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História Cidade de Vidro - Ressurgimento - Esfera de vidro


Escrita por: BRossi

Capítulo 14 - Esfera de vidro



Eu não consigo, nem mesmo quero pensar. Quando chego na minha casa, abro a porta mecanicamente e subo para o meu quarto sem nem ligar uma luz sequer. Eu sei que eu que estou caminhando devagar, mas minha mente enevoada me diz que ainda faltam diversos metros até eu finalmente chegar à minha cama.

– Jacob! – eu ouço atrás de mim. Meus músculos reagem à voz involuntariamente, e eu me viro em direção a ela. Solto um suspiro aliviado. Antes que eu perceba, Will está me abraçando com toda sua força. Eu nem questiono a maneira como ele entrou, nem por que resolveu se esconder em minha casa, que é, de longe, o lugar menos seguro neste momento. Eu simplesmente o abraço e deixo que seu calor me envolva.

Atrás dele está Sophitia, com a aparência tão ruim quanto mais cedo. Pelo menos ela parece mais calma. “Obrigado”, eu murmuro. Ela sorri e se aproxima, e eu dou minha mão a ela, ainda abraçando Wilhelm. Mas seu sorriso não dura muito. logo seus olhos retornam à tristeza de ver Niclauss sendo assassinado diante de seus olhos, e ela apoia sua cabeça no ombro de Will. Eu faço o mesmo, no ombro oposto.

Ficamos assim, os três parados e substancialmente próximos, tempo o suficiente para eu memorizar o corpo de Will e o cheiro de Sophitia. Eu quase adormeço, mesmo em pé. e quando eu finalmente começo a dar sinais de que não aguento mais ficar em pé, nós três rumamos ao quarto do meu pai. Eu puxo o colchão da minha cama para o quarto dele, e o colchão dele para o chão. Com os ataques aéreos acontecendo, é seguro dizer que meu pai não voltará para casa por hoje. Por isso, funcionando completamente superficialmente, eu trago cobertores a mais e me emaranho com Will, ao lado de Sophitia, e durmo tranquilamente. Pela manhã eu pensarei em tudo, processarei as informações e os acontecimentos e chorarei aquilo que precisar chorar. Por ora, vou apenas descansar, e deixar que Wilhelm me aninhe.

Eu abro os olhos apenas quando a manhã já está avançada. A neve parou de cair, mas o frio ainda é o mesmo, assim como o calor emanando da pele de Will. Dormindo, ele parece o garoto que eu conheci há meses. Um garoto sem cicatrizes profundas e uma dor que o consome lentamente. Eu consigo ver claramente o motivo de Noam ter se apaixonado por Will. Quando despido da carranca de seriedade que ele carrega consigo, Wilhelm é impossivelmente bonito. Seu rosto é pacífico e de feições angulosas. Se eu não os conhecesse, diria que Niclauss e ele são irmãos. Infelizmente eu conheço a história toda. E infelizmente Niclauss está morto.

Tento reorganizar meus pensamentos, e afasto Niclauss do pensamento. Não posso chorar agora. Porque se eu começar, não sei se terei forças para parar.

Eu matei Kornelius. Isso é um fato. Ao mesmo tempo que é um alívio saber que ele não voltará mais para nos atormentar, também é assustador pensar que fui eu quem causou sua morte. Será que vão fazer uma investigação e descobrir que eu o matei? Deixei a arma na cena do crime, numa poça d’água formada pelo gelo derretido pelo calor do metal. Será que a neve apagou minhas impressões? Não sei dizer.

Ainda deitado, eu tento manter minha respiração sob controle.  Eu matei uma pessoa. Uma pessoa horrível, que não merecia viver, mas ainda assim uma pessoa. Ok, calma. Consigo lidar com isso. Ou talvez não. A culpa começa a se instalar em mim rapidamente, não se importando com o quanto eu tente mantê-la no fundo da minha mente. E o motivo é óbvio: quando você, premeditadamente ou por acidente, mata um inseto, você não se sente minimante mal com isso, porque ele provavelmente nem sabe o que o atingiu; quando um acidente enorme acontece e você acaba matando um animal pequeno, você se culpa por aqui, por ter tirado uma vida tão pura e inocente, mesmo que por descuido; mas quando você, por livre e espontânea vontade, tira a vida de um ser humano, de alguém semelhante a você, com desejos e necessidades, com sonhos e esperanças, e que sente prazer e dor, a história é outra. Saber que essa pessoa nunca mais vai acordar, nunca mais vai caminhar pela rua, e que sua família nunca mais o verá rir, e que a pessoa que o amava nunca mais vai poder beijá-lo...

