1. Spirit Fanfics >
  2. Cidade de Vidro - Ressurgimento >
  3. Cidade de vidro

História Cidade de Vidro - Ressurgimento - Cidade de vidro


Escrita por: BRossi

Notas do Autor


Antes de mais nada, este capítulo não é uma continuação da estória anterior, e sim o texto original. O motivo de esta estória ser "Cidade de Vidro - Ressurgimento", é este texto original. O "Ressurgimento" veio com minha revisita à cidade de vidro de 2014, uma vez que Cidade de Vidro já existia. Esse é um texto que eu sempre gostei, e que passei a ter vontade de reescrever, como você pode ter notado. E fico feliz por tê-lo escrito - duas vezes.
Enfim, deixo você com minha cidade de vidro dividida em sete partes, no qual os personagens são mais inocentes e a trama discorre de maneira mais rápida.

Capítulo 16 - Cidade de vidro


Parte 1: Não Me Deixe Entender


Consequências... Algo em que não pensamos muito antes de as coisas irem por água abaixo. Ou melhor, corda abaixo.

Não sei por que fomos poupados. Eu, principalmente, não merecia. Mas fui. No final, foi eu quem sobreviveu. Eu e Wilhelm. E foi ele quem disse que não suportaria viver sem sua metade. No final, nós dois tivemos que aprender a viver apenas pela metade. Aprendemos a estar somente meio vivos.

Olhando para o céu , eu me lembro de Niclauss. Aposto que Wilhelm também se lembra de Noam.

“Noam significa amizade, ou doçura.”, disse-me ele uma vez. Sua voz era grossa e levemente rouca, e eu gostava do subir e descer de seu pomo-de-adão na garganta. Ele como um todo sempre me lembrou um pássaro. Talvez, quando ele se foi, ele tenha realmente se tornado um pássaro. O que mais desejo é que ele voa, bem alto, acima de mim, livre, mas esperando por Wilhelm sempre.

Pergunto-me se Niclauss se lembra de mim.

Acho que sim. Eu jamais o esqueci. Ele jamais me esqueceria.

Antes que eu chegue ao fim, tenho que lhes contar o começo. Se você é do tipo que não gosta de histórias sobre amor, e sobre como ele se manifesta em pessoas tão diferentes e de formas tão incomuns, não continue lendo. Mas se você sabe o que é amar alguém, e como é a certeza de que você daria sua vida para salvar a dessa pessoa, continue lendo. Só não espere um “felizes para sempre”.

Não diga que eu não avisei.

 

***


Esta tarde está cinzenta, e o ar está úmido. Há algo de estranho no ar, e é como se houvesse eletricidade em minha boca. Fecho meus olhos e espero que o vento sopre em meu rosto, mas ele está parado e nem tenta bagunçar meu cabelo. Respiro fundo. Meus pulmões não gostam de como o ar está, mas ainda assim, eu insisto em respirar. Toco minhas bochechas com as costas das mãos. Quente contra o frio.

Saio de casa sem meu agasalho. De repente quero sentir gelo em meus dedos, em minha pele, mas está morno. Caminho pela rua de concreto, e tudo está com uma leve camada de chuva por cima. O cheiro no ar é gostoso, uma mistura de pães e chuva.

Tudo parece cinzento, e no caminho para a escola eu imagino como seria se o mundo tivesse cores, e não só o cinza chato das roupas que usamos – uniforme para todos –, do verde escuro dos uniformes militares, do dourado reluzente de seus emblemas.


Dentro de minha escola, cumprimento alunos e professores. Todos eles me conhecem, de um modo geral, e talvez o motivo para isso seja eu ser filho de um dos principais tenentes-generais do exército de nosso país.

Entro em minha sala de aula, e cumprimento minha amiga/quase namorada Victoria, e ela beija minha bochecha. Seu toque faz cócegas em minha bochecha, e enche meu coração de promessas e esperança. Este país é um lugar péssimo, mas, quem sabe, bem no fundo pode haver beleza no horror.

– Bom dia, senhor futuro militar – diz ela, e dá uma risadinha, enquanto eu abraço sua cintura. As pessoas a nosso redor riem também, e alguns discordam quando eu a beijo.

– Você sabe que eu não pretendo seguir a carreira de meu pai – digo, e é verdade. Sim, uma das coisas que meu pai faz é proteger esse país de nossos inimigos, com certeza, mas vai muito mais além disso. Eu não quero fazer parte desta ditadura.

– Mas devia – diz ela, e dá uma risadinha. Mas há algo em seu sorriso. Há algo estranho. Não consigo identificar o que antes que ela vire rosto e me solte, ao mesmo tempo em que o professor chega na sala de aula.


Ficamos meia aula de mãos dadas, por debaixo da carteira. Mas há um momento em que ela me solta. Eu olho para ela, e ela parece preocupada.  Ela escreve algo em um pedaço de papel, e o aperta em minha mão. Seu toque parece frio, e arrepia minha pele. Quero abrir agora mesmo, e ler o que ela disse, mas me impeço. Discretamente, leio o papel por debaixo da mesa.

 

Tem algo que eu preciso te contar. Estou guardando um segredo. Preciso te contar. Mas não sei como. Depois da aula, você saberá de tudo... O importante é que eu te amo, e isso não mudará.

 

***


Eu a amo. Ou amava, quem sabe. E talvez esse seja o porquê de eu ficar tão triste quando ela morre.  Eu jamais cheguei a saber seu segredo.

É meu pai quem a executa. Estou longe demais do local da execução para saber o que ele diz sobre ela, mas posso ouvi-lo gritando. O que ele está dizendo?

 

***


No dia seguinte, ninguém fala nada na escola. Literalmente. Todos ficamos em silêncio. Sinto-me febril. Quero gritar ou chorar, mas não consigo. Não quero falar.

O dia esfria muito, e uma chuva fina começa a cair. Como eu queria, ela me encharca e corta minha pele. O vento sopra, e faz barulho em minha janela.

Não há como entender. Perguntar o porquê é ridículo, e me faz querer matar meu pai.

Quando a pessoa que supostamente te ama tira de você alguém que você ama, essa pessoa realmente te ama? Tento convencer a mim mesmo de que esse é o trabalho de meu pai, de que ele não foi obrigado a fazer o que fez. Mas isso não responde á pergunta. O que Victoria poderia ter feito de tão grave para ser executada em público? Meu estômago se revira, e quero vomitar.

Estou guardando um segredo, disse-me ela. Poderia este segredo estar diretamente relacionado à sua morte?

 

***


Um aluno novo entra na sala. Reparo em seu rosto. Sua pele é mais escura que a minha – que a de quase todos nós – e seu cabelo é preto e bagunçado. Mas estou entorpecido demais para prestar atenção a isso.

 

***


– Pai? – chamo, quando estou em seu posto de trabalho. Ele examina alguns mapas, ou sei lá o que, provavelmente estudando estratégias ou algo assim. Eu preciso lhe perguntar, mas não sei se devo. Eu quero mesmo saber a verdade? – Quais... Quais são os principais motivos para alguém ser executado?

Meu pai me olha e aperta os olhos. Sob a luz quente da lâmpada acima de nós, posso ver a cor de seus olhos. Meu pai é um exemplo de alemão. Seus olhos são azuis, sua pele é clara e seu cabelo é loiro. Somos fisicamente parecidos, mas não consigo me enxergar como uma versão mais nova dele. E como eu imaginava, ele não percebeu que eu me referia à Victoria.

– Por que a pergunta, Jacobus?

Balanço a cabeça para ele. Não quero que ele saiba de quem estou falando.

– Só estou... curioso – e volto a folhear o livro em minhas mãos. O título diz Mein Kampf, e a mostra a foto de um homem feio e com bigode estranho. Ele é Adolf Hitler, um antigo ícone do Socialismo Nacional na Alemanha. É engraçado pensar que, quase cem anos depois, esse país não mudou muito. O nazismo não é ativo, mas é implícito.

Não olho para meu pai, mas sei que ele sorri para mim.

– É ótimo ver que você está começando a se interessar por isso, filho. Bem, deixe-me explicar... – começa ele.

Depois de dez minutos de discurso, sobre como o nazismo foi o precursor para que a Alemanha se reerguesse de cinzas, e sobre como o mesmo conceito aplicado a nosso país – com algumas exceções obvias – o tornou uma das mais fortes potencias mundiais. Enfim ele chega á parte que eu quero saber. Entretanto, ele deixa isso subentendido, e não me fala diretamente os motivos. “Aqueles que descumprem nossas leis mais prementes tem de ser exterminados”, diz ele.

