanto invejava os dois com a coisa dos dragões.

Edward foi bastante bem nos NOMs, principalmente nos de Herbologia, Trato com as Criaturas Mágicas e Poções. Mas não houve tempo para festa porque Cedric morreu e Edward, por consequência, nunca o veria nos vestiários antes do jogo para confirmar se ele era tudo o que parecia mesmo.


 


 

Seria o seu último ano letivo e pelo menos de início tudo ia bastante bem.

Dissemos que a opinião de Devora a respeito de Aaron era positiva e a opinião da família de Aaron a respeito de Rachel ainda mais positiva. Sim, dissemos. E poderíamos dizer que todos tinham ótimas opiniões uns dos outros se não fosse por uma figura bastante relevante nessa história: Sarah Berkovich.

Sarah não gostava de Aaron. No início não tinha reais razões para isso e era movida apenas por ciúmes maternos meio mal localizados (onde já se viu uma mãe pouco presente ser ciumenta?), mas aos poucos começou a captar cada defeito que o rapaz tinha e ninguém mais percebia.

A maioria não era muito grave. Um tom de voz meio dominante demais, característica que lhe incomodava quando presente em um homem. Não era rico, mas era meio bem arrumadinho demais para alguém que nem 25 anos tem e não trabalha na área de direito ou administração. Tinha uma tendência a falar do que não sabia e opinar até no que não tinha que opinar, o que a deixava furiosíssima e a fazia se engajar em discursos inflamados e rabugentos (Rachel dizia que era mal de jornalista, mas isso não deixava a mãe mais de boa). E quando ela começava a achar que a pior parte da história era ele votar Conservador, percebeu algo ainda mais sinistro.

Rachel claramente estava mais na dele que o oposto.

Sarah nunca disse que era isso que a incomodava – Rachel já não costumava levar as intervenções maternas como algo positivo e que acrescentava à sua vida, agora que ela estava aprendendo a atirar, então? Vai saber se ela não decide desrespeitar dois mandamentos numa bala só. Mas a dissimulação dos tribunais não servia nesses casos – fingir simpatia pelas pessoas sem ser muito bem paga para isso é algo que ela não faz desde que deixou a Irlanda. Lhe dá azia, ela se justificaria.

Então quando o fim eventualmente chegou, dois meses antes de sua formatura, ele só trouxe mais mágoas à relação das duas. É um milagre isso não ter atrapalhado o fim de seu curso, para lhe ser bem honesto. Mas se o tivesse, ela se odiaria por isso anos depois.


 

Ano 6 (1995):


 

Ao chegar pro verão, descobriria algo curioso que não saberia interpretar até uma previsão a respeito do assunto não mais ser necessária: sua bisavó Cassiopeia tinha produzido duas últimas obras antes de morrer.

Eram pinturas que pareciam um brocado em maleabilidade – podiam ser enroladas e guardadas com zelo sem serem expostas – mas não haviam sido bordadas, era pintura mesmo, com pouco uso de outras habilidades manuais. Brocados puros são uma especialidade de sua família paterna, e Cassiopeia era avó de sua mãe.

(tinha os brocados dos Kam também, mas dos Kam não se falava sob aquele teto)

O primeiro retrata uma figura ruiva e um rapaz loiro, num deserto – ela com roupas trouxas acrescidas de um colete que não era propriamente uma roupa e ele em vestes bruxas apropriadas ao local geográfico retratado. Não há feições detalhadas do rosto dele, não é possível saber quem ele é, e Edward não sabe quem ela é – a considera bonita, de um modo que ele quase estranha pois não havia nada de especial nela e outras mulheres muito mais estonteantes não lhe haviam chamado atenção até aqui... mas isso não importa e mesmo se importasse poderia estar errado já que ele havia provado ter mais habilidade de avaliar homens – mas é bem óbvio que o homem parece estar ajudando a mulher. Levando o movimento da pintura em conta só fica mais óbvio.

