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História ...but every apple has its own seeds - Apadrinhado


Escrita por: likeamoth

Notas do Autor


Disse que os caminhos se cruzavam lá atrás, mas é aqui que se cruzam de verdade.

EU SINTO que isso não acabou de todo, mas se for continuar eu faço outra série.

Capítulo 3 - Apadrinhado


Ano 16 (2005):


 

Foi tão ridículo quanto ele sempre achou que seria.

Arthur já havia casado e Edward já estava praticamente com as malas prontas para voltar ao País de Gales, mas achou que seria de bom tom avisar Rachel que estava voltando, principalmente depois de ela ter levado a mal ele preferir não apresentá-la à família. Não sabia o que fazer quanto a esse ultimato. Estava tentado a ceder aos pedidos dela, até abandonaria o mundo mágico em definitivo se sua segurança dependesse disso, mas ele nem sabe o que o esperaria caso jogasse a merda num inexistente ventilador e isso o incomodava mais do que deveria.

Não foi preciso jogar. Ela foi parar nele sozinha, enquanto girava como um pião de sorteio de loteria, se espalhando para lados do ambiente que ninguém sequer lembrava que existiam. Não havia um modo pior dessa história vir à tona, exceto dar cabo do plano do veneno de emergência.

Edward expôs sua situação à mãe, após levá-la ao sótão novamente, pinturas a tiracolo. Expostas lado a lado uma da outra, disse à mãe que tinha um chute sobre o contexto da segunda imagem e que ninguém na casa ficaria muito confortável com esse chute. Falou das cartas, falou do celular que estava escondendo no lado de dentro do casaco desde que chegou, falou do ultimato e de como os olhos verdes de Rachel e as caras e bocas engraçadas que ela adquiria ao contar uma história lhe eram encantadores. Disse que ela era a única mulher no mundo que lhe atraía o menor interesse, e que isso não é um modo bonito de dizer “só tenho olhos para ela desde que a conheci”. Falou de Neil. Falou que seu sono de semanas não havia sido um acidente – ou melhor, foi sim, porque o sono deveria ter sido eterno. Falou tudo, falou tanto, e falou por saber que se alguém no mundo era capaz de lhe aconselhar no que fazer nessa questão esse alguém era Elizabeth.

Não lhe surpreendia de todo a informação, nenhuma delas, já que Edward sempre foi o tipo ‘problemático silencioso’ e tudo que Cassiopeia previu a ele e a seus irmãos vinha acontecendo. E como resposta lhe disse que se ele não aceitasse tal ultimato provavelmente se arrependeria pelo resto da vida, mas tentar fazer isso de modo discreto seria prudente. Ele sumia com tanta frequência na calada da noite a essas alturas que ninguém ia dar conta se ele fugisse com a moça por vias trouxas e nunca mais voltasse.

Se alguém entendia essa situação, era ela, e se alguém sabia de arrependimento também era ela. Tentou seguir o conselho da mãe, voltou ao quarto, voltou a arrumar suas coisas e, como era definitivo, pensou consigo se não deveria levar as cartas de Neil, as pinturas e outros itens pessoais que não havia levado consigo em outras ocasiões.

Sim, decidiu, ensacando suas cartas antigas num embrulho bonito e o colocando no bolso de seu casaco. Rachel havia lhe explicado que entre os seus era tradição deixar uma pedra sobre a sepultura ao visitar os entes queridos, em algum momento de pânico com históricos familiares e com a saúde da avó, que elas eram duravam mais que flores. Papel era intermediário, pensou. Dura mais que flores mas menos que uma pedra. Como o que teve com Neil. E seria um gesto muito bonito se tivesse se tornado realidade, mas não.

Estava para sair. Se abaixou para ajeitar a gaiola de Cleópatra e foi pego de surpresa com o pai atrás dele.

Sempre acabava com a respiração perturbada e as mãos e lábios trêmulos na presença dele, desde criança, e colocou a chave no seu bolso do casaco ao mesmo tempo que deixou o envelope a ser mandado para Rachel cair sem querer no chão por causa de tais tremores. Já estava selado. Se todos ali sabiam de algo sobre trouxas, era que eles mandavam cartas através de humanos pagos para isso, e que o meio de pagar tal serviço era a compra de adesivos a serem colados na carta em questão – às vezes com a cara da Rainha, algum de seus familiares, animais, festas importantes, segue.

Pegou o envelope, Frederick. Analisou de todos os ângulos: o endereço de uma caixa postal no verso, um endereço em Cardiff, Moira Terrace no destinatário. Uns selos com patos e outros com ilustrações de Jane Eyre. Fez menção de abrir, o que deixou o filho extremamente agitado, e ao ver tal agitação fez questão de abrir a tal carta. Leu algumas das primeiras frases em voz alta, e felizmente elas não eram dúbias ou sentimentais demais, até Edward tomar o papel dele… felizmente, sim, até Frederick decidir tentar a sorte com um encantamento de revista.

Oh, e como Edward escondia coisas sob aquele casaco.

Duelos não são a de Edward. Transfiguração ou Defesa contra Artes das Trevas eram coisas que ele tinha que se preocupar para conseguir ingresso no treinamento para medibruxo, mas agora que o negócio dele era outro nada que vinha de humanos lhe vinha ao caso. Animais e plantas, sim. Poções e venenos, sim. Até História da Magia, até disso ele conseguia falar por tempo considerável com bastante sucesso. Mas com todo o resto o seu conhecimento era bastante medíocre e não servia para livrá-lo de apanhar de alguém mais competente. Como Frederick – nenhum gênio, mas mais competente sem dúvida.

Pelos ares voavam seus pertences pessoais, e ele conseguiu recuperar a varinha, carteira com documentos trouxas, uma bolsinha de galeões que era tudo o que ele tinha em vida e o telefone (ainda bem, considerando o que viria a acontecer com o restante das coisas – a bateria explodiria). Faltaram suas cartas antigas, no entanto, e após analisar superficialmente uma das tais cartas e tentar diversos feitiços de descriptografia sem sucesso, tentou um usado no Ministério que pouco dominava mas poderia funcionar.

Funcionou.

Funcionou, e ele não gostou do que leu. Ficava mais inchado de raiva a cada palavra – fosse de amor, fosse de relatos do outro lado do país, fosse de zombarias ao nome da família ou da ideologia purista. Quando leu o modo como Edward o descreveu a Neil, ficou igual a um baiacu. “Felizmente ele não pegou as cartas em que falávamos de sonhos eróticos”, pensou ele tentando ver um lado bom na situação, até que Frederick levanta sua varinha na direção do filho e grita um pout pourri de todas as coisas ofensivas que já disse ao filho em quase vinte e seis anos, com ou sem ler a parte dos sonhos eróticos. Declarou que ninguém com o sangue dele se envolvia com sodomitas ou trouxas degeneradas, jogou as cartas no fogo, o paralizou em suspenso no ar, abriu uma de suas malas e achou uma das três pinturas – a primeira. A segurou de mal jeito, quase amassando e perguntou se era ela a destinatária da carta – Edward não podia responder que sim ou que não, e se pudesse também não diria. Deixou de esperar respostas que não teria e a jogou no fogo também, o que libertou o rapaz do feitiço e fez com que ele tentasse salvar as coisas perdidas. Frederick jogaria mais coisas se não tivesse decidido apontar novamente a varinha para ele com o olhar de alguém que lançaria uma maldição assassina, mas estava tentando decidir qual delas seria.

Edward sabia que morreria, pensava consigo, e tentava fazer as pazes consigo mesmo no que julgava que seriam seus instantes finais. Má hora para pensar em Rachel, se perguntava? Pensou em como enquanto lutava contra dor e sono ela cobriu seus olhos e dizia palavras que soavam como uma oração em uma língua desconhecida, no quanto ele gostaria de ter algo do tipo para lhe acalmar na iminência da morte. Ser apenas um adorador da natureza tinha sérias desvantagens, constatou, mas gostou da ideia de cobrir seus olhos, nem que fosse para se concentrar nela até finalmente morrer.

Até que não morreu.

Até que ouviu os grunhidos de dor do pai e uma Elizabeth que presumivelmente o mantinha no chão com ajuda de um cruciatus feito pelas costas. Gritou a ele para que pegasse suas coisas, fugisse e não olhasse para trás, e foi exatamente o que fez. Ia perguntar o que seria dela após lançar uma maldição imperdoável no próprio marido, mas ela disse que sempre se virou e não seria agora que seria diferente então Edward sumiu com tudo o que ainda lhe restava sem saber exatamente para onde ir.

Frederick sabia que estava morando dentro dos limites da reserva em Gales, então não era seguro morar naquele momento. Mas não havia ficado com a carta de Rachel – não tinha o endereço ou o nome dela, e teve a estúpida ideia de queimar a única coisa com o rosto dela que conseguira pegar. Só sua cidade ele tinha, e Cardiff era grande o bastante. Seria temporário, até achar outro lugar para morar, mas seria isso.