Mas que lei pode Victoria ter descumprido para ser morta, da maneira como foi?

 

Parte 2: Não Me Deixe Ver


Na escola, as coisas parecem mais normais. Claro, duas semanas se passaram, então acho que é mais do que normal que todos tenham perdido o interesse na morte de Victoria. Mas eu não perdi. Claro, também não perguntei nada a meu pai – ele não me responderia, de qualquer maneira. Acabei descobrindo que meu pai não me contará nada relacionado às decisões governamentais de execução depois de ter perguntado a ele novamente sobre quais quebras de regras levam a execução. Ele acabou repetindo o discurso, e me dizendo que isso não era da minha conta.

Decidi, então, que não adiantava insistir. O jeito é viver um dia de cada vez e tentar descobrir essas coisas por conta própria.

Em minha sala, parece que está minando gente. Além do aluno novo que entrou no dia em que perguntei a meu pai pela primeira vez sobre as execuções, mais dois alunos entraram. Um deles na semana passada, e outro nesta semana. Aquele entrou em minha sala há duas semanas se chama Noam, e é judeu. O que entrou na outra semana se chama Wilhelm, e o mais recente se chama Niclauss. Como um bom representante de turma, logo cumprimentei os três, e foi aí que acabei descobrindo que Noam é judeu.

Noam e Wilhelm já se tornaram amigos, e não saem um do lado do outro. Eles dois parecem sociáveis, e conseguem se enturmar sozinhos, sem minha ajuda. Mas Niclauss precisa de uma ajudazinha, noto.

– Bom dia, Niclauss – começo. Ele sorri para mim. Há algo em seu sorriso que o faz parecer sereno, e que me deixa feliz. Noto, neste momento, que seu cabelo esta bagunçado, e que é enorme e cai sobre sua testa. Um desejo súbito de agarrar seu cabelo me agarra, mas me contenho. É engraçado pensar nisso, e chega a ser risível.

– Bom dia, Jacob. – ele me chama pelo meu apelido. Isso me faz sentir confortável. Involuntariamente, começo a rir. – Do que está rindo? – pergunta ele. Na verdade, não sei. Não tenho ideia. Só consigo responder:

– Não é de você, juro – digo, mas continuo rindo. Sou obrigado a me sentar, porque não consigo conciliar ficar de pé e respirar. Alguns momentos depois, Niclauss começa a rir comigo. Sem um por que, sem motivo.

– Que tal isso – sugere ele, quando finalmente consigo parar de rir. – depois da aula você me conta por que estava rindo, e eu te conto um segredo.

Tenho que dizer que é uma oferta tentadora, mas não sei se posso. Depois da escola, tenho de ir para o local de trabalho do meu pai. Ele quer que eu faça um serviço para ele, e eu não gosto de pensar em desobedecer ele. Então...

– Desculpe... Não vai dar – lamento. Eu realmente queria...

– Tudo bem – diz ele. Ele continua sorrindo.

– Vai me contar o segredo? – peço.

– Não – diz ele, e me dá um sorriso maroto. Claro que não ia contar.


Depois da aula, a perspectiva do segredo de Niclauss me queima e devora meu cérebro. Eu preciso saber o que ele tem para me contar, mas não quero me atrasar.

Consigo alcançar Niclauss antes que ele saia da sala.

– Cinco minutos – digo, e ele não pergunta para que. Ele sabe bem.


– Então, vai me contar? – pergunto. Quero saber o quanto antes.

– Não vou contar – responde ele.

– Como não?! – Estou sobressaltado. Não acredito que vou me atrasar e ainda não vou conseguir nada. O pior de tudo é a máscara séria que Niclauss adotou. Ele não está brincando. – Posso perguntar por que não?!

– Não quero trazer problemas para você – diz ele. – Eu tenho que ter certeza antes.

– Certeza de quê? – quero saber. Mas ele só balança a cabeça negativamente.

– Perdi meu tempo – digo, e começo a me afastar, completamente irritado. Niclauss segura meu braço.

– Vai me contar por que estava rindo? - pergunta ele, e sorri para mim. Isso me faz perder a cabeça.

– Não – respondo, e livro-me de seu toque.


O escritório de meu pai está uma bagunça. Livros e volumes estão espalhados sobre sua mesa, alguns no chão, além de mapas e papéis que não sei o que são. Meu pai está eufórico, completamente agitado.

– Pai, o que está havendo? – pergunto, interessado.

– Eu tenho que arrumar essas coisas – diz ele, olhando em uma das gavetas, procurando por sabe-se lá o que.

– E qual o problema com isso?

– Tenho que sair para supervisionar o treinamento dos recrutas em cinco minutos.

– Então, você quer que eu guarde tudo para você?

– Quero que catalogue e arrume tudo. – Ele olha para mim, e para de procurar na gaveta. Estendo para ele o emblema que estava encima da escrivaninha. Ele pega da minha mão e o prende no peito da camisa. – Pode fazer isso por mim?

– Claro, papai.


Esta é a melhor oportunidade de conseguir as informações que eu quero. Eu não terei outra oportunidade como essa, então tenho que aproveitá-la o máximo que puder.

Entre os montes de arquivos de meu pai, encontro muito livros que falam sobre leis, mas nenhum é direto o suficiente, então tenho que descartar vários, ou perderei tempo. Finalmente, encontro uma cópia da legislação do país – um livro grosso e pesado, cheio de números e parágrafos. São coisas demais para ver, e não há um índice claro que indique o que procuro. Tenho de me contentar com procurar página por página o que quero.

Mas quando finalmente acho, é tarde. Meu pai já deve estar chegando, e eu mal comecei a catalogar.

Corro contra o tempo, tentando criar um padrão simples o suficiente para colocar os livros em ordem e me dar tempo de estudar as leis. Sei que o que estou fazendo é errado, mas também sei que meu pai não reclamar se eu encontrar o que procuro. Ele com certeza vai achar que eu estou começando a me interessar pela constituição de nosso país, mas também vai dar um jeito de não me deixar chegar mais perto dos livros.

Depois de arrumar metade dos livros e volumes e mapas na estante, volto ao livro de leis. Uma delas – uma das primeiras – diz que a população deve seguir vigorosamente e a risca as leis, sem jamais descumprir alguma delas. Mas essa é uma ordem ridícula. Como podemos obedecer á eles, se eles mal nos dizem o que temos de fazer?

Entre classificações e olhadas no livro, encontro algo interessante;

Lei Nº 2.1: Está proibida qualquer forma de expressão artística que possa incitar ou, ao menos, mencionar rebelião. A forma de arte será examinada diretamente pelo governo, antes de poder ser liberada para exibição. Se houver qualquer indício de um possível pensamento rebelde, o (s) autor (es) da peça devem ser executados imediatamente. Se forem encontrados, sob investigação ou por acaso, expressões de artes, tendo elas conotações rebeldes ou não, e não houverem sido elas vistoriadas pelo governo, ou seja, se houverem sido escondidas dos olhos de seus maiorias, o (s) autor (es) da peça devem ser executados imediatamente.

Isso me deixa interessado e assustado. Poderia Victoria estar desenvolvendo um pensamento rebelde?

Folheio mais um pouco, e acabo esbarrando em mais uma lei, uma das outras que leva a execução. Essa me apavora. Isso é errado, não é: Matar alguém por este motivo...

Lei Nº 2.2: Está proibido o homossexualismo. Qualquer indivíduo que for pego tendo qualquer tipo de relação homossexual (qualquer forma dela), deve ser executado imediatamente. Há exceções para investigação.

 

***


– Parabéns, garoto. Olha só, está tudo perfeito. – Meu pai segura uma xícara, e o cheio do chá de hortelã enche o ambiente. Agora esta sala cheira a hortelã, poeira e suor. Dou um sorrisinho tímido para ele, mas olho em direção à janela. Voltou a chover lá fora. E eu quero ir para casa, mas é bem capaz de que ele me leve para casa.

Acabou que descobri todos os motivos pelos quais alguém deve ser executado. Não fazem sentido para mim, mas deve ser verdade.

Qualquer forma de arte não autorizada e/ou que incite a rebelião.

Homossexualismo

Traição Nacional

Assassinato

– Jacobus, quero que conheça Kornelius – diz meu pai. Estamos em sua malcheirosa e escura sala. – Kornelius é o mais novo Primeiro-tenente da corporação. Ele é um dos soldados que alcançou o posto em que atua mais rápido da década.