A segunda retrata um rapaz que está de costas, mas tem a mesma cor de cabelo do rapaz da primeira pintura, e uma mulher de branco que pode ou não ser a moça da primeira pintura. Há um senhor de barba diante dos dois, com um cálice em mãos, e uma mulher que parecia bruxa mas não lhe passava total certeza disso. Edward pode contar nos dedos os judeus que conhece, não é exatamente próximo de nenhum e metade deles são de duas, três famílias em particular – eles terão sua vida bastante dificultada com a proibição da livre associação em Hogwarts, sim, mas o Edward de 16 anos não liga porque não tem nada a ver com isso e não é confrontado com motivos para ligar. Logo não é muita surpresa o fato de ele não reconhecer o ato retratado na tela como um casamento birreligioso em que 80% do ritual é puramente judaico. Não dá para confirmar, mas a impressão é de que todos os que parecem convidados saíram do mesmo lado do casal.

Tais quadros lhe deixarão intrigado ao extremo pelos próximos anos, e convenientemente terão sua existência ignorada quando o contexto do primeiro quadro estiver acontecendo com ele. Mas enquanto não acontecia, conste-se que o trabalho de Elizabeth ficava mais complexo a cada dia e metade disso era culpa de Potter. A tendência é que a coisa só piore dali para frente.

Alguém finalmente fez algo quanto ao hábito de Dumbledore de dizer “foda-se as regras” pelo menos uma vez a cada seis meses, mas o que poderia ser ótimo se revela algo terrível. Aulas práticas não eram uma coisa durante o reinado de Umbridge, e liberdades individuais muito menos. Não se sentiu tão pessoalmente atacado por isso até o time de quadribol ser ameaçado meses depois de sua entrada. Por um período difícil de se expor numericamente ele se perguntou se era prudente ele se juntar à armada – não porque poderia maldizer o nome da família no processo, ele sempre se preocupou com isso menos do que deveria e ouvir desde que nasceu umas cinco frases diferentes alegando que esse seria seu destino de qualquer jeito não ajudava. Mas ele tinha consciência de que os outros alunos o entenderiam como uma ameaça, já que até suas transações comerciais ilegais eram lidas com suspeita… então só uma coisa o motivou o bastante para arriscar.

Essa coisa atendia pelo nome de Neil Baker.

Havia um lado positivo na aparente homossexualidade e não estar sujeito às regras de decoro de Umbridge era parte considerável dele. Edward não tem aspirações na carreira legal, mas sabe que pelo menos entre bruxos as regras devem estar bastante explícitas no papel, e as tais regras só proibiam contato com pessoas do sexo oposto (Hogwarts definitivamente só se tornaria mais LGBT-aware nos próximos anos então ‘sexo oposto’, aqui, não é uma descrição de todo cissexista – muitos ordenamentos ainda eram feitos assumindo que todos os alunos seriam héteros e levando em conta gênero percebido no lugar de autoidentificação). Então ele ficaria bem se fosse discreto e evitasse ser pego demonstrando afeto físico em excesso com qualquer pessoa, Neil principalmente.

(sendo Edward quem é, dificilmente o seria. Sendo fisicamente acuado, enrustido e já tendo uma atitude introspectiva por natureza, socialização física era uma liberdade que ele dava a poucos)

Ele e a mãe haviam desenvolvido certos feitiços de privacidade e códigos por escrito a essas alturas, e numa de suas cartas ela ocultava entre poemas de Sylvia Plath a sugestão de que ele (e, em grau menos urgente, seus irmãos) aprendesse oclumência. Elizabeth em si era oclumente, e ela ser oclumente era 50% do motivo para nenhum assassinato ter ocorrido nesse núcleo familiar ainda – mas não poderia o ensinar ela mesma. Frederick descobriria suas intenções.

Conseguiu, por fora. Nunca ficou tão bom quanto a mãe. Não seria bom o suficiente nisso para ensinar a própria filha a evitar um novo ataque contra si quase trinta anos depois, mas a si próprio ao menos ele poderia defender. Edward agradecerá a si e à mãe pela iniciativa por diversas vezes ao longo da sua vida, mas o auge da gratidão se dará no intervalo de anos entre a cena da primeira tela e a cena da segunda.