Bano o sentimento para longe. Não posso me esquecer por um momento que Kornelius fez isso comigo também, e com a família de Noam, e com Wilhelm, e comigo, e ainda tentou fazer o mesmo com meu pai. Mata-lo não deveria me fazer sentir errado.

Não obstante, meu assunto sobre Kornelius ainda não acabou. E quanto àquilo que Kornelius disse, sobre meu pai? Claro que ele iria ficar de luto caso eu houvesse morrido na noite passada, mas e com respeito ao Oponente? Kornelius relacionou meu pai a ele, dizendo que ele – o Oponente – perderia em breve, porque seu colaborador principal estaria incapacitado de fornecer informações vantajosas a eles. Isso significaria que o Oponente perderia sua dianteira perante o Exército alemão porque, dizendo o óbvio, aquele que providencia informações para eles provavelmente os informa sobre estratégias de ataque. E meu pai é Tenente-general. Estrategista. Isso, é claro, partindo-se do pressuposto de que é meu pai quem fornece informações ao Oponente.

Afasto a ideia. É um absurdo. Meu pai é um idiota chauvinista. Como ele poderia estar mancomunado com o Oponente?

Começo a ficar confuso e resolvo me levantar. Agora que estou descansado, começo a perceber as dores em meu corpo – principalmente no joelho que eu machuquei na explosão, que agora parece ter acontecido a um milhão de anos – e a fome em meu estômago. Saio da nossa cama improvisada, deixando Will e Sophie dormindo. desço as escadas e vou até a cozinha, onde começo a preparar o frühstück – que significa café-da-manhã em alemão. Há würste – equivalente a salsichas – na geladeira, e eu as fatio e coloco na frigideira, juntamente com pão preto e salame. Normalmente eu não frito tudo que como, mas como está inacreditavelmente frio e ainda está nevando, decido que a prioridade é juntar calorias para enfrentar o gelo. Passo café e deixo de lado, enquanto arrumo uma bandeja grande. Nunca comi nada na cama, mas vou abrir uma exceção hoje. Afinal, não é todo dia que você se vê livre um inimigo tão ameaçador quanto Kornelius.

Estou totalmente acostumado a fazer meu próprio café-da-manhã – e almoço e jantar, e às vezes até mesmo para o meu pai –, mas ainda sou regrado quanto à minha vida. mesmo com todos os eventos recentes, até ontem eu vivia minha vida normalmente. Até que eu me acostume a toda essa situação, continuarei estranhando minhas próprias atitudes.

Mas talvez eu nunca me acostume, não é? Porque, por mais que eu sinta um alívio tremendo, e até certo orgulho de mim mesmo, não posso fingir não sentir o enorme vazio em meu peito deixado por Niclauss. Se eu me concentro, consigo fingir não sentir a dor rasgando meu corpo como uma tesoura enferrujada. Se eu me obrigo a manter a mente ocupada, não me lembro da cena dele baleado no chão daquele bunker na área comercial. Se eu continuar com minha vida e tentar não me lembrar demais dele, talvez eu consiga viver sem ele.

Subo as escadas e entro no quarto do meu pai. Deixo a bandeja cheia de alimentos defumados e apetitosos sobre uma mesa vazia e acordo Will e Sophitia. Sophitia se levanta rapidamente, com os cabelos despenteados e os olhos cheios de olheiras. Eu sorrio, apenas. Will reluta um pouco em levantar, então eu deito ao lado dele e começo a sacudi-lo suavemente. Digo a Sophitia que há escovas-de-dentes extras no banheiro, e ela sai do quarto do meu pai, em parte para fazer sua higiene matinal, em parte para nos dar privacidade.

Beijo a ponta do nariz de Wilhelm, depois o espaço entre suas sobrancelhas, e então sua testa. Quando ele finalmente abre os olhos, eu encosto meus lábios nos dele. Ele fecha os olhos novamente por um momento, então volta a abri-los com um lindo sorriso. Eu o beijo novamente.

