Difícil sobreviver às tristezas miúdas que compõem o dia a dia. Para as grandes dores, sempre há as comoções nacionais, o cortejo pomposo, a multidão solidária nos abraçando com sua força de onda. E quem me salva dessa marolinha constante e tão aguda de aflições pequenas, quase invisíveis? Chorar vira prova de fraqueza; reclamar, atitude de pessimistas. A solução é se arrastar pela orla, com falso sorriso na cara e o coração quebrado no peito.
Carina de Luca
14; 04:57am
Quando Mingyu acordou, Wonwoo não estava mais lá.
Levou alguns minutos chamando seu nome pelos cômodos para se certificar disso; a certeza ficou maior quando percebeu a porta escancarada e uma mensagem curta num pedaço de papel sob a mesa da sala. Eram raros os momentos nos quais Mingyu se deparava com a caligrafia relaxada do mais velho, e especialmente raros os que ele realmente conseguia ler o que o outro havia escrito.
Eu tive que ir, era tudo o que estava escrito. Mingyu acabou rindo da maneira que o verbo foi colocado, como se fosse uma necessidade intrínseca de Wonwoo. Acabou fechando a porta, voltando aos relatórios que tinha que preencher para o hospital e aos afazeres comuns do dia-a-dia pouco agitado.
Passou o resto da semana assim. Entre pilhas de folhas de papel e plantões exaustivos que acabavam durando muito mais do que pretendia. Não tinha muitas preocupações fora do trabalho nem ocupou a cabeça demais com qualquer outra coisa que não fosse o som da lapiseira afiada arranhando o papel. E acabou passando mais uma semana assim.
Foram duas, três, quatro, cinco.
Na sexta semana seguida, ele percebeu.
Um par de mãos sujas segurou o uniforme azulado com firmeza exatamente as quatro e cinquenta e sete da manhã. Estava quente, a cor opaca do uniforme já era manchada pelo suor e o relógio parecia ter parado de bater. Conseguia sentir a superfície áspera da mão que lhe segurava mesmo que esta estivesse por cima do tecido; talvez fossem tão ásperas que lhe incomodassem um pouco até mesmo nesse toque indireto. As unhas irregulares pareciam rasgar o algodão da camisa, numa força quase brutal.
O hospital estava vazio; teve certeza quando se virou para encarar o par de olhos que saltavam ao rosto do senhor, sujo o suficiente para que não fosse possível nem ao menos ver a pele que se escondia debaixo da camada escura de poeira encrustada nos poros. Ele estava próximo, a respiração era ofegante e, mesmo que fosse mais baixo que si – o que podia afirmar estando de pé – ele conseguia ser muito mais intimidante.
Não só ouvia a respiração como podia senti-la. O cheio era forte e amargo e parecia penetrar os pulmões de Mingyu como uma facada, quase o fazendo tossir. Era quatro e cinquenta e sete da manhã sabia disso por dois motivo: primeiro porque seu turno acabava em três minutos, e segundo porque enquanto lutava para não puxar mais uma vez o ar, olhava o relógio na parede atrás do homem ali; era, realmente, quatro e cinquenta e sete da manhã, e o relógio parecia ter parado.
Tornar-se-ia quase impossível respirar ali; o cheiro era de álcool, cigarro e lixo, odores com as quais havia quase se acostumado no tempo que passara com Wonwoo.
Wonwoo. Ele percebeu.
O homem ofegou uma última vez, antes de elevar a voz com Mingyu e começar a destilar palavras com pouco ou quase nenhum sentido no meio do salão vazio. Não chamava a atenção de ninguém, já que não tinha, realmente, qualquer pessoa sequer Mingyu para ouvir o que o homem dizia; mas, de qualquer forma, Mingyu parecia não prestar atenção nele. O dedo indicador a poucos centímetros de seu rosto ou a voz estridente que ressoava pelas paredes brancas dali pouco lhe importavam, e sequer faziam sentido para ele, mesmo que as ouvisse agora com clareza.
Wonwoo teve que ir.
E Wonwoo não estava mais ali. Não estava mais lá ou ali também.
Wonwoo simplesmente não estava em lugar algum.
Não era um de seus sumiços comuns, onde ele se perdia no meio das multidões e voltava alguns dias depois com um sorriso cortando o rosto e os bolsos cheios de tralhas. Algo havia assustado Wonwoo o suficiente para que, pela primeira vez em um bom tempo, ele fugisse novamente de casa. E, ao menos dessa vez, Mingyu assumia a culpa.
Não podia nem se desculpar com o homem de idade que gritava acusações enquanto perguntava sobre o paradeiro de Wonwoo. Não podia se desculpar com ele enquanto dois seguranças armados o arrastaram a força para fora do hospital, enquanto Mingyu ainda encarava o relógio que marcava, com precisão, quatro e cinquenta e sete. Não podia se desculpar com Wonwoo e pedir para que ele voltasse pois, no fim, eram quatro e cinquenta e sete da manhã e Wonwoo teve que ir.
– Você está bem?
A voz era de um dos seguranças, num tom de falsa preocupação que fez Mingyu sorrir amarelo e abanar as mãos. Não viu os dois voltando para seu posto, nem quando algumas enfermeiras novas vinham espiar ele, curiosas com a gritaria. Não viu o sol raiar, o caminho de volta pra casa ou os colegas de trabalho. Ele viu apenas o relógio, os dois ponteiros parados naquela posição que agora lhe parecia tão familiar.
Mingyu estava preso àquela vida que chamava de sua. Continuou indo e vindo de e para o hospital, falsificando expressões felizes para não ter que aguentar qualquer pessoa que viesse lhe encher. Uma hora ou outra, fingir se tornaria natural para ele.
Wonwoo era bicho de mato. Desde pequeno pulava as grades do berço, os muros de casa e as barreiras do que se chama de liberdade. Estar livre era muito mais físico do que mental; de nada adiantava pensar fora da caixa e estar dentro da caixa. Fugiu definitivamente de casa aos dezesseis anos de idade e desde então chamou de casa, novamente, apenas a grande capital cheia de mistérios.
Wonwoo fugiu mais uma vez. Dessa vez, não fugiu de casa. Fugiu do próprio coração.
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