 


 

Havia um lado bom em Aaron não estar mais em sua vida: não havia mais nada que a ligasse fortemente a Londres.

Rachel se sentia verdadeiramente ultrajada por ser uma mulher formada morando com os pais mas os aluguéis ainda eram caríssimos e o piso na carreira jornalística bastante ingrato. Isso de ‘ser uma mulher independente que não precisa de homem algum’ ia ter que ficar para outra hora. Outra vida, talvez, uma em que ela nascesse herdeira por parte de mãe de um império bilionário.

As coisas estavam mudando em sua área, como dizia o seu editor-chefe quase que semanalmente, com um misto de nostalgia e inconformidade com as mudanças do fim do milênio. “meu filho apareceu ontem em casa com um computador de 8 Mega de RAM”, dizia enquanto organizava a gaveta de negativos para não passar nervoso, “eu não me surpreenderia se em dez anos nossa carreira for extinta porque os robôs são os únicos capazes de escrever uma notícia imparcial de verdade”.

Às vezes ela de fato tinha pesadelos com o robô de 2001: uma odisseia no espaço roubando seu emprego e conversando com C3PO ao redor da cafeteira perto do laboratório fotográfico... mas aí lembrava que robôs não bebem café e ria do ridículo da ideia.


 

Ano 7 (1996):


 

Algumas pessoas começavam a achar que a posição de professor de Defesa Contra as Artes das Trevas era amaldiçoada, pois ninguém ficava muito tempo nela.

Havendo uma maldição ali ou não, somente no final de sua educação em Hogwarts Edward se tornou minimamente relevante em termos de quadribol. Se tornando minimamente relevante em termos de quadribol ele, por extensão, se tornou minimamente relevante socialmente – algumas moças demonstravam certo interesse nele, em especial as sangue-puro, mas Edward sempre dava mil desculpas para não ter nada com elas.

Ao mesmo tempo em que tinha diversas coisas com Neil. Era um ano mais novo, ele, mas mais sabichão nessa área da vida do que Edward jamais seria. Em meio a beijos furtivos com atmosfera de melancolia ele lhe contava da vida fora da bolha bruxa, das coisas que os seus parentes trouxas vinham produzindo lá no Vale do Silício (explicar o que era silício foi metade do problema) – eletrônicos potentes, celulares, videogames, a Internet...! As discussões trouxas também lhe intrigavam: clonagem, casamento homoafetivo, eutanásia, testes em animais... ficava encantado, ele, e a troca de conhecimentos era quase mais importante no relacionamento que a troca de carícias.

(imagine explicar o Google a um bruxo numa época que a maioria dos trouxas não fazia ideia de sua existência)

Com Neil, Edward descobriu que suas paixões eram três: ele, curiosidades do mundo trouxa, estudo de fauna e flora mágica. Era isso que tinha que ter em mente quando fizesse o seu NIEM. Era só nisso que pensava em meio a tribulações políticas, tentativas de envenenamento, Harry de cabeça quebrada e as peripécias que se metia por estar envolvido na armada.

Fugiria com Neil para algum lugar onde tivessem ao menos os direitos mais básicos que um casal heterossexual tem, decidiu – Escandinávia! Era perfeito, sim, cuidaria de dragões e seria feliz para sempre com marido e talvez filhos adotivos. Teria que esperar ele se formar, sim, mas nada que não poderia ser resolvido... e um ano de janela lhe comprava tempo para ganhar dinheiro e vender posses o bastante para financiar o plano. Tais ideias eram o que lhe mantinham vivo e funcional, menos tendente à tal depressão crônica. E dava para ignorar o mundo desabando ao redor deles na maior parte do tempo, até que recebeu uma carta.

Do pai.

A primeira carta de Frederick nesses sete anos.