Então seus olhos ficam subitamente tristes. Ele se vira, de barriga para cima, e não me olha mais nos olhos. eu me apoio nos cotovelos para poder olhar para ele, mas ele vira o rosto.

– Isso é...

– Shh – eu o interrompo. – Sem palavras. Não pense demais. Não fale nada. Vamos apenas nos recuperar por hoje.

Ele então olha para mim. a tristeza ainda está em seus olhos, mas ainda assim ele sorri.

Assim que Sophitia volta, eu sirvo o frühstück, e nós comemos em silêncio, ainda sentados na cama. Quando terminamos, Sophitia se oferece para levar tudo para baixo e lavar as louças. Quando ele retorna, trocamos poucas palavras.

Assim ficamos durante todo o dia. Procuro um baralho nas minhas coisas, e, ainda debaixo de cobertas e bebericando chá, jogando jogos complexos ensinados por Sophitia e não falando sobre nada sério. Não tocamos no assunto “Niclauss”, nem falamos sobre tudo o que aconteceu ontem. Pelo menos por hoje, quero fingir que o dia de ontem não existiu. E durante todo o dia, nós apenas relaxamos e nos recuperamos fisicamente, e consolamos uns aos outros quando a tristeza é impossível de ser contida.

Meu pai não retorna para casa durante o dia inteiro, como eu imaginava. Deve ter dormido em sua sala no Quartel, debruçado sobre os papeis e xícaras de café. Por algum motivo que eu não compreendo bem, sinto saudade dele, e fico preocupado com ele. É claro que é ridículo me sentir assim, porque o trabalho dele é absurdamente perigoso, desde sempre, e eu já havia me acostumado com o risco de ele não voltar mais para casa. Não obstante, até alguns dias atrás, não havia a ameaça de uma guerra ser travada contra o Oponente pairando sobre nossas cabeças. Talvez esse seja o motivo de minha inquietação. Mentalmente peço a ele que fique a salvo, pelo menos por enquanto.

Quando a noite chega e nossos olhos começam a pesar de sono, eu permito que Will se aninhe em meu peito e o sobraço. Durmo de mãos dadas com Sophitia, porque acabei estava acariciando sua pele antes de dormir. Não sei desde quando passei a ter essa intimidade com ela, mas gosto disso. Minha relação com Sophitia evoluiu muito devagar, mas finalmente chegamos a algum lugar.

Mesmo que minha vida jamais volte a ser igual, talvez o futuro não seja tão ruim quanto eu penso.

Por que não consigo me convencer disso?

 

***


– Nós precisamos chamar a polícia – digo. É algum momento entre o meio-dia e as duas horas da tarde do dia seguinte, e nós começamos a arrumar minha casa, porque depois daqui rumaremos ao hospital, e depois à casa de Wilhelm. De acordo com Sophitia, seus pais não se preocupam muito com o tempo que ela passa fora de casa, o que pode ser nulificado caso eles vejam o nosso estado: cobertos de escoriações e concussões, com um joelho ferido e um ouvido surdo.

Neste momento, porém, minha prioridade é o que aconteceu anteontem.

– O quê? – pergunta Wilhelm, largando o cobertor dobrado pela metade de volta sobre a cama.

– É impossível que a polícia já não saiba sobre o corpo do Kornelius naquela rua, porque, em primeiro lugar, ele estava no meio da rua, e em segundo, o disparo com certeza acordou os vizinhos. Mas quando ao corpo... – Estremeço e não consigo dizer a palavra. – No porão – continuo –, na área industrial, com certeza ninguém sabe sobre ele. E nós temos de fazer alguma coisa. Porque não é justo com... – Novamente eu não consigo dizer o nome dele, porque um arrepio frio e doloroso percorre minha espinha, juntamente com uma dor aguda em meu peito. – ele deixá-lo daquele jeito.

– Você não acha que a polícia vai suspeitar de nada? – pergunta Sophitia. – Primeiro um corpo baleado no meio da rua, e depois outro corpo, também baleado, num local distante, no mesmo dia? Porque você sabe que há maneiras de determinar há quanto tempo alguém está morto. Além disso, nossas impressões estão lá, e eles vão ligar isso a nós, e com isso vão associar tudo a você, e...