Kornelius estende a mão para mim. Aperto sua mão e olho para meu pai. Ele aquiesce coma cabeça. Posso considerar Kornelius um exemplo de alemão, também. Seu cabelo é curto e loiro, e sua pele é dourado-clara. Seus olhos são verdes, e seu rosto é duro e magro. Com certeza foi impressão minha, mas quando toquei sua mão, senti uma corrente elétrica mais forte, como uma força maior e mais perversa. Como eu disse, isso obviamente é impressão minha.

Será mesmo?

 

Parte 3: Não Me Deixe Ver A Verdade


Me pergunto como acabei aqui. Ou melhor, não me pergunto. Não importa. O importante é que isso me faz pensar menos em Victoria, e consequentemente menos nas leis horríveis e assustadores que eu li no livros de meu pai.

– Sua vez de responder, Jacobus – diz Wilhelm. – Quando foi fundado o partido liderado pelo austríaco Adolf Hitler?

– Qual é? Essa pergunta não vai cair na prova – respondo. A verdade é que eu não me lembro quando foi.

– Ele tá certo – diz Niclauss. – Estamos no ultimo ano. Por que iam perguntar tamanha babaquice?

– Nunca se sabe – diz Noam, e aperta os olhos ameaçadoramente. Todos caímos na gargalhada. A verdade é que Noam é engraçado quanto tentar ser ameaçador.

– Jacobus, telefone para você! – grita uma das coordenadoras da escola para mim. Levanto-me e murmuro um “já volto” para os três garotos sentados em circulo.

É estranho que eu receba ligações de meu pai durante o intervalo na escola, pois é quase o mesmo horário em que ele almoça – e digamos que meu pai não é exatamente um fã de pular refeições. Deve ser algo realmente importante, para falar a verdade. E enquanto caminho até a sala da diretora, onde espera por mim o telefone, milhares de dúvidas passam por minha cabeça. E se ele descobriu que eu mexi em seus livros? E se for algo relacionado à minha amizade com Wilhelm, Noam e Niclauss? Pode ser algo relacionado à prematura morte de Victoria?

– Alô? – É mais uma pergunta que uma resposta. O fato é que eu espero – ao mesmo quero – que meu pai não esteja do outro lado da linha. Mas é inevitável.

– Vou ser rápido – diz ele. – Lembra-se de Kornelius?

– Lembro, sim, pai.

– Bem, ele também está precisando de uma ajuda para arrumar os livros que ganhou quando mudou de patente, e eu disse a ele que você pode ajudar. – Sua voz é impassível e ele fala sério. Não é um pedido. É simplesmente uma afirmação.

Faz alguns dias, meu pai parece ter começado a desenvolver uma amizade muito grande com Kornelius; desde almoçar juntos, visitas de Kornelius á minha casa, troca de livros que falam sobre o nazismo, e incontáveis noites passadas em claro estudando estratégias de guerra. Ao que tudo indica, Kornelius não deveria poder estar discutindo estratégias com meu pai, pois sua patente não é alta o suficiente. Entretanto, meu pai parece não ter entendido isso.

Em minha opinião, Kornelius é somente um homem frio. Ele parece ser feito de pedra quando fala com meu pai sobre maneiras mais eficiente de execução, sobre as armas mais potentes para matar um combatente em guerra, e sobre a Guerra.

– Que horas tenho de estar lá? – pergunto a meu pai, e minha voz retumba dentro do aparelho antigo em minha mão.

– Você deve ir para sua casa assim que sair da escola – responde meu pai, e desliga o telefone antes que eu possa dizer “tudo bem”.


A sala de Kornelius é consideravelmente melhor que a do meu pai – talvez por falta de tempo para ser estragada. As janelas ainda não foram cobertas, então, além da luz elétrica da sala, há a presença da luz natural. Não há cheiros ruins aqui, só um leve odor de papel e tinta. Entretanto, a bagunça aqui é dobrada, ainda maior que a da sala de meu pai. Há livros e papeis por todo o chão, e encima de toda a mesa pessoal de Kornelius.

– Uau – murmuro, ao ver a situação, e arregalo os olhos. Eu imaginava que não haveria pessoa mais desorganizada que meu pai no mundo todo, mas acabo de constatar que eu estava errado. – Hum, então, por onde começamos? – pergunto a ele.     

– Pode começar colocando esses livros na estante – diz ele, e volta a focar sua atenção em um papel em suas mãos.

Aperto os olhos, mas começo a trabalhar imediatamente.

Depois de algum tempo de silencio, ouço Kornelius murmurando alguma coisa sobre o Oponente, e sobre perder... Não consigo ficar com a língua dentro da boca, e acabo perguntando a ele em voz alta sobre o que ele está falando. Ele finge que não sabe sobre o que estou falando.

– Você falou alguma coisa sobre perder!... Sobre o Oponente e sobre perder. O que você quis dizer com isso?

– Está ouvindo coisas, garoto – diz ele, e volta ao jornal, o tal papel que notei agora a pouco.

– Não, não estou não é a primeira vez que eu ouço sobre o Oponente, e não é a primeira vez que ouço as palavras “perder para” relacionadas á ele.

O Oponente é algum país inimigo que está tentando veementemente entrar em nosso país á força e tomar o controle. Não estudamos sobre o Oponente na escola, então não tenho ideia de qual o país por trás do nome, mas sei que ele existe por meio de meu pai – digo, por meio de minha própria curiosidade. Alguns meses atrás, enquanto eu estava do lado de fora do escritório do meu pai, esperando por ele para ir para casa, acabei – quase sem querer – ouvindo ele e um de seus superiores conversando – ou melhor, discutindo – sobre a guerra contra o Oponente. Meu pai estava claramente exaltado, e quase gritava com seu superior. Eu não consegui entender a conversa toda, porque a porta estava fechada, e eu só ouvia murmúrios. Entretanto, várias vezes ouvia as palavras “perder” e “Oponente” na mesma frase. E meu pai tem ficado cada vez mais estressado com o trabalho, e há uma tensão estranha no ar no exército.

– Não estamos perdendo para o Oponente – esclarece Kornelius. Mas seu rosto é sério e duro. – Cale sua boca e trabalhe – cospe ele. Contra minha vontade, continuo a arrumar os livros na prateleira.


Quando saio do posto de trabalho de Kornelius já é noite. Uma finíssima chuva cai, e é tão infinitésima que nem me preocupo em pegar meu guarda-chuva. A lua aparece timidamente no céu, quase completamente escondida pelas nuvens.

Mostro meu crachá para um dos seguranças que fica no portão – que é nada mais nada menos que um pedaço de plástico que diz que sou filho de um tenente – e eles me deixam passar. Do lado de fora, não espero um taxi. Faço o caminho até minha casa a pé.

Há alguém encostado no bordo em frente á minha casa. Sua silhueta é pequena e negra, então deduzo que a pessoa usa uma capa de chuva de cor escura. Quando me aproximo o suficiente, posso ver claramente quem é: Sophitia, uma das melhores amigas de Victoria. Ela olha para mim fixamente, quando estou à pouca distância dela, ela vem a meu encontro.

– Jacob – cumprimenta ela, e acena para mim com a cabeça. Não consigo deixar de notar o quanto ela parece abatido. Sobre seus olhos há enormes manchas negras, olheiras. Seus olhos mesmo estão avermelhados.

– Você está bem, Sophitia? – pergunto, e por mais que ela diga que sim, sei que a resposta é não.

– Ouça... – começa ela. Posso ver claramente que ela está medindo as palavras, procurando as certas. – Você por acaso ainda tem aquele bilhete que Victoria te deu?

Como ela descobriu sobre o bilhete?! Achei que fosse algo que somente Victoria sabia que tinha feito, ou que fosse um segredo nosso. Como pode Sophitia saber sobre isso?!

– Não... Eu... me livrei dele. – Me arrependo de ter dito assim que as palavras saem da minha boca. Eu deveria ter mentido. Não sei por que, exatamente, mas sei que seria a resposta mais certa.

– A Vic... digo, Victoria, chegou a te contar o que ela tinha para contar?

Não, porque para inicio de conversa, você não deveria poder saber disso. E não, não houve tempo, porque ela foi morta antes de poder me contar.

– Não – respondo.

– Sei... Você quer saber o que ela tinha para te contar?