A ordem “acho bom seus NIEMs te colocarem numa posição de medibruxo ou no Ministério, ou…” já era ruim, mas era o de menos. Frederick dizia também, nas entrelinhas, que os comensais da morte estavam a caminho e que era muito bom Edward não estar metido em encrenca porque seus contatos entre eles não hesitariam em passar por cima de todos que se colocassem diante deles, com ou sem nome da família ou dinheiro de escudo. Ele ignorou por completo as ameaças, mesmo congelado de medo, e até tentou alertar aos demais depois de ler a carta a Neil, mas foi tarde. Quando menos esperavam Dumbledore estava morto.

A hipocrisia da atitude do pai na ocasião do enterro dele – o mesmo Frederick que semanas antes havia feito comentários maldosos sobre a sexualidade e origem familiar de Dumbledore, é – só o fez ter mais certeza de que fugir era o melhor que tinha a ser feito. Se passasse mais de um ano convivendo com ele alguém sairia mutilado ou morto.


 


 

Rachel trabalhava duro. “puxou a mãe nesse quesito”, alguém diria, e esse alguém seria recebido com um olhar que era um último aviso de “tente não me irritar, tenho dormido cinco horas por noite e trabalhado seis dias por semana”. Mas trabalhava duro sim, a mocinha. 23 anos na cara, desejando finalmente chegar no jornalismo de guerra antes dos 25, tendo tido apenas relacionamentos superficiais desde o fim da coisa com Aaron. Era uma daquelas fases da vida que você ainda não chegou a lugar nenhum e em que perguntas de parentes, amigos da família e ex-colegas são particularmente incômodas, pois tocam em todos os assuntos errados.

Nem precisava ser uma pergunta, na verdade. Afirmações tipo “meu David está fazendo 90 mil por ano” ou “sabia que a Regina casou? Vai ser mãe, ela, já está de cinco meses” também eram bem ruins.

As pessoas de fora da família em geral não prestavam muita atenção em Rachel, sempre foi assim e era até melhor que fosse – nunca gostou de ser o centro das atenções. A única fase de sua vida em que ela era mais destaque do que qualquer fulaninha de sua idade na rua foi quando ela parecia com uma cruza de Siouxsie Sioux com uma protagonista de Jovens Bruxas a sua escolha. Esses definitivamente eram outros tempos.

Mas 'ser melhor assim' não muda muito o fato de que ser notada é o meio mais rápido que existe para se chegar a onde se quer na vida. Estava cansada de ver os lançamentos mais recentes na área de fotografia e chorar internamente porque seis meses do seu salário não pagam uma câmera digital profissional. Sabia que em seu campo as chances eram que jamais ganharia tanto quanto a mãe, por exemplo, mas Rachel se contentava com nome. Com ser aquela pessoa de quem os outros se lembram quando precisam de um contatinho na área jornalística.

Teria de ser mais agressiva.

E, bem, começou a ser mais agressiva mesmo. Era até ali bastante discreta a respeito de sua força… digamos, mais pro lado físico que intelectual, mas não seria mais. Era-lhe conveniente deixar todo mundo saber que sabia mexer numa semiautomática e que com o devido tempo poderia aprender a mexer numa automática. Era-lhe conveniente deixar todo mundo saber que tinha habilidades muito similares às de qualquer soldado israelense mesmo tendo vivido a vida toda no Reino Unido e só devendo lealdade a este país e à sua rainha. Era-lhe conveniente demonstrar em momentos oportunos que era fluente em três idiomas e estava se esforçando para aprender francês. Se havia alguém com todas as qualidades mais desejáveis num repórter de área de risco, esse alguém era Rachel Berkovich... de acordo com ela própria.

Demorou mas funcionou até. Alguém diria que metade da ‘sorte’ e do ‘reconhecimento ao seu trabalho duro’ só demonstrou frutos porque o melhor fotógrafo e escritor do jornal em que ela trabalhava morreu em serviço no Afeganistão e que se ele morreu após dez anos em serviço, ela tinha chances infinitamente maiores de se ferrar também, mas hey! Com todo respeito ao falecido: defesa de legado de anos por defesa de legado de anos, sangue novo a parte.

