ah... insistir na vida
algo assim
como sorrir
sobre o leite derramado
e se fartar
do sabor do doce
que teria sido
Nydia Bonetti
13; não sorria para mim
Mas Mingyu era um homem de manias.
Gostava que seus sapatos ficassem alinhados a cama sempre que possível. Na sua cama tinha sempre um jogo de lençóis, e não peças separadas. Seus travesseiros tinham o mesmo tamanho, fazendo da cama uma simetria quase perfeita. Tinha sempre um copo de água no criado mudo do lado esquerdo da cama, que era o lado onde se sentava para depois poder se deitar. Levantava-se pelo lado contrário, do lado da janela, e assim que acordava abria as cortinas. Gostava de fazer um ovo pela manhã e tomava o café enquanto corria para o lado de fora da casa.
E ele achava que mesmo que Wonwoo tivesse vindo passar um dia ali, sua rotina não mudaria.
Wonwoo não gostava de manias. Ele não tinha rotina, fazia tudo quando queria e se queria, e raramente se dava ao trabalho de fazer qualquer coisa que não tivesse vontade de fazer. Passar um dia na casa de Mingyu foi uma rara exceção a essa regra, que segundo o mais alto lhe era obrigatória, tendo em vista que Mingyu passara alguns dias com ele. Wonwoo entendeu, naquele dia, que a voluntariedade do mais novo para passar dias na rua não foi tão voluntária assim, e na verdade exigia bastante em troca.
E o mais velho, desacostumado com as grades que lhe cercavam, parecia querer fugir a todo o momento. Mingyu pensou em usar uma coleira antiga nele apenas de brincadeira, mas abandonou a ideia assim que percebeu que talvez Wonwoo não conseguisse levar qualquer coisa que se relacionasse com sua própria liberdade na brincadeira. Mas apesar de ser difícil para ele, acabou aceitando a estadia; desde que deixassem a porta destrancada. Seoul não era tão violenta e assaltos não eram tão comuns, mas a ideia incomodava um pouco Mingyu. Mas, se fosse essa a prerrogativa exigida para que Wonwoo ficasse, ele o faria.
Foi difícil em especial fazer com que ele entrasse no prédio. Wonwoo estancou em frente às grades altas de metal como se encarasse um passado não tão distante. Foram-se pelo menos quinze minutos explicando que sim, ele poderia entrar e sair a hora que quisesse, para que Wonwoo tomasse coragem e entrasse no pequeno condomínio cercado. Também foi difícil para ele conter o ímpeto de sair correndo dali quando Mingyu ficou parado bem a frente do portão para receber a pizza que haviam pedido. Wonwoo olhou Mingyu e entendeu, em instantes, que ele era como as grades ali.
Comeram em silêncio vendo um filme qualquer na televisão. Logo de início foi complicado agradar ambos os gostos ali. Wonwoo não via filmes com frequência, mas lia muitos livros; não queria besteiras românticas inspiradas nos dramas de Nicholas Sparks, nem tampouco qualquer longa metragem que se inspirasse em livros. Mingyu não gostava de terror ou filmes de ação, então estes também acabaram sendo descartados. Levou uma pizza e meia para que decidissem por um filme que, finalmente, deixasse os dois felizes. O Cidadão Kane, de Orson Welles.
O filme era em preto e branco e pouco entendiam da história, mas era interessante. Pelo menos na primeira metade, a que conseguiram ficar acordados para ver. Durante o tempo em que ficaram acordados, o resto da segunda pizza foi embora junto com dois pacotes de pipoca de micro-ondas. Mingyu comia demais e Wonwoo era magro demais, motivos estes que levaram Mingyu a se encher de comida e fazer o mesmo com o outro, que passaria a noite em claro, sendo um dos motivos para isso o estômago que parecia querer sair pela boca.
O outro motivo era um pouco mais complicado.
Wonwoo acordou perto da meia noite. Tinham colocado o filme as oito, o que significava que tinham dormido um pouco mais do que esperava. Mas o que o surpreendeu mais não foi o horário no relógio. Ele acordou encostado em Mingyu, que também dormia recostado em um dos braços do sofá. Estava quase encolhido entre as pernas do outro, com a cabeça apoiada em seu ombro e com os braços de Mingyu a sua volta. Era bom, mas sufocante. Esgueirou-se para longe do outro e foi em direção ao banheiro, mas não sem antes passar pelo quarto de Mingyu e pegar uma muda de roupas emprestada.
Mas quase desistiu; não sabia que raio de tecnologia era aquela para abrir o chuveiro, mas simplesmente não conseguia decifrá-la. Já estava prestes a quebrar as portas de vidro que lhe cercavam quando ouviu uma batida simples na porta que logo em seguida se abriu.
— O do meio. Puxa para frente e depois vira um pouco pra esquerda, a água vai sair quente. Se estiver quente demais, vira um pouco para a direita. — a voz de Mingyu era como no dia que o reencontrou: baixa, um pouco lenta demais, e definitivamente cansada.
Fez o que ele disse, e o banho foi agradável. Mais do que no abrigo, aonde a água ia do quente demais para a fria demais em instantes e era impossível de regular. Foi lento também, já que não teria de pagar nada por aquela água e sabia que Mingyu não se importaria. Lavou a cabeça com xampu pela primeira vez em anos, mas que pouco fez pela textura áspera dos fios. Trocar-se-ia com calma, colocando as roupas largas e macias que pegara emprestado; um conjunto de moletom cinza claro, pareado com meias e camiseta de cor branca.
Não disse palavra alguma ao voltar para a companhia de Mingyu, e o viu levantar e se dirigir ao banheiro também. Não fechou a porta; talvez a intimidade fosse um pouco demais para Wonwoo, que ainda estava se acostumando com aquilo. Começou há alguns meses, com um beijo meio impensado o qual Wonwoo correspondera com certo desgosto. Beijo tinha gosto de prisão, segundo ele. Mas passaram rapidamente de selares simples a longas noites juntos, e o mais velho não sabia lidar mito bem com isso. Por melhor que fosse, e mesmo que fossem os de Mingyu, beijo continuava tendo gosto de prisão. E se apenas um beijo tinha um gosto tão intragável para ele, acordar de braços entrelaçados com Mingyu e sem suas roupas era nauseante, mesmo que isso não o impedisse de continuar a acordar nessa situação.
Mas Mingyu era um homem de manias, e ele acordava cedo no dia seguinte para caminhar. Estava cansado, cansado demais para prestar atenção em Wonwoo ou nas sobrancelhas franzidas do outro, agora deitado ao seu lado, que estava visivelmente desconfortável. E talvez até cansado demais para prestar atenção no que dizia.
Virou-se em direção ao outro e colocou um dos braços sobre seu peito. Seus rostos estavam próximos, mas não próximos demais. Wonwoo encarava o teto, os olhos fixos na luminária, enquanto Mingyu tinha o rosto virado para o mais velho, mas os olhos já fechados. De voz já embargada, disse quase inaudível: — Eu te amo, Wonwoo.
Wonwoo não sabia direito o que era amor. Não sabia se era coisa boa ou ruim, ou se ele já havia realmente sentido aquilo. Não sabia se o amor era rosa claro, vermelho, ou branco. Se era doce, amargo, azedo, ou salgado. Mas sabia de uma coisa: se o amor tivesse forma, seria a de uma cela.
E Wonwoo não gostava de celas.
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