 

♦️


 

A história era bastante esquisita. Mas apesar de homem ser bom em inventar desculpa esquisita para não se responsabilizar pelas próprias escolhas, era tão esquisita que só poderia ser verdade.

Quando ela o questionou do seu estado, disse que havia sido expulso de casa e que iria lhe explicar tudo o que quisesse contanto que pudesse entrar. Olhou para um relógio de bolso e perguntou se era uma má hora, provavelmente não querendo outra recepção bizarra de Sarah, ao que ela expôs sua melhor expressão confusa, até se dar conta do que ele provavelmente queria dizer e o lembrar que eram 8 da noite de uma quarta feira.

“Ele é mais novo e já deu amostras de que é pouco experiente na maioria das áreas da vida que importam… normalmente isso é quase positivo, mas assim já é demais”, se disse mentalmente enquanto o ajudava com suas coisas e achava a presença de uma coruja e uma vassoura na bagagem dele bastante peculiar. Disse que seus pais estavam chegando, apesar de estar se perguntando por que sua mãe estava fora ainda se o tribunal fecha às 17h, e que eles não se importariam muito com sua presença ali dada uma emergência. Disse que tinha angel cake e lhe serviria chá, que chá e bolos sempre a acalmavam quando as coisas iam mal.

Ele a explicou que a procurou porque era a única pessoa no Reino Unido que poderia lhe receber no momento, e quando ela o perguntou a justificativa que lhe deram para tal expulsão, Edward não sabia nem por onde começar.

Pela parte em que deveria ter apagado todo mundo naquela casa, nem que fosse só a memória? Pela parte que seu trabalho ficava na esquina do nada com o lugar nenhum porque escondiam dragões lá nas montanhas? Pela parte que o que ele lhe deu anos atrás era uma poção mágica, que na ocasião estava procurando por gênios que podem ou não existir mas que tudo que havia achado no lugar eram lagartos altamente perigosos que atraem suas vítimas com a promessa de um oásis, os quais chamou carinhosamente de Banquo Lagotrizii como uma referência a Macbeth absolutamente gratuita? Não, seria direto na parte que decidiria se as coisas teriam um fim trágico ou não: tirou a varinha do bolso e colocou sobre a mesa ao lado do prato.

Ainda não explicava nada, constatou, então começou o que seria um monólogo de quase meia hora explicando o mundo bruxo como um todo, as guerras dos últimos trinta anos, o conceito de purismo, como magia era genético e ao mesmo tempo não era, que se contava isso tudo era porque realmente a tinha em alta conta, a amava de verdade e tinha suspeitas de que estavam destinados um ao outro – pro bem e pro mal. Após tal história que abrangeu todos os anos aqui descritos e alguns mais atrás, Rachel parecia visivelmente confusa, e para provar que falava sério ele lançou um feitiço de lavagem na forma de bolo suja sobre a pia. Quando questionada de dúvidas a respeito de tal história, não conseguia expor nem um décimo das questões que lhe pareciam esquisitas e misturadas, nem para si mesma. Mas não parecia ultrajada com a informação, ela, e apenas conseguia ter em mente uma questão naquele momento: pro caso de se manterem juntos o bastante para terem filhos e tal criança puxar a ele nesse sentido, como ela seria tratada no meio mágico, em todos os sentidos?

Edward riu de alívio com a estranha naturalidade da recepção da informação. Disse que as famílias sangue-puro talvez quisessem o fruto de um relacionamento que gerou deserdamento longe, mas que a maioria mestiça a trataria com relativa naturalidade. E que se o questionamento era a respeito da existência de judeus no meio mágico, sim, existiam – não tinha detalhes de como funcionava mas existiam, e chegou a dar um par de exemplos notórios. Se esqueceu de mencionar que clarividência é genético, mas não se pode ser livre de falhas, até porque falaria na existência de tal fenômeno apenas depois de tal explicação.

Disse que tinha uma teoria e que queria saber o que ela tinha a dizer sobre ela. Se preparava para responder que não tinha nada concreto a dizer sobre nada a essas alturas, mas aí lhe foram mostradas as pinturas e sua reação foi ainda mais inusitada.

“não sabia que você pintava, bonitinho da sua parte escolher logo isso como tema”, sorriu inocentemente enquanto tocava a mídia em que a imagem havia sido pintada, um pouco chocada com o movimento dela mas ainda em negação. Podia ser uma dessas novas tecnologias, não? Podia. “minha mãe pinta também, mas definitivamente uma proposta diferente da sua e… onde pegou a referência para casamentos se não foi comigo ou com ninguém próximo? Livros? Seu equivalente à internet?”

Edward então diz a ela que não foi ele quem pintou isso, que sequer sabe pintar, que não há equivalente bruxo à internet, que dificilmente a responsável sabia o que estava fazendo no momento e que quem o fez morreu quando ele tinha dezesseis anos. Rachel fica desconfortável com a informação, desconfortável como quem acaba de ouvir o próprio telefone tocar no meio de O Chamado, mas tenta agir com naturalidade… de novo, e esse seria um padrão bastante repetido dali em diante. Repetiu a pergunta, ele: o que ela poderia dizer sobre isso, tendo sido pintado há muito tempo ou não?

Devora entrou na cozinha no meio de uma explicação sucinta de Rachel sobre ritos matrimoniais e rostos dos visitantes que lhe parecem familiares – a senhora bastante debilitada não sabe se estranha mais o cara estranho na cozinha ou sua neta ter uma pintura que se mexe sobre a mesa. Culpou os analgésicos fortes de início, mas logo piscou demoradamente, pôs óculos, percebeu que era real e chega a começar a perguntar por que tinha algo que parecia uma tapeçaria se mexendo sobre a mesa da cozinha. Mas o resto dos habitantes da casa chegam antes e Sarah faz essa exata pergunta não com pavor, como Devora faria, mas como quem está preocupada em saber com quem o autor disso aprendeu essa técnica genial.

E Edward diz a eles tudo o que disse a Rachel anteriormente e explica vagamente por que sua bisavó pintava quadros estranhos, esperando uma recepção menos calorosa dos demais, mas surpreendeu-se com as dúvidas iniciais novamente.

Após questionar a existência de mágica por alguns minutos, Borys aceita a realidade que lhe é exposta diante de seus olhos e só pergunta “Que tipo de biólogo é você?”, se preparando para odiar o rapaz de cara ou adotá-lo para que não se tornasse um Richard Dawkins bruxo antes que fosse tarde.

“Então seus familiares se abstêm de tecnologia mas abraçam para si todos os ranços ideológicos dos não-bruxos? São tipo amishes com poderes?”, diria Sarah um pouco ofendida com o conceito, enquanto não se sente no direito de perguntar como é feito o quadro.

Próximo da meia noite, enquanto ocupados com coisas importantes e ouvindo sobre como provavelmente funcionaria a vida deles dali em diante, ouvem a campainha tocar. Sarah está próxima de uma janela e dá uma descrição da visita inesperada – cabelos claros em coque curto, construção facial excelente, orelhas um pouquinho grandes mas proporcionais, provavelmente mais velha do que parece, pose de dignidade perpétua digna de um híbrido de Audrey Hepburn e Julie Andrews, vestida de forma esquisita que nem Edward. Já pressupondo ser familiar dele, Rachel se arma com um cutelo corta-osso, montada em uma persona sanguinária que mostrou-se disposta a duelar mesmo que em desvantagem, apenas para ouvir que a visita é de paz e que ela só quer dar um adeus de duração indefinida ao filho. Sumiria no mundo mais uma vez, e não sabia quando o veria novamente – se veria.

Não é o melhor modo de se conseguir uma primeira impressão da sogra, não, e Rachel pede desculpas umas dez vezes por quase tê-la matado esquartejada. Teve sorte que era um cutelo e não sua arma, Elizabeth, pois sua reação à ameaça aos seus enquanto com com uma arma de fogo era atirar primeiro e perguntar depois.

Se tais segundos são o suficiente para Lizbeth respeitar a moça a ponto de quase sentir medo dela, não houve muito tempo para a família de Rachel formar uma opinião do rapaz, apesar de ele de fato ter ficado um dia dormindo na biblioteca. Nos dias seguintes ele ficou pelos arredores da reserva, visitando em horas livres, antes de uma nova viagem. Os dois saíram mais ou menos em uma semana para uma estada de dez dias no Sudão, e gostassem seus familiares ou não, voltaram ao Reino Unidos informalmente noivos.