Sua família odiou a ideia do jornalismo de guerra ainda mais quando tal ideia começou a se mostrar uma realidade que ocorreria um dia. Devora até se mudou para casa do filho para ver se conseguia impedir Rachel de sumir no mundo com seu equipamento, mas não funcionou. Um mês e meio após a baixa do colega ela estava a caminho de Cabul.


 

Ano 8 (1997):


 

Ao voltar para casa, primeiramente foi confrontado com o fato de que Elizabeth estava lá pros lados dos Weasley enchendo a área de feitiços protetores, dificilmente voltaria antes dos seus filhos mais novos voltarem a Hogwarts, e que a longo prazo cabia unicamente a ele a tarefa de tentar fazer Frederick não foder com a porra toda nem deixá-lo se unir aos comensais da morte.

Desagradável.

Complicado, para dizer o mínimo.

Mas pelo menos seus NIEMs estavam impecáveis e enquanto não podia fugir, a única coisa que Edward podia fazer era exatamente o que o pai queria: se enfiar no St. Mungus e treinar para ser um medibruxo. Neil não fez que nem os seus colegas que decidiram não se formar, ele só ficaria livre para partir lá por agosto de 1998, então fazer isso ainda que sem nenhuma intenção de terminar o treinamento todo lhe dava outras coisas para pensar em sua ausência e mais chances de ter ocupação após sua fuga.

Antes mesmo de ficarem só os dois na casa em Londres, a coisa ficou meio feia. Voldemort havia tomado o Ministério, e um dia Lizbeth informaria aos filhos o que houve entre tal tomada de poder e o fim da Segunda Guerra Bruxa, mas até ali ela só havia desaparecido sem deixar nem fumaça de seu rastro. Já seria bem ruim não ter notícias da mãe que era basicamente seu escudo anti-Frederick (a partir dali ele diariamente será confrontado com a necessidade de se defender com oclumência), mas é só o começo da espiral de tragédias que seria tal período.

As notícias corriam, e corriam de um jeito meio tendencioso. O trio havia sumido, estava sendo procurado em tudo quanto é canto, e às vezes Edward via uns cartazes a respeito e uns boatos de paradeiros entre um treinamento de farmacologia mágica e outro. Era tudo meio esquisito, ele sempre teve a impressão de que sangue-puros eram minoria no santo ano de 1997 (impressão bastante correta), mas de algum modo agora todo mundo em volta dele era sangue-puro.

Era meio intimidador até.

Neil era mestiço, e estava tentando ser tão discreto sobre isso quanto conseguia. Antes de se despedirem pela última vez, Edward falou de como usou diversos códigos e feitiços com a mãe no passado. Disse que o de disfarçar o texto real com uma citação era o mais bem sucedido até agora e deveria ser o meio de comunicação deles a partir dali. Quando questionado de como Neil diferenciaria as usuais declarações de amor poéticas do namorado das mensagens secretas, Edward disse “se for Byron, é porque não é uma citação comum”.

Byron ficou, então, para ida e para volta.

Corujas iam e corujas voltavam, e as desculpas pro pai eram sempre as mesmas: irmãos em Hogwarts, e era obrigatório agora, então eles nem poderiam voltar para casa e frustrar seu plano. para lhe ser honesto, não era uma mentira – meia-verdade, talvez, mas não uma mentira. Tanto não era de todo uma mentira como seus irmãos lhe ajudavam a sustentar tais desculpas e entregavam a correspondência extra ao destinatário que realmente deveria abri-la.


 

when we two parted

in silence and tears,

half broken-hearted

to seven for years,

pale grew thy cheek and cold,

colder thy kiss;

truly that hour foretold

sorrow to this’


 

Neil era o único que poderia ler o que havia por trás de tais palavras, e só após usar um feitiço que era uma espécie de senha. Eram questionamentos a respeito de quão seguro ele estava de que havia convencido o Ministério de que tinha ancestralidade bruxa, dos resultados da pesquisa em direito de família bruxo internacional que ele prometeu fazer por fora, se ele tinha notícias dos demais membros da Armada.