– Sophie! – eu chamo, interrompendo-a. – Calma. Em primeiro lugar, eu duvido que eles façam tantas suposições quanto você. Todas as atenções estão voltadas para os ataques aéreos nesse momento, e para quem quer que possa estar os causando. Além disso, a probabilidade de o incidente com Kornelius ser associado a mim ou ao incidente... anterior, é mínima, porque não há qualquer ligação plausível. É só...

Eu desmorono, sem nem mesmo saber que isso era possível. Porque só então eu percebo o peso da morte de Niclauss pressionando meus ombros, me levando ao encontro do solo. Eu me sento na cama, incapacitado, e coloco o rosto entre as mãos. Não porque eu quero esconder minha tristeza deles, mas sim do resto do mundo. Eu os culpo, a todas as pessoas, por sua covardia e sua fraqueza em se rebelar e lutarem por si mesmas e pelos outros, e pela morte de Niclauss. Eu os culpo e os odeio, e não houve um momento em que eu quisesse mais desistir de toda essa ideia de rebelião que agora, quando a percepção de que eu sou um dos poucos a realmente lutar pela liberdade finalmente chegou ao nível de consciência em mim.

Tanto Sophitia quando Wilhelm correm para me amparar, me abraçando e dizendo palavras de consolo, mas no fundo eles não podem me ajudar. É um fardo muito grande para meus ombros fracos aguentarem.

Eu sinto saudade dele, sinto muitíssima saudade dele. É muito mais do que eu posso suportar, porque eu o amo demais, e foi a ele que entreguei meu coração, e foi justamente ele quem foi tirado de mim. Quando, há meses atrás, eu senti medo por Niclauss e por mim, jamais imaginei que nossa história pudesse ter um fim tão triste quanto esse. Eu sentia medo, de fato, mas não medo de morrer, e sim de uma separação iminente por culpa desse próprio medo. E que ironia essa, a do destino: nos unir até o último instante, apenas para concluir nossa trama com tragédia.

E o pior de tudo é pensar que, na verdade, nossa história não acabou. Porque eu ainda estou vivo para poder reviver tudo isso, e sentir essa saudade esmagadora e essa dor agonizante.

– Eu devo isso a ele – eu digo, em meio a um soluço, antes de começar a chorar. As lágrimas são frias como a dor incisiva em meu coração, e incessantes, tal como ela. Eu choro de uma maneira que não me lembro de ter chorado antes, soluçando e tremendo, e ficando sem fôlego.

Eu devo a Niclauss muito mais que isso. Devo a ele minha vida, e minha existência. Foi a chegada de Niclauss à minha vida que abriu portas para mim. Foram seu sorriso e sua luz que me mostraram que eu podia amar de novo, e que deveria amar com a alma, acima de tudo. Foi nele que eu encontrei a forma mais pura de amor, e também o mais intenso desejo. E por ele eu escolhi lutar.

Então me diga: como eu devo seguir em frente, como devo continuar a respirar e viver, quando não há a perspectiva de vê-lo novamente? Como eu posso conviver com a dor?

Mesmo o abraço de Wilhelm não parece suficiente para sanar essa dor. Nem saber que agora eu e Sophitia somos amigos efetivamente.

Nem mesmo se o Oponente e a Sublevação obtiverem triunfo sobre o Exército, nem mesmo se o mundo se tornar o lugar perfeito para todos. Sempre haverá um enorme pedaço de mim que estará em agonia, e a presença de Niclauss jamais retornará.

 

***


A noite cai novamente. Estar no quarto de Wilhelm é, na verdade, um alívio, porque as lembranças que minha própria casa me causam são dolorosas demais para aguentar.

Eu começo a adormecer enroscado nele, e repito “Está tudo bem, vai ficar tudo bem” tantas vezes para mim mesmo que eu realmente começo a acreditar nisso.

Meu joelho estava apenas contundido, mas nada grave. Foi imobilizado e eu peguei licença para ficar em casa durante alguns dias. Quanto aos hematomas e escoriações, bem, como seus próprios nomes dizem, não passam disso. É uma grande sorte eu ainda estar inteiro depois de um dia tão cheio de ação quanto anteontem. O engraçado é que a sorte só resolveu me prestigiar agora. Eu preferia estar todo quebrado, mas ter Niclauss ao meu lado.