Essa coisa de noivados informais parece ser algo recorrente a Rachel, mas isso também não vem ao caso. Algo digno de nota, no entanto, é que Devora ainda tinha a ideia fixa de que terminar com Andriy foi o maior erro da vida de Rachel. Manteve tal ideia quando eles partiram, manteve tal ideia quando eles voltaram, manteve tal ideia até morrer uns dias depois.

E tudo teria ficado muito bem com ou sem tal desgosto se Edward não tivesse cedido à própria ideia imbecil de viver na Cardiff bruxa até o luto acabar, os preparativos se encerrarem e ele finalmente se casar.


 

♦️


 

Do momento imediato após o pedido até a mudança oficial de estado civil, cada detalhe do que ele deveria esperar em termos de cerimônia, vida doméstica e o que cada um poderia esperar do outro enquanto parceiros para vida foi explicado e definido como se fosse ela quem tivesse previsto que um dia teria que explicar tudo isso ao futuro marido. Explicava em murmúrios cada feriado e cada regrinha que ainda não tinha mencionado, ambos dentro de uma pick-up alugada – ele lidando com veneno de streeler in natura, ela digitando um artigo sobre crianças-soldados que estava vendido para uma revista semanal. E mencionou que era ridiculamente seletiva com relação a como e quando seguir regras, mas que esperava que ele lhe permitisse criar quaisquer filhos surgidos de tal união dentro do judaísmo… do mesmo modo que respeitaria qualquer herança mágica em seus filhos sem pestanejar.

Nunca lhe negaria isso.

Nunca lhe negaria nada que não estivesse fora de suas possibilidades, definiu desde ali.

Apesar da pintura ser apenas um flash meio borrado do casamento em questão, ela foi bastante certeira em tal representação, tal como foi a pintura do deserto. Rachel não estava olhando ou pensando nela ao definir como se vestiria ou os tecidos dos quais tais vestes seriam feitas, mas uma foto tirada de costas da ocasião teria demonstrado exatamente a mesma coisa: véu de renda espessa, mangas curtas, tudo muito tradicional mas não por isso antiquado. Chegou a lhe ser oferecido um par de brincos que restava das joias pegas pela mãe, mas não aceitou por não achar conveniente.

Não se pode culpá-la.

Apenas a família de Rachel se fez presente, e eles e Rachel tinham mais amigos que imaginado. Edward tinha mais ou menos três ou quatro pessoas de sua confiança no mundo mágico que não estavam absolutamente proibidas de contatá-lo, que estavam felizes por ele e compareceram como esperado. A família estendida dela achou a história toda de ‘mundo mágico’ mais esquisita que os parentes mais próximos, mas se acostumariam, seriam discretos sobre isso e no fim até conseguiram se relacionar com os poucos convidados do noivo. Pouco comum o marido tomar o sobrenome da esposa no lugar do seu, também diriam, mas sem censura nisso.

Nem tudo era lírios-do-vale, dança e festa, no entanto.

Aconteceu de fato imediatamente após a cerimônia, descobririam mais tarde, mas se tornou notório enquanto liam cartões de presentes. Notavam que até pessoas que não puderam estar ali se demonstraram cientes da união (ao abrir presentes dos irmãos e da mãe, Edward chegaria a chorar) mas logo um buquê surgiu junto de um cartão em particular que se demonstrou nada amigável.


 

Mudem-se noventa e nove vezes, eu os acharei cem vezes.


 

Você pode até ter vivido o bastante para trair aos seus mas nunca terá paz enquanto eu viver.”


 

Tinha ouvido da mãe que Frederick certamente ficaria com sequelas de seu cruciatus, embora não soubesse dizer quais ou quantas – colocou muito ódio naquele feitiço e demorou bastante para libertá-lo, tanto quanto aguentou e quanto sabia que não o mataria. Ela sabia que tinha amigos em altas rodas que passaram a vida de sobreaviso de que qualquer coisa que fizesse contra ele seria em legítima defesa, e sabia que poderia contar com eles, mas ele também tinha amigos importantes. Era uma boa fugir até a poeira baixar mesmo assim.

Ambos deserdados, no fim, e não se surpreendia tanto assim com isso. As notícias de que a menção de seus nomes e rostos foram queimadas das tapeçarias da família corriam o Reino Unido e o tom em que eram ditas variava de boca para boca. Mas pelo menos isso ocorreu sem maiores consequências em relação à integridade física de ambos, ou ao menos era o que acreditava… até ler isso e dar-se por conta de que provavelmente alguém da comunidade de Cardiff o seguiu até a casa de sua família por adoção durante esses meses vivendo entre bruxos. Se odiou por dias, a ponto de adiar qualquer tipo de viagem ou comemoração explícita pós-matrimonial. Todos provavelmente estavam tão preocupados quanto ele, mas sentia que deveria ter dupla preocupação – como homem adulto mais jovem da casa e como indiretamente responsável pela maldição em questão.

Não que duvidasse da competência de Rachel, de forma alguma. Respeitava ela como mulher, respeitava sua força, já vira ela atirar e sabia que no caso dela a expressão ‘chave de perna’ poderia vir sem qualquer duplo sentido – sim, ela era fisicamente mais forte que ele, sem dúvida, qualquer um perceberia isso comparando os braços dela e os dele, e só isso já era um ótimo motivo para ele fazer de tudo para mantê-la de muito bom humor. Mas sabe o que ela era incapaz de fazer, por natureza? Se defender de magia das trevas.

E Edward era só um pouco melhor que ela nisso. A solução era que as duas pessoas mais identificáveis nessa história sumissem indefinidamente. Sumiram no mundo, os dois, e recomendaram que os restantes procurassem outros lugares para morar.

Deixaram seus cargos que tanto prezavam, venderam tudo, Sarah e Borys se esconderam por meses com Hannah em Londres. Uma posição em Wrexham numa instituição que estava para se elevar a universidade, conseguiu ele, e Sarah voltaria a advogar – diria brincando anos depois, antes de ser abrigada pela academia, que foi pro bem… era brilhante como advogada mas não tinha tanta confiança com relação a qualquer outra coisa, ela assumiria sem nenhuma modéstia.

E por meses a fio os recém casados pularam de país em país, cada um fazendo aquilo que fazia de melhor. Rachel poderia trabalhar à distância, Edward era o equivalente de seu mundo a um acadêmico, estava tudo em casa mesmo não havendo casa. Foram 40 países em sete meses, até no início de Outubro estarem no meio da Amazônia, Edward ir atrás de supostas Boiúnas que poderiam ou não existir (outra tendência que se tornaria particularmente comum ao longo de sua carreira), ouvir sobre botos sedutores e inseminadores de mulheres que também poderiam ou não existir e enfim chegar à semi-segurança de um alojamento. Questionaria à esposa se estarem em uma relação monogâmica lhes dava alguma garantia de segurança, se ela estaria segura de ser seduzida por um boto sob a forma de sabe-se-lá-o-que, se ele estava seguro sendo bissexual mas incapaz de engravidar. Disso dependeria a insistência na pesquisa, segundo ele, e embora Rachel não entendesse de botos ou de comportamentos sexuais de metamorfos ou de povos da floresta… já tinha demonstrado sua excelente intuição para colocar bom senso na cabeça dele.

Não obteve a resposta que pediu, ele, mas lhe foi assegurado que pelo menos é biologicamente impossível engravidar uma grávida. Rachel se deu conta de que talvez não gostaria de ter falado nisso até ficar óbvio demais. Se seguisse a tendência de outras mulheres do ramo, sua estada ali marcaria o fim prematuro de sua carreira (embora digam à boca pequena que, para uma mulher que deseja constituir família, ela já ficou até tempo demais no fronte) – mas deu-se por conta de que em questão de dias ele notaria de qualquer jeito. Ou usaria matemática básica ou notaria mudanças de comportamento, o início da mudança da forma física ou um súbito aumento em sensibilidade. Não era socialmente fluido o rapaz, mas era muito empático e rapido no interpretar da linguagem e dos tempos do corpo da esposa.

Aceitou, assim, o que quer que fosse seu destino dali em diante. Independente da preocupação com a sua carreira, estava muito feliz. E ele parecia tão feliz também… valia a pena arriscar seus planos só pela reação da recepção da notícia. Reação assustada e preocupada, mas positiva e meio abismada com o poder da natureza de gerar novas vidas.

Decidiram em conjunto que continuariam as coisas como estavam, majoritariamente, mas que ela evitasse tanto quanto pudesse se expor a risco de sequestro por cartéis. Também foi decidido que estariam em casa antes da metade de novembro e que o que fariam de suas carreiras só seria discutido depois que tal criança nascesse.

Onde quer que casa fosse agora.


 

Ano 17 (2006):


 

Não era mais seguro se dividirem demais, então Wrexham era a nova casa deles. Menor que Cardiff, sim. Não há sinagoga, okay, entrariam em termos com tal fato. Devem haver menos de vinte famílias judias nas redondezas, beleza, eles não estavam contando para saber. Mas também talvez… fosse só por um tempo, enquanto não desistiam de tentar matá-los e até outros empregos se escancararem aos adultos da família.