 

Why did I laugh tonight? No voice will tell:

No God, no Demon of severe response,

Deigns to reply from Heaven or from Hell.

Then to my human heart I turn at once.

Heart! Thou and I are here, sad and alone;

I say, why did I laugh? O mortal pain!’


 

O trio havia se infiltrado no Ministério e conseguido roubar uma horcruxe. O porvir era promissor.

Quanto ao seu registro, havia meses que o mesmíssimo Ministério estava empurrando sua liberação com a barriga. Estava demorando tanto que ele considerava mentir para apressar as coisas, mesmo tendo origem mágica por parte de mãe.

“você me acha com cara de qual família mais ou menos segura?”, perguntaria Neil com certa ironia.


 

When I hear you express an affection so warm,

Ne'er think, my belov'd, that I do not believe;

For your lip would the soul of suspicion disarm,

And your eye beams a ray which can never deceive.


 

Yet still, this fond bosom regrets, while adoring,

That love, like the leaf, must fall into the sear,

That Age will come on, when Remembrance, deploring,

Contemplates the scenes of her youth, with a tear;’


 

O clima em Londres estava esquisitíssimo e Frederick andava estranhamente próximo aos Malfoy, apesar das tentativas de Edward de mantê-lo na linha. Mesmo o impedindo de ser combatente ativo ao assustá-lo com uma sentença perpétua em Azkaban tão logo Elizabeth voltasse, nada o impedia de ser patrono financeiro da cruzada maligna. Não havia muito que ele pudesse fazer a respeito sem, sei lá, fabricar venenos indetectáveis nas horas vagas.

Cogitou isso de verdade mas não julgou ter o estudo necessário para tal. Se limitava assim a desabafar com o seu gato de três patas e seis dedos, que agora era um gato de três patas e seis dedos bastante idoso e meio surdo.

Também com ironia, Edward responderia à pergunta do amante dizendo que seu nariz lembrava um pouco o dos Reynolds.


 

Ye scenes of my childhood, whose lov'd recollection

Embitters the present, compar'd with the past;

Where science first dawn'd on the powers of reflection,

And friendships were form'd, too romantic to last;


 

Where fancy, yet, joys to retrace the resemblance

Of comrades, in friendship and mischief allied;

How welcome to me your ne'er fading remembrance,

Which rests in the bosom, though hope is deny'd!


 

Again I revisit the hills where we sported,

The streams where we swam, and the fields where we fought;

The school where, loud warn'd by the bell, we resorted,

To pore o'er the precepts by Pedagogues taught.’


 

Boatos corriam, e eles sugeriam que em algum momento dessa história toda o trio foi visto voando no dragão de Gringotes. A vida em Hogwarts, Neil dizia, continuava infernal como o usual para um ano de intolerância e relacionamento à distância. Ele contava os dias para sua libertação, e era tão dramático no modo como expressava isso quanto o próprio Lorde Byron o seria em seu lugar.

Talvez no desespero, no entanto, ele tivesse levado um pouco a sério demais a sugestão obviamente sarcástica de Edward. Havia de fato tentado a sorte como ‘parente distante de Maisy Reynolds’ e só Deus poderia julgá-lo.

Ou Merlin. Tanto faz.


 

I would I were a careless child,

Still dwelling in my Highland cave,

Or roaming through the dusky wild,

Or bounding o’er the dark blue wave;

The cumbrous pomp of Saxon pride

Accords not with the freeborn soul,

Which loves the mountain’s craggy side,

And seeks the rocks where billows roll.’


 

Edward estava muito tenso.