– Não, não quero! Porque você não pode saber disso porque ela morreu antes de contar! Pelo menos, antes de contar para mim.

– Quero... – respondo, mas minha voz mal passa de um sussurro.

Mas ao invés de me responder, ela me entrega uma carta. A caligrafia é a Victoria, mas não sou o destinatário.

Eu te amo, Sophitia. Eu te amo para sempre. Talvez eu não tenha tempo para dizer isso para você, porque eles com certeza virão me pegar. Se eu não puder, significa que também não pude dizer a Jacobus o que tenho para dizer. Quero que você diga a ela o que não pude dizer: eu sou gay. Não podemos mais ficar juntos porque eu não o amo como eu deveria. Pois eu te amo, Sophitia. Te amo para sempre. Não se esqueça de mim.

Não consigo dizer nada. Apenas espero que o bolo em minha garganta se dissipe. Mas não vai.

– Ela te deu mais alguma coisa? – pergunto, minha voz completamente estrangulada.

– Um poema. Quer ler? – pergunta. Eu quero. Só estendo minha mão, e ela me entrega um pedaço de papel. Não é a caligrafia de Victoria.

 

A velhice deve arder e delirar ao fim do seu dia.

Revolte-se, revolte-se contra o apagar da luz.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a escuridão é o certo

Porque suas palavras não provocaram centelhas, eles

Não entraram docemente naquela boa noite.

Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura

Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía,

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura,

E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia,

Não entraram docemente naquela boa noite.

Não entre docemente naquela boa noite

Revolte-se, revolte-se contra o apagar da luz.

           

– Você a amava? – pergunto, embora já saiba a resposta. Ela concorda com a cabeça.

Ela a amava. Assim como eu.

 

Parte 4: Não Me Deixe Te Amar


Algumas palavras não saem de minha cabeça, desde ontem, quando Sophitia veio falar comigo. Amor é a principal. Amizade é a segunda, e de certo modo perturbadora. Oponente. Luta. Estas últimas duas vieram em conjunto, depois de ter lido o poema de Dylan Thomas. Não consigo me levantar de minha cama, e minhas lágrimas já secaram, incapazes de continuar rolando. A mão quente e leve de Niclauss acaricia minhas costas, tentando me consolar.

– Qual é? Chorar nunca ajudou ninguém – diz ele. Sua voz é baixa, - afinal, não queremos que meu pai chegue em casa e me pegue chorando e sendo consolado por uma amigo.

– Eu não tô chorando – digo, e minha voz voltou ao normal. Passa-se algum tempo de silêncio, até que eu suspiro e falo. Minha voz soa triste. – Se ela ao menos estivesse viva, eu não ficaria tão triste – digo, e é verdade. Sinceramente, não me importaria com nada do que descobri sobre Victoria e Sophitia, e desejaria a ela toda a sorte e a felicidade possíveis neste país. Mas não está...

– Sinto muito – ouço-o sussurrar. Sento-me em um pulo. Algo dentro de mim me manda abraçá-lo. Vai te fazer sentir melhor, diz essa vozinha para mim. Mas eu não o abraço. Não quero forçar a barra. Niclauss já fez muito por mim vindo aqui, e eu não quero fazer algo que eu imagino que vá ofender.

– Você bem que podia me contar seu segredo – digo. – Aquele que você ficou de me contar depois da aula, mas nunca chegou a contar...

– Não posso...

Eu imaginava que não... Mas quem sabe se eu...

– E seu eu disser que isso vai me fazer sentir melhor? – Mas ele só olha para mim, me dá um meio sorriso, e balança a cabeça. Eu sabia que isso era um não. Mas não custa tentar.

– Bem, pelo que posso ver, você já está melhor, não é? Já está tentando me persuadir... – Eu dou uma risada. É inevitável. Ele me faz sentir bem, isso é irrefutável e inegável.

– Não custa tentar – digo, e mantenho meu sorriso no rosto.

Mas algo muda. Muda nele, em sua expressão. Seu sorriso se esvai, e ele deixa de olhar para mim. Algo em mim muda. Um aperto, muito leve, se inicia em meu peito, toda vez que ele não olha para mim. Sinceramente, eu queria saber o que é isso, e, acima de tudo, por que eu sinto isso. Mas há coisas na vida que não podem ser explicadas, ou ao menos compreendidas. Há algo que ele precisa me dizer, mas ele não diz. Há algo que ele precisa tirar do peito, mas ele não tira. Como se eu pudesse ler sua mente, quase consigo ouvi-lo pensando: é muito pesado para colocar sobre os ombros de outra pessoa.

– Eu não sou o único que tem um segredo – diz ele. – Há algo que Wilhelm e Noam precisam contar também.

– Eu não ligo para os segredos deles – digo. – Eu quero saber de seu segredo, do que você guarda.

Mas ele não me diz. Só se levanta e sai.


Minha cabeça queima só de pensar nos segredos que tantas pessoas guardam de mim. Pergunto-me por que todos tem algo a esconder. Meu pai, meus melhores amigos, minha ex-namorada morta, Kornelius, o país todo. Sempre alguém tenta proteger algo, e prefere carregar tudo sobre os próprios ombros a me contar. E eu não gosto de não saber de certas coisas. Aposto que o segredo de Victoria era apenas a ponta do iceberg, apenas o começo de uma vida completamente escondida de mim.

Dentro da sala de meu pai, dou mais uma olhada em Mein Kampf. Será que este homem feio e cruel também tinha segredos a guardar?

– Pai? – chamo. Meu pai não afasta os olhos de seu plano de guerra. – Hitler tinha algum segredo? – pergunto. Ele levanta então os olhos dos papeis, e olha torto e fundo nos meus olhos.

– Por que a pergunta? – ele fala com sarcasmo, e me dá um sorrisinho sem graça.

– Curiosidade sempre – respondo. Ele balança a cabeça negativamente, e volta a seus planos.

– Como vou saber? Não o conheci pessoalmente.

Ai. Essa doeu.

– Tá, mas... – começo, mas ele me corta.

– Não entendo você, Jacobus. Se recusa tanto a servir ao exército alemão, mas se morde de curiosidade em relação a algumas questões. Então, pode por favor me explicar onde está o sentido nisso?

Baixo a cabeça e sento-me no chão, pegando novamente o exemplar surrado de Minha Luta. Não digo nada. Realmente não há sentido nisso, em mim, mas é a verdade. Sou curioso, ponto final.

Alguns minutos se passam e a voz grossa e alta de meu pai me assusta, e eu quase tenho um ataque cardíaco quando ele fala comigo novamente e sem prévio aviso.

– Hitler era canhoto, tinha fotofobia, odiava cigarros, era abstêmio e dizia-se também que era vegetariano. Não são segredos necessariamente, mas é tudo o que eu sei. Está satisfeito?

Obviamente que não. Não, isso não era um segredo, e sim, eu já sabia disso, mas não é o que digo a ele. Simplesmente sorriso e concordo com a cabeça. Mas há mais coisas que pipocam em minha cabeça, e que eu não quero ter de perguntar em voz alta. Você também esconde algum segredo? Por que você anda tão nervoso? Qual a porcentagem de chances que temos de perder para o Oponente? Por que você permitiu que Victoria fosse morta?


No dia seguinte, na escola, tenho prova. A coisa toda é muito fácil, considerando que não estudei uma vez sequer para a prova. Quando termino a prova, saio da sala rapidamente, para escapar do olhar suplicante de Niclauss, e dos olhares misteriosos e cheios de mistérios de Wilhelm e Noam.

Do lado de fora, Sophitia me espera. Até mesmo seu olhar parece misterioso. Francamente, se ela me disser que tem um segredo para me contar, eu mato alguém.

– Jacob – cumprimenta ela.

– Algum problema? – pergunto.

– Tem... uma coisa que eu tenho que te contar... mas não sei se você vai querer ouvir...

– Oh, não, você também não...

– Eu também não o quê?

– Bem, desde, o que, mês passado, várias pessoas se aproximam de mim e me dizem que têm um segredo para me contar, mas que não vão me contar, por vários motivos diferentes. Então me diga, qual seu motivo para NÃO me contar?

– Você é filho de um tenente do exército. Pode ser um perigo para... – ela se interrompe. – Quase falei demais.

Estou completamente irritado. Se ela não fosse uma garota, eu a socaria. Mas, infelizmente é. Então, me restrinjo a sair pisando duro. Ela me alcança e segura meu braço.

– Já ouviu falar na Sublevação?