Edward ficou irracionalmente paranoico, e ter uma esposa visivelmente grávida não ajudava nas coisas. Não se pode culpá-lo. Até acharem a propriedade que de fato seria sua residência pelos próximos dezenove anos, foram quatro ‘quases’. No fim das contas sempre acontecia o mesmo: dado momento ele se sentia perseguido, desviava por diversas ruas e nunca readquiria a segurança de antes, mas por não poder andar sem rumo para sempre acabava por voltar à sua casa em estado de alerta.

Vedava tudo que poderia ser vedado, lançava protegos a torto e a direito, ficava de guarda de frente às portas e janelas por horas durante a madrugada. Nada disso fazia ele se sentir mais seguro, nem ao menos um pouquinho, então tomou a decisão mais absurda possível para consertar isso: viveria como trouxa a partir dali, ao menos no Reino Unido… ou o mais próximo disso que conseguia.

(ainda empurravam a tarefa de decidir o que fariam da vida após a criança nascer com a literal barriga de Rachel, então talvez fosse uma vida em disfarce em tempo integral)

Não deixaria de andar com a varinha, seria arriscado. Não deixaria de fazer poções – elas eram boas para manter todos em sua família saudáveis e felizes, além de gostar bastante da coisa. Mas sim, se fez um voto de não divulgar a público tal habilidade e de evitar ao máximo possível ambientes bruxos – compraria tudo de uma vez, como os trouxas fazem com suas compras do mês, e seguirá com tal hábito mesmo quando seus oponentes estiverem numa casa de esquife. Quanto mais perto da data esperada para o nascimento da criança, mais Rachel o lembrava de que dificilmente conseguiria fugir para sempre… se ele estava falando sério no dia em que chegou a ela e a seus pais pela primeira vez, ao menos.

“tal criança provavelmente será tão bruxa quanto você”, batia bolo e o encarava de cima enquanto ele fazia testes com poção reveladora e filmes antigos de Rachel, como se fosse um primeiranista em Hogwarts “ela terá que estudar como você e vai provavelmente se tornar uma pessoa maravilhosa como você. Não se preocupe, você saber usar magia não é nem de longe a única diferença entre nós. Ela se sentiria dividida entre duas realidades fosse você bruxo ou não”

E ao lembrar disso Edward começa a se odiar um pouquinho por desejar filhos e por isso não ter tomado tempo para aperfeiçoar poções contraceptivas. Mas seria erradíssimo esconder isso na bebida de Rachel e nunca conseguiria fazê-la tomá-las conscientemente por muito tempo, dada sua idade e desejo de ter filhos.


 

♦️


 

Elizabeth sempre surgia nas horas mais bizarras possíveis e ia embora em horas tão bizarras quanto.

Na primeira semana de março, quando Rachel literalmente já se via pedindo à criança em seu útero para que ela saísse dali bem rápido tamanho seu desconforto e mau humor, a senhora de orelhas ligeiramente grandes e graciosidade quase sobrenatural (mesmo que vestida de forma consideravelmente mais modesta que da última vez que vista por tais lados) surgiu quase do nada batendo em sua porta dos fundos.

Tais batidas fomentaram ainda mais a paranoia de Edward, que após quase um ano de casado e dois meses fixado na residência definitiva se recusava a incluir sua lareira nas redes de flu pela mesmíssima paranoia que o fez deixar as outras três, mas a visita o agradou. Ia dizer que ela seria avó em alguns dias, inclusive, mas Lizbeth disse que sabia e esse era metade do motivo da visita.

Nunca disse sua fonte, mas resumidamente: ela se chamava Keiko, que na sua posição de negociante pediu a Ruth que perguntasse a Lilya, que então perguntou a Hannah, que começou a corrente perguntando a Borys.

Disse que não era só para trazer seus melhores desejos que ela vinha, mas também para discutir algo com eles. Começou explicando o conceito de vidente batismal à Rachel, e que mesmo quando já definidos os nomes era comum que famílias com algum dinheiro sobrando procurassem tais serviços. Rachel via que havia uma conexão entre esse interessante fato sobre o mundo mágico e a sua situação atual mas não foi esperta o bastante para perceber que os rodeios eram para dizer, resumidamente, que ela procurou por esse serviço para saber o que esperar dessa criança que nasceria logo.

Fez um muxoxo a vidente e não deu detalhes da vida da criança, apenas disse “os nomes ‘Ophelia’ ou ‘Cassandra’ seriam as melhores opções”, sem nem piscar, e continuaria “opções como ‘Miriam’, ‘Sybill’, ‘Delphine’ ou ‘Pythia’ também se encaixam”. O que com ou sem investigação prévia já entregava que seria uma menina, mas nem era esse o ponto. O ponto é que após jogar uma coisa dessas ela não disse mais nada relevante, até porque Lizbeth não tinha as mesmas posses de outrora para pressioná-la a falar, e agora ela estava com essa informação solta e potencialmente importante em suas mãos.

Rachel disse que nenhuma dessas coisas sequer fazia sentido, que os nomes possíveis se limitavam aos de familiares mortos (preferencialmente do lado dela, dada a má relação de Edward com a própria família). Elizabeth chegou a mencionar à vidente que a família da mãe da criança era judia, e que presumivelmente a criança seria criada como tal – bruxa ou não. Ficou pensativa por uns instantes e declarou “Deborah pode servir também, agora saia, tenho outra família marcada”. Parecia perturbada ela, acrescentou a senhora, o que não ajudava muito a acalmar quaisquer medos de pais iniciantes.

Pro caso de errar na intuição do sexo e fosse um menino, descobririam anos depois, a vidente aconselhou o uso do nome do irmão mais velho de Devora, Yosef, presumivelmente morto como todos os outros que ficaram para trás na Ucrânia. A omissão de tal parte da consulta comprometeu seriamente a compreensão do contexto desses nomes tão incompatíveis entre si.

“por muitos anos achei que seu nome havia sido aleatoriamente escolhido pela vidente da época por falta de opção realmente simbólica e necessidade de dizer algo mesmo assim”, diria Elizabeth voltando sua atenção diretamente ao filho “mas no imediato de nossas fugas fui acolhida por uma pessoa que se desculpou por rir de nosso drama, e disse ‘rio porque dar o nome do único abdicado da casa de Windsor a um futuro deserdado foi de ótimo gosto’. Leiam tais informações como uma ferramenta que não sei usar, mas antes de ir gostaria de saber o que vêem nas sugestões.”

A vasta leitura de todos naquela casa não ajudou em nada a notarem que seis dos nomes citados eram relativos a oráculos ou profetizas e os dois primeiros eram relacionados a arquétipos femininos relacionados a sabedoria e insubordinação lidas como loucura… embora o casal mais velho da casa tenha chegado bem perto ao lembrar do assunto posteriormente. Ele num dos primeiros dias de vida da neta, durante uma leitura de Torah. Ela após meses, enquanto procurava um livro sobre análise literária feminista.

Nas duas ocasiões o assunto foi revivido à mesa de jantar, mas ninguém prestou muita atenção porque a criança demandou atenção exatamente na mesma hora e ninguém ousaria competir em atenção com ela pelos próximos cinco ou seis anos.


 

♦️


 

Deborah poderia ser eleita o pior bebê do ano de 2006, facilmente.

Sim, um bebê horrível com todas as características que um bebê horrível tem, horrível do instante do rompimento da bolsa à idade escolar (não que tenha melhorado muito dali em diante). Se antes a ideia de seguir o exemplo de uma ou duas jornalistas de campo que conhecia e levar a criança consigo após a licença parecia promissora, se mostrou impraticável já no meio do trabalho de parto.

Os seis meses desde a tomada de conhecimento de sua vinda não foram suficientes para decidir qual sociedade apresentava as melhores condições em termos de partos, considerando saúde normal da mãe e a impressão de que a duração da gravidez seria as habituais 40 semanas. Edward chegou a ser apresentado a métodos bruxos de obstetrícia enquanto estudava, sim, mas isso geralmente ficava a cargo de enfermeiros e parteiras. Sarah disse que sua opinião no assunto gravidez não deveria ser levada em conta, até porque sua impressão do fenômeno foi tão ruim que foi única. Hannah provavelmente não precisaria sequer ser questionada porque sua resposta seria óbvia, então simplesmente pularam a parte de decidir quanto a isso ou perguntar a outras pessoas e simplesmente optaram pelo sistema trouxa na última hora.

Sim, a ausência de irmãos de Rachel se explica assim. A ausência de irmãos de Deborah, no entanto, poderia ser explicada pela mãe com “quando tudo deixou de ser tão desgastante, meu corpo já não era o mesmo”.