Pare com isso, ordeno a mim mesmo. Você tem sorte de ainda estar vivo, e de Wilhelm e Sophitia estarem bem. Dizer isso atenua a dor da verdade por trás.

Entretanto, a sorte ainda pode ser uma injusta filha da mãe. Depois de uma série de testes e exames, foi descoberto que Sophitia realmente ficou surda do ouvido direito. Os médicos disseram que talvez pudesse ter havido salvação para ele se ela houvesse ido diretamente ao hospital após o trauma, mas que agora era tarde. Enquanto nos contava, Sophitia parecia estranhamente calma e indiferente, mas sei que, no fundo, ela estava arrasada. No fim, ela realmente tinha esperança de salvar a audição. Eu não soube como reagir. Não que ela tenha me dado tempo para isso, é claro.

E, pela primeira vez em muito tempo, eu vi Sophitia por um outro ângulo: uma garota triste e furiosa pela morte da menina que amava, que provavelmente ainda chora sua perda durante a noite, e que sente medos e tem esperanças como eu. Não apenas alguém que eu conheço, mas alguém como eu. E eu me sinto mal por tudo que ela está tendo de passar.

Depois do hospital, Sophitia seguiu para casa, mesmo que eu tenha pedido a ela que ficasse conosco, pelo menos pelo dia de hoje. Mesmo assim, ela foi. E eu não fiz nada para impedi-la.

E agora, com o rosto apoiado no peito de Wilhelm, eu tento não pensar em muita coisa. Apenas me concentro no calor e na respiração dele. Ele é tão diferente de Niclauss, de tantas maneiras diferentes, que é bobagem enumerar. De alguma forma, eu gosto disso. Eu gosto dele, no fim das contas. Não como um substituto para Niclauss, mas como alguém especial e querido. Só o tempo dirá o que esse sentimento significa.

Beijo as pontas dos dedos de Wilhelm. Ele já está dormindo há algum tempo, então nem tem como perceber o gesto. Ele tem um sabor diferente de todos os que já provei – Victoria e Niclauss, basicamente, sem contar alguns romances passageiros de adolescência –, e com certeza é única pessoa com quem cheguei a ter certo nível de intimidade em tão pouco tempo. E, novamente, eu não acredito que isso seja uma coisa ruim. É apenas diferente.

E, para todos os efeitos, é bom.

Quando o dia amanhece, eu me levanto da cama de Wil silenciosamente. Ele ainda dorme, e eu tomo cuidado para que ele continue assim. Hoje o dia não deveria ser diferente de dois dias atrás, quando nada disso estava acontecendo, então estou tentando me esforçar para que ele fique assim. Isso, é claro, se eu conseguir disfarçar a dor.

Sabe-se lá se Niclauss terá um funeral. A polícia foi avisada sobre seu corpo no bunker, então é uma questão de tempo até eles descobrirem que seus pais estão mortos – aliás, provavelmente já descobriram. Não haverá família para reclamar seu corpo, então a probabilidade é que ele seja enterrado como indigente, e eu nunca saberei onde. Eu poderia ter pedido para saber onde ele seria enterrado quando liguei, mas não o fiz por dois motivos principais: um, eu liguei de um orelhão, anonimamente, então não tinha como dar informações pessoas como motivo para querer saber essa informação e; dois, eu não realmente quero saber.

Talvez assim seja melhor. É perigoso demais ficar remoendo e revivendo a sensação da perda de Niclauss. Se eu nunca souber onde ele está enterrado, eu não precisarei visitá-lo, e não precisarei sentir sua falta.

Sei que é extremamente egoísta de minha parte pensar assim, e sei que é nojento até. Mas essa é a única maneira de proteger meu coração. Porque, se ele se partir novamente, eu não conseguirei recuperá-lo.

Beijo o rodo do nariz de Will e começo a me retirar. Vou voltar para casa agora, tomar banho e me alimentar, e então irei à escola. Durante os últimos dias as coisas estiveram tão estranhas e loucas que eu mal pensei na escola e em minha vida normal. Claro que minha vida jamais será normal novamente, mas quem sabe se eu fingir, eu não me sinta menos desesperançado?