– Na o quê? – pergunto. Nunca, jamais, ouvi um nome tão estranho. Entretanto, minha mente me lembra de um aula de gramática anos atrás, quando uma professora fez menção a essa palavra. Não consigo me decidir, então, se esta palavra significa algo negativo ou positivo, pelo menos para mim.

– Imaginava que não... – diz ela, e sai caminhando.


– Então, vão me contar ou não seus malditos segredos ou não? – pergunto, quando Wilhelm, Noam e Niclauss chegam em minha casa. Os convidei justamente para isso, mas disfarcei dizendo que queria estudar para as próximas provas.

– Ei, calma. Relaxa – me diz Niclauss, passando o braço por cima de meu ombro.

– Não, não vou relaxar – digo, e tiro o braço dele de cima de mim. – Desembuchem de uma vez, e aí quem sabe eu relaxe.

Os três se entreolham. De expressões leves e despreocupadas, seus rostos se tornam máscaras tensas e sérias.

– Bem, acho que está mais do que na hora que você saiba – diz Noam, e sua voz retumba dentro de meus ouvidos. Não gosto do tom sério que ele está usando. Me faz pensar que é algo ainda mais sério do que o que deveria ser.

– Então falem – digo.

– É melhor se sentar – diz Niclauss, com um sorriso zombeteiro no rosto, e cruza os braços sobre o peito.

– Garanto que não – digo. Estou começando a ficar irritado novamente. – Anda, falem logo, porque...

– Eu e o Noam estamos namorando – diz Wilhelm, tão rápido e convicto que posso que ele não disse. Fico boquiaberto. Eu não ouvi isso, eu não ouvi isso...

– Vo... Vo... Vo... – é tudo o que consigo balbuciar. Em questão de segundos, Niclauss está dando risadinhas curtas.

– É verdade... – diz Noam, e olha para longe.

Mas não pode ser verdade. Porque se for, isso significa que eles correm perigo, e que, cedo ou tarde, serão pegos, e executados. Duas palavras socam minha cabeça por dentro. Vocês não...

Não estou, sinceramente, surpreso com isso. Não estou surpreso que algo assim tenha acontecido, nem revoltado, irritado ou triste com isso. Estou triste com a possibilidade de perder mais duas pessoas que eu amo...


Passo o resto do dia digerindo a nova informação, parabenizando o novo casal, tentando não chorar com a perspectiva de perda, e estudando para a prova de história. No fim do dia, Wilhelm e Noam vão para casa, mas Niclauss fica. Ele vai dormir em minha casa hoje.

– Então, como você está aceitando? – pergunta ele, e me abraça pelos ombros.

– Eu não tenho o que aceitar. Só precisava saber – digo, e é verdade. Enquanto subimos as escadas que dão acesso ao segundo andar, onde fica localizado meu quarto, ele segura meu antebraço.

– Você está bem? – pergunta. Não sei se estou. Tudo tem acontecido tão rápido... O fim do ano escolar, a morte precipitada de Victoria, a descoberta do Oponente, o real motivo por trás da morte de Victoria, a notícia de que dois de meus melhores amigos namoram... É muita coisa para minha cabeça acompanhar.

Explico isso para Niclauss, ao mesmo tempo em que colocamos roupas de dormir. Só tenho uma cama, então teremos de dormir no mesmo lugar. Olho pela janela. É estranho pensar que um mês atrás eu olharia por esta mesma janela e veria apenas a vista de uma cidade cinzenta e próspera. E é mais estranho pensar que, depois de tudo o que descobri sobre esse lugar, jamais poderei olhar da mesma maneira.

– Mas você é inteligente, e uma pessoa boa. Em algum tempo, isso não será nada – diz ele. Isso é verdade. Sinto que há muito mais para descobrir antes de ficar deprimido. Entretanto, ainda há algo que eu não sei, e que preciso avidamente saber.

– Qual o segredo que você tanto guarda? – pergunto para ele. Niclauss se aproxima de mim, o suficiente para que sua coxa encoste na minha.

– Você quer mesmo saber? – pergunta, sua voz baixa, seu hálito quente.

– Quero – respondo. E há algo em minha cabeça me dizendo que não vou me arrepender de saber disso. Meu coração acelera e minha respiração se torna pesada quando ele se aproxima ainda mais. Seus lábios estão a centímetros dos meus, e sua voz é apenas um sussurro.

– Eu te amo – revela. E seus lábios tocam os meus suavemente.

 

Parte 5: Não Me Deixe Te Perder


Em primeiro lugar, os beijos que Niclauss me dá são indescritíveis. Toda vez que ele me beija, é como se o mundo a nossa volta desaparecesse, e a única coisa que eu busco no mundo é seu amor. Obviamente, as únicas pessoas que sabem disso são Noam e Wilhelm. Nossos beijos são segredos cheios de promessas.

Agora estamos em perigo. Agora temos um segredo.

Em segundo lugar, algo que Sophitia me disse, me deixou curioso (novamente). A Sublevação é algo real, descobri, mas ainda não sei quem faz parte dela, nem por que ela existe.

Depois de ter passado outro dia inteiro com Niclauss – não somente beijando-o, mas conhecendo-o – resolvo que tenho de descobrir um pouco mais sobre a Sublevação. Aposto que meu pai sabe. Então, faço uma visita para ele em seu local de trabalho.

Quando lá chego, não há ninguém dentro do escritório. Não há ninguém em lugar nenhum. Quando pergunto a um dos guardas na entrada, eles me dizem que todos os oficiais estão acompanhando a revisão mensal do treinamento dos recrutas.

Claro. Foi por isso que ele saiu mais cedo de casa, e por isso vai chegar mais tarde. Claro. Não tenho certeza absoluta de onde é esse local, mas procuro, mesmo assim.

É fácil descobrir onde é a verificação. Todos os novos recrutas estão aqui, e vários oficiais – incluindo meu pai e Kornelius – observam, enquanto os sargentos regem a apresentação de treinamento. Se não me falha a memória, os oficiais de patente mais alta assistem ao treinamento dos recrutas procurando por falhas na maneira de treinamento. Hoje, eles estão averiguando o treinamento com armas. O som dos disparos e a voz dos novos homens é ensurdecedor, e abafa quase qualquer som.

Quando tento me aproximar de meu pai, um dos oficiais me impede. “Ele é meu pai”, grito, mas não surte efeito. Frustrado, sento-me o mais longe possível de tudo, próximo aos recrutas que vão demorar mais a serem chamados. Sento-me no chão, e enterro minha cabeça em meus braços, tentando abafar o som. Mas antes que eu possa processar algum pensamento, alguém toca meu braço. Eu olho para a origem, e é um dos recrutas, obviamente.

– Você está bem? – grita ele, e quase não consigo ouvir sua voz.

– Estou – grito de volta. Há algo nele que parece estranho. Há algum tipo de tensão em seu rosto.

– Você é novato? – pergunta. Isso é impossível. Eu não tenho a idade mínima ainda – dezessete anos – e, provavelmente, vou acabar herdando o trabalho de meu pai, então, é minha resposta é não.

– Bem, não. – E fico em silêncio. Mas ele continua me olhando. E me olhando. E me olhando. Mesmo quando eu o encaro de volta, ele continua me olhando. – o que é? – pergunto. Que diabos ele está olhando?

– Você já ouviu falar na Sublevação? – pergunta, sua voz mais baixa, quase inaudível em meio ao escândalo lá fora.

Como ele sabe? Ou melhor, como descobriu? O que ele sabe?

Hesito em responder. E já se passou tempo demais. Minha única resposta é sim, ou estarei obviamente mentindo.

– Já. – respondo, e só isso. Não sei o que ele quer saber. Foi uma pergunta, uma acusação ou um convite?

– Você sabe o que é? – pergunta.

Na verdade, não sei exatamente. Imagino que seja algo que vá contra o governo, e contra as leis estabelecidas por ele. Balanço a cabeça em um não.

– Quer saber? – pergunta ele.

– Você faz parte? – pergunto. Responder uma pergunta com outra pergunta não é minha cara, mas é o melhor que consigo fazer nesta situação.

Para minha surpresa e terror, ele diz que sim.

Mas antes que ele possa dizer mais alguma coisa, seu grupo é chamado. Eu entro em pânico.

O que é a Sublevação?! O que você faz lá?! Quem mais pode ter mais informações sobre ela?! As perguntas gritam em minha cabeça, mas eu não posso fazê-las.