Começa mal: apesar de não ter sido um parto de risco, ainda havia a questão da posição transversal. Já no primeiro dia de vida demorou horas para aquietar-se, apenas para ser acordada por ventos e trovões de uma tempestade horas depois. Logo descobririam que isso não foi uma esperteza da criança para ser tirada do berçário coletivo, mas sim o início de um hábito que persistiria toda vez que exposta a sons altos ou agudos, o que acompanhado de outros n sinais de alerta em crianças pré-escolares preocupou seriamente sua família por anos… mas foi explicado com ‘misofonia de causas desconhecidas, longuíssima lista de gatilhos ainda em construção’ tão logo ela se tornou capaz de comunicar seus desconfortos verbalmente. Tentativa e erro demonstraria em meses que melodias calmas em volume moderado ajudavam, e assim seria o início de sua relação com música.

Seus horários mudavam de modos sempre imprevisíveis e suas necessidades eram difíceis de serem adivinhadas. Sua demanda por atenção era constante e foram meses para que ficar sozinha num cômodo fosse uma possibilidade, seguidos de mais meses para que ficar sozinha num cômodo escuro fosse uma possibilidade.

Não se pode dizer que seu comportamento enquanto recém nascida não foi um ótimo indicativo de como as coisas seriam pro resto de sua vida.

Em dado momento do seu primeiro mês, só para sair da rotina, decidiu dormir uma noite completa espontaneamente, gerando uma situação absurda em que a falta de barulho e o temor de morte súbita que a acompanha foi o que acordou seus pais. Após tal pânico exagerado, a montagem de um quarto de verdade foi adiada indefinidamente – mas claro que essa foi a única ocasião em que ela fez isso em quase um ano.

Deborah parecia que estava saindo de seu caminho para irritar ou assustar adultos e nem ao menos era capaz de andar ainda, mas não era o caso. Só tinha ao mesmo tempo diversos fatores que fazem um bebê ser difícil. Sua sorte era ter pais relativamente pacientes e, apesar de inexperientes, habilidosos – usasse Rachel dos métodos de sua mãe, nunca teria tido os motivos para cada mau-comportamento descobertos e enfim solucionados pouco a pouco.

E metade da habilidade de Edward para lidar com crianças provavelmente veio da tentativa de adaptar métodos que na verdade servem para lidar com criaturas mágicas.


 

Ano 18 (2007):


 

Era o maior tempo que Rachel ficava sem viajar em quase onze anos, e foi tempo o bastante para todos conhecerem a nova criança e para os pais de Rachel conhecerem Edward como se ele tivesse se criado na porta ao lado a vida toda.

Sarah de início era bem desconfiada dele. O principal ensinamento que ela se orgulha de ter passado à filha é: duvidar a priori de homens, principalmente se forem ricos. E em certo grau Rachel assimilou bem a lição, principalmente após ter uma demonstração prática dos motivos, mas com a chegada de Edward a história poderia se repetir e se complicar. Chegou literalmente desabrigado, ele, é verdade – mas para todos os efeitos ainda havia nascido rico e fora criado para virar exatamente o tipo de cara que ela gostava de pensar que, no Reino Unido do século XXI, só existia em falácias do espantalho. O manteria em observação.

Mesmo desconfiada pegou leve com ele – não seria correto ser amarga sem motivo com quem já foi maltratado em casa a vida toda quando sabia como era crescer em lar abusivo para um dia fugir em pânico e sem planejamento – mas em dado momento nem precisou mais fingir afeição, passou a se identificar de verdade com ele e com a posição que ambos detinham naquela família. Praticamente tinha inveja dele: não havia um traço visível de transmissão intergeracional de comportamento abusivo em seu relacionamento com a esposa ou com a filha, enquanto cada terapeuta educacional e cada psicólogo de família que a viu uns dez minutos perto do esposo ou de Rachel, em quase quarenta anos, não teve dificuldades de concluir que enclausuramento emocional estava ali por alguma razão. Os anos dividindo as tarefas sabáticas a mostrariam que a impressão de ‘melhor superação’ no outro era mútua e que nenhuma das duas situações era invejável, que suas sequelas eram apenas diferentes.

Borys tinha uma opinião positiva desde o início e, como fazia com todas as suas primeiras impressões, só precisava confirmar ou esperar por algo que a estragasse por completo. Não gostou de como a coisa começou com uma conga de mentiras, okay, mas compreensível, fora que parecia um rapaz simpático e inteligente que se esforçava para fazer sua filha única feliz. Com a convivência confirmou seu julgamento inicial e Edward ocupou em sua vida o lugar de filho postiço – com limitações criadas por diferenças culturais e real natureza de sua ligação com essa família, sim, mas às vezes até se permitia esquecer disso. Tal leitura da relação de ambos claramente era mútua.

Deborah não era dotada do melhor dos gênios, mas desde bebê definitivamente tinha seu charme. Não se sabia se eram os olhos do pai ou do avô em seu rosto, mas independente disso havia semelhanças entre ela e todos naquela casa. Edward receou tocá-la por um período entre ‘dias’ e ‘semanas’, achando que era como uma boneca de porcelana que quebraria se forçasse muito o toque. Só cedeu quando a esposa cansou disso e inventou uma razão arbitrária que o obrigasse a levá-la de um cômodo a outro e se habituasse com demonstrações físicas de amor paterno. Nesses dias distante, no entanto, a observou de longe com curiosidade e interesse inalcançável de quem olha para o céu ou para um aquário – e procurou muito, mas pro seu alívio não achou o menor traço de seu pai e dos seus semelhantes em nenhum centímetro de seu pequeno corpo.

Deborah tinha orelhas um pouco grandes como Elizabeth, tinha os cabelos ruivos e formato de olhos da mãe, demonstrava desde já que teria a atitude extravagante de Sarah. Passaria a vida temendo submetê-la à criação que teve, ele perceberia logo, e em nada lhe acalmaria usar máximas pessoais como “caroços de pêssego são o que geram nectarinas”.

Eles de fato chegaram a tentar viajar um par de vezes após o fim da licença. Não destinos mais adequados à vida de antes, com as condições precárias de outros tempos, Rachel definiu – os do tipo que a forçavam a dormir e comer em lugares bizarros e ficar armada até em tarefas de higiene e limpeza. Se expor demais faria ela sentir culpa, mas se expor um pouquinho estava okay, e definitivamente manteria sua temática usual. Guerras civis talvez, guerras de fato não ainda, diria a si mesma, até perceber que no fim dava na mesma: a diferença é que ela tinha um quarto de hotel no primeiro caso.

Novamente adiaram indefinidamente essa discussão desagradável. Adiavam há séculos, na verdade, e se deixassem adiariam por mais séculos. Dinheiro não era um problema por enquanto, e eles até poderiam ser pais em tempo integral por mais alguns anos (não muitos, o banco onde Sarah montou o próprio plano de previdência faliria no ano seguinte e isso afetaria consideravelmente o orçamento). Mas não se sentiam bem com isso – já era esquisito o bastante morar com os avós da criança, serem sustentados por eles já era demais. E fizeram o experimento de três modos diferentes:

Numa das viagens, os três foram;

Numa das viagens, só ela foi;

Numa das viagens, os dois foram e Deborah ficou com os avós. Foi a última e a mais curta das três;

Nenhuma das três configurações parecia certa, e só Rachel ficar parecia ainda mais errado, então chegaram à conclusão que teriam que rever seus planos de carreira e definitivamente não seria uma revisão para um só membro do casal.

Decidiram que apesar de tudo conseguiram parte considerável do que almejavam. Rachel tinha boa reputação – jornalistas mais novos a procuravam para aconselhamento e para ouvir suas histórias mais escabrosas, principalmente mulheres. Edward era respeitado como profissional, apesar de ali ser tido como um ‘esquisito recluso de paradeiro desconhecido’ (no lugar de um ‘esquisito de paradeiro normalmente desconhecido que aparece às vezes’).

Decidiram que pelo menos por enquanto era melhor sossegarem, fazer viagens menos arriscadas, lidar com conflitos menores e criaturas menos agressivas.

Decidiram que apesar de paternidade ser eterna, provavelmente tal trégua seria revista em questão de alguns anos.

Decidiram. Doeria colocar em prática, mas ao menos decidiram.


 

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Como aconteceria, inicialmente, foi uma grande dúvida. Mas no fim Rachel ficou na página policial e Edward voltaria a estudar para talvez um dia conseguir existir no mundo trouxa.