No meio dos seus deveres como aprendiz, agora promovido a uma espécie de residência na ala de fraturas, podia jurar que ouviu algo sobre invasões a Hogwarts dos lábios de seu tio por parte de mãe (que deveria estar na ala psiquiátrica, mas ninguém aparentemente liga então Jacob ficava mais vezes fingindo que trabalhava do que não).

Reforçou a segurança no código dessa vez, fechou os olhos e enviou o aviso, pedindo urgência no envio à coruja de nome Cleópatra.

Quando a mãe voltasse, perguntaria qual era a dela com nomes de amantes trágicos pras corujas. Vai ver ultrarromantismo era genético.


 

"And thou art dead, as young and fair

As aught of mortal birth;

And form so soft, and charms so rare,

Too soon return’d to Earth!

Though Earth receiv’d them in her bed,

And o’er the spot the crowd may tread

In carelessness or mirth,

There is an eye which could not brook

A moment on that grave to look."


 

Essa foi a última carta de Neil, e logo depois veio uma de seu irmão Edgar (colega de ano, grande facilitador do romance dos dois). Neil mencionava que a Armada se preparava para defender Harry, seus amigos e Hogwarts num geral e pedia que Edward o mantivesse em seus pensamentos pois a vitória contra Voldemort em si meio que era sua última esperança de sair vivo dessa história.

Por pouco Cleópatra e a coruja de Edgar, tragicamente chamada de Marcus Antonius, não morreram queimadas no grande incêndio de Hogwarts. Definitivamente teria uma conversa com sua mãe sobre essa infeliz escolha de nomes pros animais mas antes teria que ver o que o irmão queria. Parecia bem urgente.


 

"Farewell! if ever fondest prayer

For other’s weal availed on high,

Mine will not all be lost in air,

But waft thy name beyond the sky.

Twere vain to speak, to weep, to sigh:

Oh! more than tears of blood can tell,

When wrung from guilt’s expiring eye,

Are in that word – Farewell! – Farewell!"


 

Edgar, além de enviar de volta a ele todas as cartas que Edward havia mandado a Neil nesses meses todos, basicamente dizia duas coisas em sua carta.

1) aparentemente Harry Potter era parte do problema o tempo todo e não sabia. Ao descobrir isso ele decidiu se entregar para morrer nas mãos de Voldemort;

2) Neil havia morrido em combate;

Dissemos que até aqui tudo o que Edward vinha suportando era única e exclusivamente para sair em uma fuga hollywoodiana com Neil tão logo ele se formasse. Que fora isso, não havia mais nada para ele no Reino Unido ou mesmo no mundo mágico como um todo. E que embora fosse verdade que ‘não deixar Frederick piorar o que já estava ruim’ fosse um objetivo secundário dado por sua mãe em sua ausência, era bastante óbvio que não estava tendo muito êxito nisso. Além disso, como piorar o impiorável?

Sua primeira reação a todas essas constatações foi tentar dar cabo de sua própria existência. Deu errado – dormiu por mais tempo do que gostaria, mas o objetivo pretendido não foi alcançado, pois tal longo sono teve duração menor que ‘pra sempre’. Edward era um excelente pocionista, mas por sorte ou azar calculou mal os tempos de preparo e, no lugar de um veneno que lhe garantisse morte rápida e indolor, tudo o que conseguiu foi um potente sonífero que o fez acordar um mês depois do fim da Segunda Guerra Bruxa. Não acordou com sequela alguma, exceto por uma grande e incontrolável fome após seu sono profundo.

Sua segunda reação foi decidir que nesse momento – agora que Voldemort estava morto, Neil estava morto, seu gato estava morto, Edward não havia conseguido se dar o mesmo destino e que Elizabeth havia voltado de sua longa jornada ainda bem mal explicada – nada o impedia de largar seu treinamento (já na sua metade final) e sumir no mundo.

E tão logo encheu sua mala de poções e de itens bruxos de sobrevivência foi exatamente o que fez – nem esperou para ouvir a história toda do triunfo contra Voldemort que deixou de assistir enquanto dormia. Foi um momento oportuno. Com o retorno da calmaria política ele estava perto assim de ter um noivado arranjado nas suas costas pelos homens mais velhos de sua família.