– Pai? – começo. Noto que não é a primeira vez que começo uma conversa assim com meu pai. Aliás, percebo que já comecei milhares de conversas assim com ele. Então decido mudar. Antes que ele possa dizer “Sim, Jacobus”, ou “O que foi, garoto”, eu continuo. – Você já ouviu falar na... – Não consigo enunciar a palavra. Algo me diz que é uma péssima ideia perguntar. Mas agora que comecei, tenho que ir até o fim...

– Já ouvi falar em quê, Jacobus? – pergunta ele.

– Na... – enrolo. A expressão no rosto de meu pai é de irritação. Tenho que continuar, ou as coisas vão piorar muito em questão de segundos. – Na Sublevação?

Várias emoções atravessam o rosto de meu pai. Surpresa. Dúvida. Mais surpresa. Angústia. Frustração. Raiva.

– Por que a pergunta, Jacobus? – pergunta, sua voz fria e áspera, seu rosto duro e raivoso.

– Só... curiosidade...

– Onde você ouviu isso? – pergunta, e larga o jornal. Isso não é um bom sinal...

– Não sei, eu...

– Onde você ouviu isso, Jacobus?! – ele aperta as mãos na mesa. Meu coração se acelera um pouquinho. Não estou com medo, estou só um pouco nervoso.

– Eu não sei, pai, eu...

– Onde diabos você ouviu isso, Jacob? – grita ele, e se levanta da mesa. Entro em pânico. Meu coração se acelera e bate forte, e eu começo a respirar irregularmente. Agora sim, estou com medo. Lágrimas ameaçam a escorrer por meus olhos. mordo meu lábio, tentando me impedir de chorar. Nunca vi meu pai assim. O gosto de sangue inunda minha boa, e agora sei que pressionei demais meus dentes contra a pele fina de meu lábio.

– Eu não sei... – digo, baixinho.

E quando penso que meu pai vai me bater, pois seu rosto está vermelho e sua respiração é irregular, ele volta a se sentar, e aperta o dorso do nariz com os dedos.

Um silêncio mortal se instala entre nós. Posso ouvir o vento assobiando lá fora, gritando para nós, açoitando as construções e tudo o que ele não pode demolir. Meu medo aos poucos passa, e dá lugar a duvida. Há algo que eu sempre quis perguntar a meu pai, entretanto nunca tive coragem. Baseei-me sempre em sua máscara machista e dura como um tipo de receio, e como um motivo para não tentar me aproximar. Mas estou cansado disso. Estou cansado de me esconder atrás de livros e máscaras, fingir que está tudo bem.

– Pai... – chamo. Ele olha para mim, tirando os olhos dos papéis novamente. – Quero te perguntar uma coisa.

– Pergunte... – diz ele, depois de suspirar.

– Você me ama? – pergunto.

Meu pai fica sem reação. Por alguns segundos, ele só olha em meus olhos, embasbacado.

– Que pergunta estranha, Jacobus. – Ele finge estar interessado em seus planos, e não me olha novamente.

– Não, não é – digo, firmemente. – É simples. Sim ou não?

– É claro que eu amo, garoto. Já disse, essa é uma pergunta estranha.

– Quanto? – pergunto, quase ao mesmo tempo em que ele repete a parte de ser uma pergunta estranha. Eu já sei a resposta, mas preciso ouvi-la saindo de seus lábios.

Ele bufa e solta os papéis. Sua cara diz tudo. “Não acredito que ele está perguntando isso”, pensa ele, claramente.

– Muito – responde ele, finalmente.

“Tenho algo para te contar” penso. Mas não consigo dizer. As palavras ficam entaladas em minha garganta, presas, incapazes de sair sozinhas, e eu sem coragem de força-las a sair.


Volto para casa antes do anoitecer, antes que meu pai volte para casa. Preciso ligar para Niclauss e contar tudo o que houve.

Mas ele não atende.

Isso seria suficiente para me deixar preocupado, mas não me permito ficar preocupado. Niclauss não é minha propriedade, e não precisa estar lá sempre para mim. Entretanto, é premente que eu fale com ele. Então, pego meu casaco de couro e saio.


Ele não está em casa. “Ele saiu, querido”, disse a mãe de Niclauss quando perguntei por ele.

Lembro-me subitamente de algo que ele me disse no dia anterior. Ele ia me encontrar ao anoitecer, quando eu saísse do escritório do meu pai. Como pude me esquecer disso.

Chega próximo ao escritório de meu pai sorrindo, mas meu sorriso desaparece quando não o encontro em lugar nenhum.

 

***


Não consigo dormir. Não há possibilidade de isso acontecer. Onde está Niclauss?

 

***


– Vai viajar? – pergunto a Kornelius. Meu pai me mandou para cá, e não me deixou que eu ficasse em casa. Estou angustiado com a falta de Niclauss.

A sala de Kornelius está cheia de caixas de papelão e coisas para empacotar. Obviamente, ajuda-lo não foi ideia minha, mas pelo menos está me ajudando a não pensar tanto em Niclauss.

– Vou trocar de sala, por isso a mudança. Mas vou viajar por uns dias, sim – responde ele. Não posso deixar de notar que aparecem covinhas em suas bochechas quando ele fala.

– E vai para onde? – pergunto, enquanto empilho livros dentro de caixas.

– Vou tirar umas férias – responde ele, e sorri para mim.

Estranho ele estar tirando férias agora. Mas não sou eu quem faz as regras, então não me envolvo.

Então uma questão aparece em minha mente. É estranho, mas eu me sinto mais confortável em perguntar isso a Kornelius do que a meu pai – considerando a reação de meu pai quando perguntei isso a ele.

– Kornelius? Já ouviu falar na Sublevação?

Ele para de fazer qualquer coisa e me olha fixamente. Eu o encaro também. Não sinto medo de Kornelius, de jeito nenhum. E ele parece relutante em falar. Mas, por fim, ele fala.

– É uma rebelião – responde ele. – Uma rebelião organizada, e basicamente completamente escondida dos olhos dos cidadãos. Digamos que eles, bem, não gostam muito da nossa forma de governo. Quase como o Opo... – Ele se interrompe. Tarde demais.

– Com o Oponente? A Sublevação está relacionada ao Oponente? – quero saber. Mas ele não fala. Não olha para mim, finge que não ouviu minha pergunta. Mas agora eu sei.


Estou em desespero. Não consigo sair da cama. Niclauss sumiu. Desapareceu. E eu não posso fazer nada para encontra-lo.

Eu preciso dele. Mas ele não está aqui.

 

Parte 6: Não Me Deixe Descobrir


Em nosso reencontro, finjo que não o perdi. Finjo que ele não desapareceu por mais de uma semana, e finjo que não sinto nada quando vejo seu rosto marcado de roxo, e seus olhos demonstrando visível dor e medo. Mas, quando cai a noite, e eu estou com ele em seu quarto, e somente com ele, eu o abraço com toda a força que tenho, e a certa altura já não sei mais distinguir quem é ele e quem sou eu.

Eu estava feliz – completa e indiscutivelmente feliz –, e também aliviado, de uma maneira que jamais ficaria, mesmo se a pessoa que desapareceu fosse meu pai. Mas Niclauss havia sido ferido – tão profundamente que ninguém poderia ao menos sanar sua dor. E foi naquele momento que eu sabia que o amava, e o quanto ele significava para mim, ou seja, o mundo e minha vida: quando ele foi embora e voltou, foi quando eu soube que meu coração pertencia a ele, pois foi quando ele o trouxe de volta.

Em seu quarto, eu mal conseguia abraça-lo. Quando eu o tocava, ele se encolhia, mas um segundo depois, se desculpava e permitia meu toque. E por mais que eu perguntasse a ele o que acontecera, ele não dizia. Eu sabia que alguém havia feito algo a ele, sabia que alguém havia ferido ele, mas ele jamais me diria quem fez isso – ele sabia que eu com certeza ficaria traumatizado também. E isso não era importante – saber quem machucara tão profundamente a pessoa que eu amo não era importante. O importante é que eu o amo, e que ele me ama, e todos estão contra nós.


No dia seguinte – unicamente por ordem de meu pai –, fui ao novo escritório de Kornelius, ajuda-lo a desempacotar as coisas. Seu novo cargo era o de segundo-tenente, e eu comecei a divagar sobre o quão rápido ele tem caminhado na hierarquia do exército. Obviamente, isso não é da minha conta. Uma coisa me vem á cabeça, mas o pensamento se esvai tão rapidamente quanto chega. “As férias de Kornelius foram de exatamente uma semana, o mesmo tempo em que Niclauss ficou desaparecido”. Claro, isso foi uma simples coincidência.