Jornalismo policial era um passeio no parque depois de anos cercada de violência e insalubridade. Rachel só notou o quanto os anos no fronte a calejaram quando pela primeira vez chamaram atenção a sua falta de sensibilidade ao falar à mesa de coisas horríveis: métodos de tortura, variedades de latrinas e chuveiros improvisados, protocolos de sensibilidade para lidar com vítimas de abuso físico/sexual prolongado ou consequências possíveis em ser acertado por estilhaços de granada… de tudo isso ela já teve que ser impedida de falar mais que o agradável de se ouvir. Falava até animadamente e perto de um bebê cada vez mais atento aos arredores, quase sorrindo e não por não ver mais a mera existência de tais coisas como um problema, mas porque mais nada a chocava a essas alturas – e isso é péssimo!

Não era incomum a recomendarem terapia, e se antes ela não levava a ideia em consideração porque imaginava que era um modo gentil de sugerir que havia algo de muito errado no modo como reagia a situações sociais e a holofotes (o que também seria verdade, mas ela não concordava), começava a cogitar agora – sua condição era um tanto diversa das pessoas que sofriam diretamente com o que noticiou nesses anos todos, mas ainda era uma sobrevivente de situações traumáticas e agia como tal. Parecia que tragédia meio que corria na família mesmo: sua avó passou por isso, assim como seu pai, sua tia, sua mãe e seu marido. Pior, muitos anos depois sua filha viria a passar por isso também, e de algum modo nenhum dos quatro (eventualmente cinco) agia igual frente a isso. Rachel não tinha flashbacks ou ataques de pânico tradicionais como muitos em seu ramo e em posições militares clássicas tinham, mas definitivamente os anos lhe fizeram um mal irreparável.

Quanto a Edward, ele não sabia bem o que fazer de início mesmo quando decidido o seu destino. Ainda não se sentia a vontade para voltar de vez ao meio bruxo e não tinha habilidades monetariamente relevantes ao mundo trouxa. Seu sogro lhe dizia que buscar compreensão do modo como a biologia comum catalogava fenômenos e espécies poderia lhe ser relevante enquanto magizoologista ao mesmo tempo em que lhe daria um propósito na sociedade em que tentava se misturar, e ele de fato concordava. Mas parecia tão complicado e caro, isso, estudar como um trouxa.

Ainda assim, foi o que fez. Fora dos horários de aula ele ficava com a filha, que quanto mais crescia mais criatividade colocava no seu comportamento de criança-diabo: às vezes se escondia em armários da cozinha, às vezes tentava subir em móveis, às vezes tentava sair da casa sozinha mesmo mal sabendo andar, às vezes tentava mexer em colmeias ou formigueiros artificiais mantidos pelo avô, às vezes tentava comer o que não deve, segue. Ele não tinha muito pulso firme, mas Deborah não morreu enquanto estava sob seus cuidados então não pode ter sido tão ruim.

No final do ano ela deu um dos maiores sustos. Sarah foi checar se fechou a porta de sua estufa que faz vezes de atelier, Rachel estava na cozinha, Edward e Borys conversavam a alguns metros de uma Deborah de mais ou menos vinte meses. Ela originalmente se distraia com um Elmo de pelúcia, até que decidiu que não estava se divertindo o bastante e foi procurar outra coisa para fazer – seu jovem espírito aventureiro, então, decidiu que tentar raptar uma vela da chanukiah da janela seria sua ideia de diversão para a noite.

Todos os meios de isso acabar seriam terríveis, então foi bastante conveniente Sarah ter entrado no exato momento em que a criança se levantava com dificuldade e tentava se apoiar num móvel ao seu lado enquanto andava até seu alvo. Sarah chamou-a pelo nome todo, e como o seu tom irritado era o mais amedrontador dos quatro ‘tons de adulto irritado’ da casa… mesmo novinha Deborah sabia que ignorar era má ideia.

Virou-se a menina, com o olhar fixo e cheio de determinação – desafiador demais para alguém tão jovem, até. Foi a primeira vez que viram os olhos de Deborah ganharem tons de fogo escondidos no azul, primeira de muitas, e os anos só tornariam esse quase seu normal. Fez um tremendo escândalo quando pega no colo, ela, mas logo perceberia que tentar se comportar mal enquanto sob os cuidados da avó era entrar numa guerra fria de temperamentos explosivos. Páreo duro quando nem dois anos tinha, logo notaria, e só repetiria a tentativa quando bem mais velha.

A expressão dela acendeu uma lembrança na mente de Edward. Nessa época já viviam em seu endereço final, mas havia coisas não arrumadas mesmo assim. Edward correu ao quarto e foi atrás de um dos rolos de tecido que guardava até com certo amargor, e abriu o menos conservado. Decoração de casa de campo moderninha, criança, ele e o sogro ao fundo. Era a exata cena que havia acabado de presenciar, mas o ponto de vista era do ângulo em que a janela e a chanukiah sobre ela se colocavam.

“as pinturas dos futuros de meus irmãos não mostram filhos, mesmo que Arthur seja o único que ainda não os tenha tido ou não está se planejando para tal. Cassiopeia além de cismar comigo ainda se fixou na minha então inexistente filha.” disse ele mais tarde aos adultos, já com a iconoclasta mirim na cama, falhando em se recordar que uma das pinturas de Edgar de fato mostra um filho. O ponto dele ainda continua válido, no entanto – tais retratos eram maus agouros. “O lado bom disso é que podemos presumir que ela vai viver o bastante para demonstrar alguma característica que a torne relevante à sua Visão. O lado ruim é que provavelmente isso é um péssimo sinal.”

Era particularmente interessante a parte em que na época em que foi feita tal pintura a ideia de Edward tendo filhos biológicos concebidos do jeito tradicional lhe era meio ilusória.

Ainda assim, tentavam relaxar o quanto podiam. Deborah não dava muito descanso, mas era a coisa mais gratificante na vida dos dois agora que não mais trabalhavam livremente. Cargo importante para alguém tão novo.


 

Ano 19 (2008):


 

Ano complexo.

Dinheiro passa a ser uma preocupação maior aí. Nunca foram ricos mas podiam se permitir fazer gastos fúteis e imensos uma vez ou outra porque ninguém ficaria sem dinheiro para gastos básicos por isso. Outros tempos. Trocar de câmera a seu bel prazer ou encher a casa de coisas caras facilmente quebráveis não era mais uma opção a ninguém ali.

De vez em quando Edward comprava Profetas Diários e lia neles coisas curiosas. As pessoas que eram relevantes em 1999 são quase as mesmas que são relevantes em 2008, e notar isso lhe dá o maior insight sobre sua vida dupla tido até ali: a principal diferença entre o mundo mágico e o não-mágico era a permanência das coisas.

Não há Kim Kardashian bruxa. Não há Paris Hilton bruxa. Há Stephenie Meyers bruxas no sentido de que há pessoas escrevendo romances de qualidade questionável, mas não no sentido de que elas chegam ao estrelato do nada e voltam à normalidade tão rapidamente quanto. As pessoas que são famosas continuam famosas. Os métodos que são usados há mais de mil anos continuarão, provavelmente, a ser usados por mais mil anos. É toda a base do purismo, esse fato. E é por isso que ele continuava a ler jornais: queria ser o primeiro a saber da morte de cada patriarca purista e, com sorte, cuspir em seus caixões. Sempre que expressava tal raiva em voz alta Rachel se incomodava um pouco não só com as palavras, mas com o tom delas.

Antes de conhecer Edward, Rachel achava que nunca conseguiria achar alguém mais difícil de irritar que seu pai. Só falta de profissionalismo, comportamento artificial e assassinos de insetos polinizadores o tiram do sério. Mas Edward ganha dele: só pessoas que lhe lembram o seu pai o irritam, o problema é que quando Edward se irrita ele se irrita mesmo. Ele quase parecia uma das suas feras quando acontecia, em fala e em olhos.

Rachel viu ele entrar em ira cega duas vezes até ali, ambas após ser confrontado com coisas que lembravam Frederick e embora soubesse que ele nunca machucaria à ela ou à filha de propósito havia outras hipóteses – poderia se machucar, poderia quebrar alguma coisa, poderia cometer um crime e ser punido por isso, poderia ficar ainda mais emocionalmente quebrado do que já era. Todas possibilidades reais de as coisas acabarem mal caso se deixasse ficar assim por muito tempo. Fazia o possível para não deixá-lo voltar a tal estado. Inclusive ser hipócrita pra cacete ao dizer que rancor faz mal para alma e para o fígado.

(da primeira vez que ouviu tal raciocínio dela, Sarah teve que sair do cômodo porque era difícil demais não rir até perder o ar)

Mas tais mortes nunca aconteciam, suas oportunidades de cuspir em caixões eram nulas e na última vez que viu sua mãe ainda não poderia ser considerado ‘pai’. Isso o deixava cada vez mais desgostoso e, embora nunca sentisse isso numa intensidade o bastante para ser óbvio, com cada vez mais raiva quando lembrava da única coisa que o irrita no mundo.