 


 

Sua situação era complexa, para dizer o mínimo, então não é por nada que ela se agarrou ao menor resquício de sentimento de comunidade que viu pela frente. Novamente, uma entidade com nome e sobrenome: Andriy Kaplansky.

Andriy era médico. Era recém formado e, como ela, era de ascendência judaica e ucraniana – a diferença é que ele era americano e cresceu no Canadá. Era daqueles médicos que viajam o mundo tratando de feridos e doentes nas piores tragédias que encontram no caminho, sabe, vivia de apadrinhamento de anônimos. Tão logo ela chegou em Cabul o conheceu: viviam no mesmo andar, tinham conhecidos em comum, ele se revelou uma excelente fonte e uma das poucas pessoas com quem podia contar incondicionalmente, assim, tão longe de casa. E ainda lhe auxiliava com o francês! Parecia quase providência divina.

Sempre que possível, ele lhe cedia os relatos das pessoas que aceitavam falar sobre sua história, o que lhe deu material para um número considerável de reportagens. Além do trabalho que fazia em combate tentava se aproximar de civis dispostos a dar depoimentos, mesmo com o abismo cultural no meio e do alto risco que era se comunicar com homens estranhos no seu contexto atual – dois lados da mesma história, ela se repetia constantemente, e claramente os civis pareciam ser o lado menos errado da história.

Mas jornalista às vezes tem que fingir não ter opinião ou perde o emprego, então por muitos anos guardou essa parte da frase para si.

Para todos os efeitos ela sequer tinha uma identidade pessoal. No campo, era seu trabalho, os sentimentos por ele expressos e só isso. Fazia o que era certo e era ético, claro, mas não havia status infrafamiliar, não havia contexto sociocultural, não havia criação ambígua ou traumas de adolescência, e muito menos havia a moça de quase vinte e cinco anos que um dia gostaria de ter sua própria família apesar da vida na corda bamba que provavelmente teria dali para frente – havia apenas a mensageira das más notícias, que deveria dar tais notícias com cuidado e respeito, mas também sem usar de apelo emocional desnecessário. Foi o destino que escolheu para si, e quando pensava a respeito chegava à conclusão de que essa escolha não foi propriamente uma escolha, mas um desígnio, e ironicamente ou não, sua filha se intitularia exatamente assim anos e anos depois: como alguém que foi escolhida por Deus para portar as más notícias e as informar, mesmo não as compreendendo e mesmo desejando qualquer outro papel na vida que não esse. O meio de transporte de tais notícias, no entanto, era completamente diverso do das notícias dadas por Rachel.

Em dado momento Rachel e Andriy cruzaram certos limites que haviam tomado para si – se fosse em outro contexto poderiam culpar uma hipotética bebida junto de uma hipotética música, mas quem acreditaria em tal desculpa no contexto de Cabul de 1997 sitiada pelo Talibã? Não. Estavam sóbrios, o único som no momento em que as coisas ficaram físicas eram as sinfonias de uma cidade em guerra e a coisa mais oficialmente proibida no apartamento (além da mera existência dos dois, tanto enquanto indivíduos quanto como ‘homem e mulher solteiros e no mesmo ambiente’, mas ignoremos essa parte) eram as câmeras de Rachel e seus próprios negativos. Ficou meio mexida no dia seguinte, ela, temia que isso encerraria seu trabalho no país por ali. Mas não, não havia mal-entendidos. O cruzamento de tais limites era até positivo, chegaram à conclusão, o problema seria manter um relacionamento amoroso ali sendo que até existir sozinhos já era meio arriscado dada a natureza do regime.

Questão importante, sim. Mas teria que ser resolvida outra hora. Os dois tinham muito trabalho a fazer e enquanto trabalhavam tais questões deveriam ser esquecidas por completo.

 

  


Notas Finais


(e juro que Edward existe nessa forma desde 2015)


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