Eu volto para casa com roupas de menos para enfrentar o frio. A neve voltou a cair, desta vez com mais força, e o céu está mais escuro que no começo do inverno – que foi há poucos dias.  A sensação de claustrofobia é líquida, mesmo que eu já tenha me acostumado a ela. O cheiro na rua onde moro ainda é de pão fresco e chuva, mas eu de forma alguma me sinto como me sentia no começo do outono. A tensão que eu sentia, como se uma bomba estivesse prestes a explodir, não se faz presente, mas em seu lugar há o vazio da morte e o medo de uma iminente guerra. Porque, verdade seja dita, eu não descarto essa possibilidade em momento algum. E se por um lado a morte de uma única pessoa significaria segurança para meus amigos e para mim, por outro, a ameaça de uma guerra significa proteção nenhuma, nem mesmo para mim, sendo filho de um Tenente-general.

Ao perceber que estou começando pensando demais nas coisas, eu me obrigo a me distrair. Desenho formas no vidro embaçado do espelho, dentro do banheiro, e não mal me dou conta de que desenhei três elos de uma corrente. E que o elo do meio está quebrado.

Estou prestes a sair de casa, após estar devidamente alimentado e vestido, e terminando de arrumar meu quarto, quando reparo uma movimentação estranha. Ouço passos pesados no andar de baixo, rápidos. Imediatamente fico tenso. Quem quer que seja, está com pressa. Só podem ser policiais.

Eu começo a cogitar saídas. Não há como descer do segundo andar sem ser percebido, ou pelo menos sem quebrar uma perna. A simples ideia de forçar meu joelho machucado me faz desistir disso. A outra opção é tentar me esconder em algum lugar, mas a expectativa de ser encontrado dentro do guarda-roupas tremendo e ridículo como um covarde fere meu orgulho.

Antes mesmo que eu tenha tempo de me decidir ou encontrar outra saída, uma pessoa irrompe no topo das escadas, e vem imediatamente para o meu quarto. Algum lugar da minha mente teme que seja Kornelius, mas isso é ridículo, porque ele está morto! Mesmo assim, quando o Militar conhecido adentra meu quarto, eu fico temeroso. Seu rosto é completamente diferente do de Kornelius porque é parecido com o meu.

– Jacobus, graças a Deus! – exclama meu pai. Ele suspira e se aproxima de mim. O tecido verde de sua roupa está amassado, e seu rosto está encovado, o que me dá a certeza de que ele não tem comido, ou dormido. O balão de preocupação infla dentro de mim. A situação atual está ruim o suficiente para impedir meu pai de suprir suas necessidades básicas. Quando tempo ele vai durar nesse ritmo?

Minha ansiedade é tão grande e focalizada que eu nem vejo meu pai... me abraçando? Eu sinto o aperto dos braços dele ao meu redor, e acabo respondendo minha própria pergunta. Sim, ele está me abraçando, o que é inacreditavelmente raro.

– Onde você estava? Por que você fugiu? – pergunta meu pai, agora apenas tocando meus ombros.

Eu arquejo fortemente, indignado, e, numa atitude totalmente irresponsável, eu empurro meu pai para longe.

– Você só pode estar brincando – digo.

– Do que você está falando?

– Larga mão de ser cínico. Você sabe por que eu resolvi dar uma volta.

– Dar uma volta? – A voz do meu pai ressoa gravemente e carregada de sarcasmo. – Você desapareceu por três dias.

– Sem motivo, né? Agora, que mal lhe pergunte, mas por que parece tão preocupado depois da sua demonstração de desprezo?

– Do que diabos está falando? – ele pergunta, fingindo não saber, mas parecendo genuinamente irritadiço.

– Ah!, fala sério!

– Jacob, não se esqueça de que eu ainda sou seu pai, e isso me dá o direito de quebrar seu braço – informa, calma e deliberadamente. – Só para lembrar.

– Me ameaçar não vai mudar nada, e você sabe.

Meu pai respira fundo.

– Ok, Jacob, antes que eu perca a paciência, por favor, me explique sobre o que você está falando.

Eu fico em silêncio. O gosto do ódio é amargo e rascante, e queima minhas entranhas como um incêndio em folhas secas se espalhando pela floresta. Eu sinto meu coração bombear essa fúria condensada em minhas veias, dominando meus pensamentos e cobrindo meus músculos. Neste momento eu sou um monte de matéria fumegante pronta para queimar tudo o que estiver em meu caminho.