Mas um dia isso mudou.

Após colocar o carro na garagem (aprender a dirigir foi uma das coisas mais difíceis em sua saída do convívio bruxo, mas além de morar longe do centro sempre poderia encantar o carro para que ele ficasse mais difícil de ser seguido), conferiu todos os esconderijos em potencial no jardim e entrou pela porta dos fundos. Direto, estava em paranoia novamente e num humor perfeito para se esconder no sótão por três dias, se comunicar apenas em código Morse e fazer chapéus de papel alumínio para toda a família. Não tinha cabeça para dilemas de lar multicultural.

Não havia consenso com relação a como ele e Sarah deveriam agir quanto ao mezuzá. Ela nunca questionou isso porque como ateia não acredita no seu poder de proteção como um todo, apesar de respeitar, mas ele tinha suas dúvidas e achava melhor imitar à esposa pelo menos até Deborah internalizar que isso era algo que deveria ser feito por ela.

Abriu a geladeira procurando por suco e uma fornada de babka que estava pela metade, apenas para ver que a travessa não estava mais ali. Não estava na louça por lavar também, então foi procurar alguém para descobrir o que se deu do que seria seu lanche. A travessa estava na mesa da sala de jantar, e sentadas em frente estão Rachel, Deborah (no colo da mãe) e… Elizabeth?

Havia sobrado alguma coisa então foi pegar um prato e sentou-se próximo das duas. Rachel pareceu aliviada porque, apesar de ela ter gostado muito da sogra após conhecê-la direito, seria rude se mandar para cozinha e preparar mais doces para ela se fosse às custas de deixá-la sozinha com a criança (cada vez mais encapetada) .

Edward tentava controlar a filha hiperestimulada no colo enquanto ouvia o que sua mãe tinha a dizer. Oficialmente não havia acusações em seu nome, oficialmente tinha um nome novo, oficialmente suas antigas famílias tinham medo demais das consequências de se meter com ela para ameaçar a segurança de seus protegidos e oficialmente voltaria a Londres para ficar, em moradia próxima o bastante de seus aliados. Achava que eles também estavam livres para ir para onde quiserem.

Elizabeth Knightley, agora se chamava sua mãe. Elizabeth Knightley e Edward Berkovich. Soava bem.

Achava que dificilmente as pessoas ali desejariam mais uma complicada mudança, embora a questão da ausência de uma sinagoga de verdade ainda seja um incômodo.

“usar redes de flu se qualifica como melakhah? Se não qualificar… uma ligação entre sua casa e a nossa resolve tudo.”, perguntaria Edward sem saber quão a sério perguntava isso ou por que perguntava se provavelmente sua mãe nem entenderia o que ele quis dizer com isso.

“teria que perguntar a alguém que realmente entende disso”, respondeu sua mãe bebendo chá e quebrando o doce em pedaços menores com a mão. Daí Deborah herdaria o hábito de brincar com a comida que sua mãe tanto odiará. Diz que é por deixá-la insegura da qualidade da comida, mas a verdade é que Andriy brincava com a comida e o rancor não passou nem com superação e um substituto com defeitos e planejamento de vida mais compatíveis com os seus. “me liste os questionamentos que você ainda não se respondeu e tentarei me lembrar de procurar por alguém em minha próxima entrega.”

O rancor nunca passará, e ele não é o único a ser alvo dele, tem uns vinte nomes na lista.

Contou-lhe de seu novo trabalho, a mãe. Criava corujas, pintava e fazia as tais telas de tecido ainda brancas também – por lazer e por profissão. Era engraçado pra caramba porque as famílias que os desprezam eram as principais clientes. Edward perguntou se continuava escolhendo nomes de amantes trágicos, ao que ela riu, disse que sim e que estava criando uma nova ninhada de onde viria a substituta de Cleópatra.

“se chamará Fyedka a sua”, disse num tom suave sem notar a péssima implicação por trás disso. Já tendo sido apresentado ao básico do teatro musical trouxa a essas alturas, logo se choca um pouco - chega a perguntar por que ela faz isso e com quem a coruja Chava ficaria, mas não é respondido. E não o é porque a criança sai de perto dos dois na primeira distração, invade a cozinha e Rachel grita furiosa pedindo para que alguém a tire dali antes que Deborah decida usar a forma Bundt como chapéu de brinquedo. Vai atender ao chamado, ele, e em sua volta o assunto seria outro por completo.

(Deborah de fato o fará, três anos depois, na tentativa de imitar o décimo primeiro Doutor. Tolinha. Edward tem um fez de verdade comprado pouco antes de seu primeiro contato com Rachel e, do jeito que ele é, colocaria ele mesmo o chapéu nela e até tiraria fotos)


 

♦️


 

Agora que tinha moradia fixa Elizabeth era uma presença constante na vida daquela família. Edward finalmente se dignou a colocar sua casa na rede de flu e visitas mútuas eram uma realidade.

Rachel gostava de Elizabeth. Achava ela elegante, tinha jeito de diva da era de ouro do cinema mas era menos reacionária que as originais. Além disso, a maioria das damas com jeito de ícone vintage não são veteranas de guerra – com exceção de sua xará Elizabeth II, e talvez Hedy Lamarr. Parecia ter uma biblioteca em sua mente, e isso que Edward lembrava a Rachel que ela nunca havia a visto praticar magia complexa e que Lizbeth não demonstrava nem metade do que sabia de verdade.

Sarah não sabia o que pensar de Elizabeth. Era uma cruza de major-general e oficial da polícia especial em reserva no seu mundo, a mulher, condecorada até. E Sarah não era exatamente de nenhuma dessas duas instituições. O sistema legal do mundo bruxo lhe soava como um bingo de violações aos Direitos Humanos que faria Guantanamo parecer um parquinho de diversões e waterboarding parecer o seu tobogã aquático. Assim sendo, a tinha como (além de uma peça do topo de uma pirâmide de hierarquia de poder baseado na força, por definição) colaboradora de um regime opressor.

Elizabeth não sabia o que pensar de Sarah. Percebia que havia certo mal-estar e sua tendência era não gostar de quem não gosta dela – isso e, cá entre nós, as pinturas de Sarah eram pesadelos em forma visual e Lizbeth era conservadora no quesito arte, não entendia boa parte do apelo da arte contemporânea trouxa (não julgava ruim, mas não entendia). Mas via que era uma mulher inteligente, dona de si, que tratava Deborah com amor e tinha lindas plantas… então não devia ser uma pessoa tão ruim assim.

Elizabeth gostava muito de Rachel. Ela sempre se preocupava em saber de seus gostos antes de preparar coisas a ela, e passou a manter os chás de sua preferência na própria cozinha. Sempre que visitava levava doces – inicialmente escolhia as opções mais universais que só as pessoas de péssimo paladar não gostam, tipo tortas com recheio de geléia ou bolos de chocolate, mas depois Elizabeth começou a remeter a coisas que havia experimentado enquanto ela os visitava, receitas de família e adaptações de sobremesas de tradição ashkenazi que não eram propriamente de família, e a partir daí Rachel decidiu que perguntaria o que ela quer e faria o que quer que lhe desse na telha se ela não desse uma resposta objetiva.

Inicialmente achava que ela de fato fazia todas essas coisas porque sentia a necessidade de sempre ter doces em casa e era gentil o bastante para fazer fornadas extras para os agregados também. Algum tempo depois de ser incluída nas relações da família, no entanto, começou a perceber que isso não era só gentileza, mas um método de resolução de problemas. Sem inspiração? A resposta é obviamente ptashyne moloko! Vai ser obrigada a encarar um grande número de pessoas logo e precisa achar um método urgente de não desmaiar ou vomitar quando for o centro das atenções? Pecan pie saindo! Conhecerá pessoas importantes logo? Ótimo, ao menos isso é desculpa para assar uma fornada de biscoitos de mel! Rachel pode ter a autoconfiança de um peixinho dourado, mas sempre sente que ganhará todas pessoas pelo estômago com uma fornada de biscoitos de mel! Se ela lembrar de preparar knyshes, então, se sentirá a mais persuasiva das mulheres.

Futuramente uma das maiores incomodações que terá com a filha, inclusive, é o hábito de Deborah sempre avisá-la de que Rachel vai ter que socializar quase que em cima da hora do evento, impossibilitando assim a aplicação de tal artifício de sedução. Nunca saberá se é proposital ou não, mas por enquanto o comportamento péssimo da filha se limitava a mais confusões de uma criança quase hiperativa.

Tipo enfiar sacos de farinha vazios na cabeça tentando imitar um fantasma e acabar com os cabelos brancos e os cotovelos ralados.

Ou perseguir gatos que aparecem no quintal espontaneamente e ficar triste quando eles não entendem seu modo peculiar de demonstrar afeto.