Os poucos livros de Kornelius parecem deslocados na estante grande, e tenho problemas em ajeitá-los de uma maneira que fiquem de pé. Quando finalmente consigo deixá-los em pé, alguém bate na porta com força o suficiente para derrubá-la. Não olho para a porta. Não ligo para quem seja. Não importa. Mas o guarda que aparece não diz que alguém procura a Kornelius. Ele procura a mim.


– Sophitia, o que faz aqui? – pergunto, surpreso. Eu realmente não imaginava que nós dois fossemos acabar conversando depois do que ela me contou sobre Victoria. Mas ela está aqui.

– Tinha... Tinha que falar com você... – ela olha por cima do meu ombro, para os guarda próximo de nós. – Podemos falar em particular? – pergunta ela, e nos afastamos alguns passos de tudo atrás de nós. – Como você está?

– Bem... Bem, eu acho. – Não tenho certeza. Estou feliz por rever Niclauss e tê-lo comigo aqui, mas estou triste e preocupado com seu misterioso trauma. Claro que não digo isso a ela.

– Você... Você descobriu mais alguma coisa sobre... – sua voz fica consideravelmente mais baixa quando ela termina a frase – a Sublevação?

Engulo seco. Como dizer a ela que descobri que a Sublevação é na verdade uma rebelião diretamente ligada ao Oponente, sendo este um país inimigo que está tentando com afinco invadir o nosso país?

– N-não. Não ouvi.

– Quer ouvir?

Essa informação me pega de surpresa. O que será que disseram a ela que é a Sublevação?

Faço que sim com a cabeça. Quero saber o que ela sabe agora, por menos que eu tenha a intenção de contar a ela o que eu sei. Não que eu seja uma pessoa egoísta, mas não quero que ela se encrenque por saber demais.

Ela me fala exatamente tudo o que eu sei sobre a rebelião. Tudo. E um pouco mais. Descubro, então, que a Sublevação é aberta, e secreta. Qualquer pessoa que não concorde com as ordens impostas pelo governo de nosso país pode ser um rebelde. E mais: o desejo do Oponente, o porquê de suas tentativas veementes de adentrar em nosso país, é para mudar as coisas. Há uma esperança. Poderemos ser livres se o Oponente tomar o controle. Isso me deixa feliz e esperançoso. Quero correr e gritar. Eu e Niclauss, e Noam e Wilhelm, e todos os que foram proibidos de amar seremos libertados dessa prisão ditatorial.

– Então, quer ser um rebelde? – pergunta ela, e dá um sorrisinho no final.

Não penso antes de responder.

– Quero. Claro que quero.

Sophitia tira do bolso um minúsculo broche de madeira. Um pássaro, mostrado de um único lado, voando. Liberdade. É o que significa. Ela prende o broche do lado de dentro de minha camisa e pede para não deixar que ninguém veja.

– Bem-vindo a Sublevação – diz ela. E sorri. Não consigo me conter e a abraço.

Agora somos aliados. Agora ambos temos esperança. Agora nós dois guardamos um segredo.


Obviamente não conto a Niclauss sobre a Sublevação. Não quero nem imaginá-lo em perigo. Ele vem dormir em minha casa hoje à noite. Por pouco não aguento a espera. E quando ele chega, eu o beijo profundamente.

Durante a noite, porém, mal posso o tocar. Está pior do que eu pensei. Ele treme, e às vezes consigo ouvi-lo chorando. Junto com minha tristeza, raiva cresce dentro de mim. Não raiva de Niclauss, mas raiva da pessoa que fez isso com ele. Quem quer que tenha feito isso, essa pessoa vai pagar. Mas Niclauss não me diz quem fez isso.

– Não é importante – diz ele toda vez que eu pergunto o nome da pessoa. – Não fique com raiva. Não vai mudar nada.

– Mas eu preciso saber. Tenho que saber...

Contudo, ele não me diz quem é.


– Me desculpe... – diz ele. Já estamos no meio da noite, e eu estava quase pegando no sono. Desperto completamente com o som de sua voz.

– Não precisa se desculpar – digo. É a verdade. Óbvio, ele me deixou preocupado, mas isso não importa mais. Ele olha dentro de meus olhos, e posso ver que suas feridas ainda são tão profundas quando no dia em que ele foi ferido.

– Preciso... Eu quero te contar quem me sequestrou, mas...

– Sequestrou? – pergunto, sentando-me em um pulo. Não posso acreditar que ele foi sequestrado. A raiva dentro de mim cresce ainda mais, e se torna ódio. Meu coração bate com força e rapidez. Estou ofegante. Essa pessoa não me escapa. Quando eu descobrir quem fez isso, eu o matarei. – Quem te sequestrou?

– Eu não posso dizer. Eu... – As palavras dele saem juntas, de tão rápido que ele fala.

– Me diga um nome – ordeno. Não se atreva a não me dizer.

– Eu não posso – diz ele.

As lágrimas escorrem por seu rosto, tão rápido e incessantes que parecem rios. Não sinto mais raiva. Sinto sua dor. “Me desculpe”, quero dizer, mas não consigo falar nada. Simplesmente abraço-o, e deixo que ele derrame sua tristeza por sobre meu ombro.

– Eu te amo – consigo dizer, cansado demais para chorar, triste demais para me mexer. A única coisa que consigo fazer é respirar, e deixar que a desesperança me consuma.

Do que vai adiantar? Do que vai servir conquistar este país se Niclauss estiver tão machucado que mal consegue falar comigo? Do que adianta ter a esperança de ser livre, se há á minha volta unicamente a dor do trauma?

– Eu te amo – sussurra ele.


Eu corro.

Eu corro e corro e corro.

Agora que eu descobri quem fez mal a mim, eu o mato.

O suor escorre por minhas costas, e tenho a sensação de que meus pulmões estão sendo apertados contra duas placas de ferro. As lágrimas correm rápidas e desenfreadas por meu rosto, e queimam e me cegam.

Os guardas na entrada nem ao menos pedem minha identidade. Eles sabem quem eu sou.

Meus músculos parecem ter sido liquefeitos quando chego a meu destino. A adrenalina ainda não saiu de minhas veias, então tenho mais algum tempo antes de desmaiar.

“Me diga quem foi”, disse eu, enquanto ele ainda estava em meio ás lágrimas.

“Não...”, respondeu ele.

“Só uma letra”, disse, me sentido uma criança mimada e insistente.

“K”, respondeu ele.

E agora estou aqui. O punhal em minha bota roça contra minha pele, e tenho certeza de que estou cortando a mim mesmo.

– O que faz aqui? – pergunta ele, sobressaltado, quando irrompo em sua sala, sem ao menos bater na porta. Mas isso seria ridículo. Quando se está prestes a assassinar alguém, acho que não faz sentido ser educado.

Chuto a porta atrás de mim. Ela se fecha com um estrondo. Não tenho muito tempo agora.

– Qual é seu problema? – pergunta ele.

Ele não é homem fraco. Com certeza vai ser um problema mata-lo. Mas não me preocupo. Eu sei que ele vai morrer. Hoje.

Parto para cima dele com passos curtos e pesados. Tento quebrar o chão com meus pés, mas eles não cedem. Ele se levanta da mesa, seu maldito jornal cai no chão com um barulho mínimo e surdo.

Não entendo o porquê, mas quando chego perto o suficiente, ele me abraça, ao invés de tentar se defender. Eu o abraço, com força. Devagar, para que ele não note, pego minha adaga.

– Por quê? – pergunta ele, enquanto observo sua vida escapar por seus olhos. Emoções se misturam em minha mente. Sinto satisfação. Eu o matei. Sinto arrependimento. Eu o matei.

– Aqui está seu troco, seu nojento. – Digo, e tira a lâmina de suas costas. Ela sai afogada em sangue. – Te vejo no inferno, Kornelius.

A porta se abre rapidamente. Não me viro para vem quem a abriu. Não me importo. Deixo a faca cair de minha mão. Ela faz um tintilar metálico quando se choca contra o solo.

– Por que você fez isso? – me pergunta Niclauss, me abraçando.

– Ele me machucou quando machucou você. Eu tinha que te vingar – digo.

Ficamos em silencio, mas somente em um silencio literal, pois dentro de minha mente todos gritam. O silencio se torna uma gritaria, e meus pensamentos são tão ruidosos que mal consigo distinguir o que querem dizer.