– Podemos começar com sua reação a “Eu estou namorando o filho de Gereon Schneider” – eu digo, entredentes. – Mas, se você preferir, podemos voltar um pouco para a sua negligência a mim durante toda a minha vida, ou talvez pautar a maneira como o Exército tem governado o país – Eu mal percebo, mas estou começando a gritar. – Porque eu, honestamente, não sei qual o problema de vocês todos, apenas sei que não aguento mais essa merda toda que está acontecendo porque pessoas como você tem ideais podres! Por culpa sua, Niclauss está morto! E por culpa sua, nós todos estamos em perigo! Então, pode me ameaçar o quanto quiser, merda, porque não vai mudar nada! Morrer hoje ou morrer amanhã, dá na mesma! Se o Oponente não tem poder para nos impedir de destruir uns aos outros aqui dentro, então, dane-se. Já tá tudo perdido!

Meu pai me escuta silenciosamente, sem dizer ou nada além de me olhar com seriedade. De longe meu pai é mais forte e habilidoso que eu, mas nem seu tamanho me amedronta agora. Porque o eterno fantasma de Niclauss está sussurrando em meu ouvido, e a presença e culpa intermitentes pela morte de Noam falam eloquentemente, e a falta que eu sinto de Victoria é tão dolorosa que me leva de volta ao dia em que ela me entregou o bilhete em que dizia que tinha um segredo para me contar, e todos esses motivos assomados entorpecem meus sentidos e meus sentimentos. Novamente eu sou um poço gelado de tristeza e saudade. Mas dessa vez meu gelo é mortal.

Eu antevejo a briga. Antevejo meu pai vindo para cima de mim, e antevejo eu desviando seu punho com meu antebraço. Antes mesmo que aconteça, vejo meu punho acertando seu queixo. A cabeça de meu pai vai para trás, mas em um segundo ele volta a me encarar, e seu outro punho atinge minhas costelas. Eu não sinto a dor, nem ouço o estalo dos ossos se quebrando. Enquanto ele ainda está puxando a mão, eu o atinjo com meu cotovelo. E antes que ele tenha tempo de se recuperar do golpe, eu puxo meu joelho e atinjo seu estômago. Ele é muito mais forte que eu, e em um piscar de olhos se joga em cima de mim. Minhas costas atingem o chão com a força de um carro descendo uma ladeira a cem quilômetros. Eu perco o fôlego. Meu pai ergue o punho sobre a cabeça, e desfere o golpe que vai me nocautear.

Mas nada disso realmente acontece. Minha respiração sai falhada e eu tremo de nervosismo, mas meu pai continua parado, me encarando, por longos segundos.

– Jacob, você não entende nada – diz ele, em voz baixa, mas com extrema seriedade. – Se pensa que é assim que eu trabalho, vá em frente. Vai ter tempo para refletir enquanto estiver a caminho da Base Norte.

– Base Norte?

– Por isso eu sai do meu posto e vim te procurar. Não há muito tempo. Só na Base Norte você vai estar seguro de verdade, do Exército.

– E por que eu preciso de proteção? Se uma guerra estourar, vou correr perigo onde quer que esteja.

– Jacob, quer parar de ter a visão tão limitada? Será que não consegue enxergar? – Meu pai estreita os olhos, e se aproxima um passo. Ele fala baixo. – O Oponente está aqui dentro, se não percebeu. Em cada coração insatisfeito bate a Sublevação, e cada gota de sangue derramada em prol da causa é também em prol do Oponente. Pode ser que eles não sejam a melhor alternativa, mas com certeza é a que vai nos libertar.

– Pai, do que está falando? – Porque, em primeiro lugar, eu não imaginava que meu pai é capaz de poetizar sobre qualquer coisa. Em segundo, não faz sentido que ele esteja fazendo isso a favor da rebelião. Ele é um General do Exército, deveria estar protegendo o país, defendendo seus princípios.

– Estou dizendo que você tem uma hora, no máximo, para arrumar suas malas, antes que a guerra estoure.

– E como você pode prever isso?

– Eu sei porque a informação é oficial. – Ao ver a confusão em meu rosto, meu pai continua: – Sei porque eu tenho acesso a informações dessa natureza. – Meu queixo lentamente cai. – Sei porque eu sou o informante da Sublevação.



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