Ou subir em móveis. Subir em tudo, na verdade. Nenhum dos familiares dela havia visto uma criança de menos de três anos subir uma árvore com sucesso antes (uma árvore baixa, mas ainda árvore). Quando Rachel perguntou se isso era uma habilidade bruxa Edward riu, porque ele ao menos nunca havia subido numa árvore.

Nem Edgar. Rupert talvez, Arthur, no entanto, definitivamente subiu em algumas.

Falar em Edgar aqui é oportuno. Ele também tinha um filho pequeno, mais novo que Deborah, Andrew, que é a única criança fora Deborah a aparecer numa pintura profética. Sabia que tinha aparecido, quando ele próprio casou falou brevemente de suas aparições em pinturas a Edward, mas nunca mais tinha trocado ideias sobre o assunto com ele por estar proscrito da família agora. Só que em dado momento ele decidiu desafiar tal impedimento (obviamente escondido, e também obviamente se certificando que nenhuma criança envolvida diria um pio a respeito usando de sua maldita sinceridade infantil) e visitou Elizabeth, que já recebia as três outras visitas mais usuais.

Me privo de comentar sobre o primeiro contato das duas crianças, porque não há muito a ser dito: se estranharam, brincaram juntas e ficaram com ciúmes uma da outra, que é o que farão e vão sentir um pelo outro pro resto de suas vidas. Nada disso é de todo importante, no entanto, pois a coisa mais importante desse dia foi a conversa dos três bruxos ali presentes a respeito dos acontecimentos até ali.

Anos perdidos, anos ganhos. Tais descrições seriam fúteis mas trariam dúvidas mal resolvidas à mesa, tipo o questionamento do que Cassiopeia queria dizer quando fez tais telas a respeito deles. Tá, o caso de Edward era justificável pois prever o casamento e filhos por ele gerados era basicamente prever como Edward desonraria o seu papel na sociedade enquanto sangue-puro (mas não em completo – soubesse que a cerimônia era em ritos judaicos, poderia ainda iludir-se e descobrir se qualquer família bruxa e judia que conhece é sangue-puro. Uma ou duas no mundo inteiro, provavelmente constataria). Mas Edgar não fez nada que fugisse de seu papel até decidir visitar deserdados às escondidas, e não será pego por tais transgressões. Não havia motivo para tal retrato.

“eu, treinando jogadas de quadribol com um menino.” disse ele a Edward quando este perguntou o que havia na última pintura sobre ele mesmo, e tem como resposta “sem vassoura e no chão, é uma criança e crianças não voam. Mas balaços, goles e tudo o mais estavam em pleno funcionamento. Suponho que seja Drew.”

Edward explicou muito vagamente como quadribol funciona à esposa em algum momento do seu primeiro ano com ela, e ela captou grandes nadas da explicação. Mas sabe que Edgar se refere ao que ela chama de ‘bolas voadoras assassinas’ e faz uma cara de desaprovação: como se julgasse que treinar quadribol com uma criança fosse o mesmo que jogar ela na selva carregando uma pistola com duas doses de tranquilizante para ursos, pijama, meias de algodão e nenhum mantimento.

(em defesa de Rachel, sua incompreensão quanto a quadribol é tão severa quanto a incompreensão de Edward quanto a krav magá)

O irmão concorda silenciosamente e Edgar ri baixo enquanto finaliza seu raciocínio.

“a parte engraçada é que eu sou péssimo jogador, tanto que nunca me aceitaram no time. Não sei por que eu teria tentado ensinar algo assim a ele.”

E deixaram o assunto de lado após Edward dizer o que a última dele era, porque não ia adiantar tentar fazer sentido nos motivos de tais situações terem sido incluídas e no que se esperava que concluíssem ao olhar para elas. E nunca mais tentariam fazer tais escolhas da Visão fazerem sentido em nenhum dos anos que se seguiram, mesmo após as crianças saírem de casa para estudar – porque julgaram que seria infrutífero. Ninguém poderia garantir que não era meramente aleatório, uma escolha irracional como qualquer outra – como a que deu a Edward uma Serpente com Chifres como sua meta de pesquisa inicial.

(que não foi cumprida, mas serviu ao menos de desculpa para deixar sua vida anterior e sumir no mundo)


 

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Mas não é uma escolha irracional, assim como ele ter tirado ‘Serpente com Chifres’ de certa forma não o é. Não só não é irracional como ainda se relacionam em intenção, ambas as imagens.

Anos depois de tal encontro a Deborah de seis anos teria uma visão que dizia que sua tia avó entraria em problemas na sua próxima viagem. Tentaria, por seus próprios meios, descobrir como e por que Hannah e Ilya conseguiram viajar com sucesso por diversas vezes mas se encrencariam se viajassem naquela vez em particular. Descobriria que o Reino Unido então era outro, e que a Rússia também era outra. Descobriria que os documentos estavam mudando, que e que isso poderia influenciar negativamente na situação. Descobriria n coisas. Não entenderia o que essas coisas querem dizer por uns bons anos mas conseguiria, de certa forma, realizar algo que a Deborah de trinta anos não vai conseguir. E só o conseguiu graças a um pedaço de papel deixado para trás, com sua letra de criança duas vezes mais tremida do que o normal por tentar escrever um alfabeto que não domina tão bem quanto o (recém aprendido) alfabeto romano. Papel que deixou para trás porque sua tentativa de conseguir contexto do pouco que entendeu foi lida como uma tentativa de acessar livros sem orientação adulta ou como travessura pura, e por isso foi repreendida pela avó e posta para fora da biblioteca de casa.

Como na imagem do quadro, sua transgressão foi tentar chegar a lugares mais altos do que realmente deveria ambicionar chegar em suas condições, tentar desafiar sua desvantagem na tentativa de chegar mais perto da luz – literal ou figurada.

(dado o simbolismo por trás das chamas, provavelmente figurado num todo)

Deborah passará a vida nesse estado, cruzando a linha da audácia e bom senso duas vezes ao buscar respostas às suas perguntas ou ao tentar ser uma pessoa melhor. Como seu pai fez, de certo modo. Viveu sob refúgio na audácia, ele – em dado momento parecia que, dadas as regras de seu clã, ele estava se esforçando para cumprir uma cartela de bingo do deserdado.

A imagem descrita por Edgar, no entanto, também tem um motivo de ser.

Andrew teria uma infância saudável a partir dali, e pouco veria a avó ou a prima – todos sabiam bem os riscos nisso e os minimizavam tanto quanto podiam. Talvez não corresse tanto ou fosse tão ativo em geral quanto a prima, mas sua infância foi igual à de todos os outros meninos sangue-puros de seu meio. Estaria destinado a ser um patriarca, expressão máxima do poder de uma elite decadente, ele, até já começava a adquirir os ranços de sua posição conforme crescia. Seguiria tudo nos planos dos homens mais antigos de seu clã se não fosse por um detalhe em sua biografia: adoecer sem qualquer explicação e perder a capacidade de fazer muitas coisas que fariam parte disso que lhe seria esperado.

Inclusive jogar quadribol.

Não será a primeira preocupação dos seus familiares ascendentes, essa, mas saber o básico do quadribol definitivamente é uma parte importante do estilo de vida bruxo – ignora-se a importância disso, mas é. Socialmente, fisicamente, o assunto se impõe – é abordada nas reuniões informais e, ocasionalmente, uma ferramenta que une até tipos de bruxos que fora da arquibancada estariam matando uns aos outros.

Andrew, por razões práticas, nunca conseguirá ir além do que o ensinado pelo pai que já nem era tão bom nisso. Terá de recorrer a outros recursos para tentar se sentir menos socialmente deslocado, e não só em sua vida escolar.

Deborah, apesar de não ter pensado nesse caráter do quadribol a princípio e de ter sido expressamente proibida por sua mãe de pensar em jogar, se revelará uma excelente beater. Curta será sua carreira na posição, um ano e meio, mas útil será a habilidade. Intimidará fisicamente ainda mais àqueles que não simpatizam com ela, fortalecerá suas relações intracasa, usará o assunto como carta na manga contra silêncios desagradáveis até quando Hogwarts for uma página agridoce do passado.

Ambas as pinturas dizem menos sobre os seus receptores do que dizem sobre terceiros.

Ambas as pinturas dizem mais que parecem a princípio, como todas as outras até aqui.

E todas as pinturas citadas em tal condensação de quase duas décadas de vida são mais representações das questões a serem resolvidas pelas pessoas que retratam do que cenas do futuro vistas por uma artista excêntrica.


Notas Finais


Cito Andrew e Andrew na verdade é mais pertencente a outra pessoa, mas criamos essa família juntos, então tudo bem citar.

E Elizabeth tirou o sobrenome novo de um livro de Jane Austen porque é isso que ela faz.


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