– Jacobus – ouço meu pai gritar...


Todas as vozes são silenciadas quando separam Niclauss de mim. Nossas mãos não se tocam mais, e minha mente se torna completamente desperta. “Niclauss”, eu grito a plenos pulmões, porque sei que eles vão nos afastar. Sei que eles vão me executar. Ele também grita meu nome. Meu coração bate com tanta rapidez que quase não o sinto.

            “Não me deixe”, penso. “Não de novo”. Mas é tarde. Ambos somos levados em direções opostas.

 

Parte 7: Não Me Deixe


Eu nunca pensei nas consequências. Agora pago o preço. Mas nunca pensei que o preço fosse tão alto e amargo.

Não posso perder Niclauss. Não posso. Entretanto, eu com certeza não vou sobreviver a isso, então não preciso me preocupar em sofrer por muito tempo.

Eu preciso dizer a ele que o amo, e preciso pedir desculpas.

 

***


Chegam novos prisioneiros para o bloco da morte. Quase não presto atenção nas pessoas, até que um andar me chama atenção.

Wilhelm!

– Will! Will! – grito para ele, e ele se vira e me olha por um segundo, mas se vira e continua na fila.

Eu entro em pânico. O que ele faz aqui?

Que pergunta ridícula. Ele está aqui para ser executado. Mas por quê? Porém a resposta chega, alada e veloz. Ele e Noam foram pegos. Assim como eu e Niclauss.

 

***


Meu coração bate com tanta força que imagino-o rompendo meu peito e pulando para fora. Chegou a hora.

Agora eu sei a sensação que Victoria sentiu quando a executaram. É de puro terror, contudo é de felicidade também, do vislumbre da enorme liberdade que está por vir.

– Jacobus, você esta sendo executado por infringir mais de uma das leis mias importantes que constituem nosso país. Você quer que eu leia a lista de acusações?

Faço que não com a cabeça. Não é meu pai que vai me matar. Não sei quem é este homem, mas imagino que ele esteja abaixo de meu pai.

Eu olho para a esquerda, depois para a direita. Estamos nós todos aqui. Inclusive Sophitia. Nós seis. Todos condenados por amar demais, e por querermos ter nossas próprias ideias.

Olho fixamente para Niclauss. “Eu te amo”, ele sussurra. “Eu te amo”, sussurro de volta.

Juntos, encaramos a morte de frente.

Eu o amo. Ele ama. Todos estão contra nós. E nós vamos morrer. Fim.

 

***


Tudo acontece tão rápido que mal tenho tempo para registrar.

Em primeiro lugar, ele matam Noam primeiro. O grito de Wilhelm é tão alto quando o corpo de Noam soca o chão, que tenho a sensação de que todos no mundo ouviram. Então, Niclauss é morto.

Eu não grito. Não consigo. Simplesmente olho para o chão, e respiro fundo. Meu coração bate tão devagar que penso já estar morto.

Então, um grande explosão.

Meu pai aparece, liderando um enorme exército. Demoro um segundo para entender que não se trata do exército alemão.

A Sublevação, objeta minha mente.

Então, é isso. O Oponente finalmente consegui adentrar o país. Estamos salvos.

Mas é tarde demais.

 

***


– Então, desde quando você faz parte da rebelião? – pergunto a meu pai. Algo em mim se tornou um pilar de sustentação. Não sei o que é, mas este algo não me deixa desmoronar. Ainda estou arrasado, e isso nunca vai passar, mas não morto.

– Desde que você me perguntou o quanto eu te amava – responde meu pai.

Assinto.

Depois que a Sublevação interrompeu a execução dos prisioneiros do bloco da morte, eles libertaram todos os detentos que foram condenados por ter infringido as três primeiras leis – formas de arte não autorizadas, homossexualismo e rebelião. Então, derrubaram todo o exército, e mataram o presidente do país. Isso tudo demorou três dias. Foi incrivelmente fácil, tenho que dizer; contando que a Sublevação havia se espalhado por todo o país.

– Foi a hora certa de atacar – explica meu pai. – Assim que eu me juntei à rebelião, fui nomeado vice-presidente. Bem, talvez a rebelião me observasse mais de perto do que eu imaginava. Então, quando fui questionado sobre quando atacar, sugeri que no mesmo instante. Este país foi feito de vidro. Todo o seu sistema era extremamente frágil. Foi mais fácil do que eu pensei derrubar o que eu construí.

– E pensar que há alguns meses, você estava contra a rebelião – digo.

– É.

– Por que você trocou de lado? – pergunto a ele.

– Fazemos isso ás vezes, pelas pessoas que nós amamos.

 

***


Passo o resto dos dias em um estado de torpor estranho. Não consigo invocar memórias, e a única coisa que faço é focar deitado em minha cama, olhando pela janela.

Como eu havia pensado antes, eu jamais olharia por esta janela da mesma maneira.

 

***


Depois de várias semanas de torpor, Wilhelm – que também ficou, por mais de um mês, arrasado – consegue me convencer a dar um passeio na praia, ao menos para mudar um pouco a paisagem que vejo. O céu, finalmente, finalmente, está claro, não mais encoberto pelas nuvens agourentas de sempre. O sol brilha, ainda tímido.

Depois de alguns minutos caminhando, entrelaço minha mão na de Wilhelm. Ele não se espanta. Somente aperta minha mão, e olha em meus olhos. No final, acabamos juntos, mas sozinhos.

Nos sentamos na praia, aquecidos pelo sol, congelados pelas circunstâncias.

Olhando para o céu , eu me lembro de Niclauss. Aposto que Wilhelm também se lembra de Noam.

Pergunto-me se Niclauss se lembra de mim.

Acho que sim. Eu jamais o esqueci. Ele jamais me esqueceria.

– Eu te amo, Jacobus – diz Wilhelm para mim.

– Eu também te amo, Will... – digo.

Acho que eu sempre soube disso. Acho que eu sempre imaginei isso. E acho que eu sempre o amei. Ou talvez seja a indiscutível verdade de que ambos vivemos, agora, somente pela metade.

Aprendemos a continuar só meio vivos.

Eu estou meio vivo para sustenta-lo.

Ele está meio vivo para me sustentar.

Até o dia em que reencontraremos a outra metade de nossas almas.

Fim...


Notas Finais


Durante a criação de Cidade de Vidro, diversas obras entraram e saíram de foco, e tiveram importâncias diferentes para a trama. As primeiras, citadas tanto na trama original quanto na revisitada, são os livros Mein Kampf (Minha Luta), volumes 1 e 2, escritos por ninguém menos que Adolf Hitler, Chanceler do Reich e Führer – algo como um líder – da Alemanha nazista entre 1934 e 1945, nos quais o próprio político descreveu, durante seu tempo de detenção, suas ideias antissemitas e nazistas. O primeiro volume foi publicado em 1925, e foi redigido enquanto Hitler ainda estava preso. Ambos os livros são proibidos de ser publicados.
A segunda menção que fiz foi ao poema Não Entre Docemente, de Dylan Thomas. Achei necessário inseri-lo no contexto da trama original de Cidade de Vidro como uma convergência da rebelião.
A terceira menção que fiz foi ao poema de Robbinson Jeffers, Be Angry at the Sun. Um fragmento do poema aparece na segunda versão de Cidade de Vidro, e também teve a intenção de demonstrar as intenções da Sublevação, do ponto de vista de Victoria Brauer.
Ambos os textos, o original e o revisitado, não tem como intenção criticar, alfinetar, ou provocar as culturas e os países mencionados. Toda a trama é baseada em observações fatos sobre nossa sociedade atual, além, é claro, de no período obscuro da história que precedeu a Segunda Guerra Mundial, chamado Nacional-Socialismo, conhecido como nazismo. Minhas intenções com Cidade de Vidro foram incriminar e envergonhar países e culturas que ainda hoje oprimem seus cidadãos por meio de leis estúpidas e convicções arcaicas, baseadas em suas próprias ideologias apodrecidas e macróbias. Além disso, o toque de extrema realidade que dei à estória, por meio da morte de certos personagens, foi proposital, para, com o mesmo objetivo, expor a maneira como vidas inocentes são destroçadas por causa de erros alheios.
Espero que você tenha gostado da minha cidade de vidro, e que encontre espaço em seu coração para me perdoar pelos momentos angustiantes que eu proporcional na trama.
Com amor, Bruno.


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...