Narração por Justin
E então Ariana e eu tínhamos nove anos. Nossos pais eram amigos, por isso brincávamos juntos de vez em quando (quase sempre), de bicicleta, pelas ruas sem saída a caminho do Jefferson Park propriamente dito, no coração do bairro.
Quando descobria que Ariana estava prestes a chegar eu sempre ficava muito nervoso, pois ela era a criatura mais fantasticamente linda que Deus já havia criado. Na manhã em questão, ela estava de short branco e camiseta cor-de-rosa com a estampa de um dragão verde soprando fogo de glitter alaranjado. É difícil explicar que na época achei aquela camiseta incrível.
Ariana, como sempre, pedalava em pé, os braços rígidos enquanto se inclinava sobre o guidom, os tênis roxos formando um círculo borrado. Era um dia quente e úmido de março. O céu estava claro, mas havia um acidez no ar, como se um temporal fosse iminente.
Naquela época eu gostava de imaginar que era inventor, e depois de prendermos nossas bicicletas e iniciarmos uma curta caminhada até o parquinho, contei a Ariana minha ideia para uma invenção chamada Fazedor de Anéis. O Fazedor de Anéis era um canhão gigante que atiraria pedras enormes e coloridas até uma órbita baixa, conferindo à Terra anéis como os de Saturno. (Ainda acho a ideia ótima, porém construir canhões capazes de atirar pedregulhos em uma órbita baixa é um tanto complicado.)
Eu já fui ao parque tantas vezes que tinha um mapa dele no cérebro, então mal havíamos entrando e comecei a sentir que o mundo estava fora de ordem, embora não soubesse de imediato o que estava diferente.
Ari: Justin. – chamou a mesma baixinho, devagar. Ela apontava. Foi então que percebi o que havia de diferente.
A poucos metros de nós havia um carvalho. Grosso, retorcido e com jeito de muito antigo. Aquilo não era diferente. O parquinho à nossa direita. Também não era novidade. Já o cara de terno cinza largado junto ao tronco do carvalho, imóvel... aquilo era novidade. Estava rodeado de sangue; uma cascata sanguinolenta meio seca saía da boca. Que, por sua vez, estava aberta de um modo que bocas normalmente não deveriam ficar. Moscas pousavam na testa pálida.
Ari: Ele está morto – disse Ariana, como se eu não tivesse reparado.
Dei dois passinhos para trás. E me lembro de ter pensado que, se fizesse qualquer movimento súbito, ele poderia despertar e me atacar. Talvez fosse um zumbi. Eu sabia que zumbis não existiam, mas ele parecia um zumbi em potencial.
Quando dei dois passos, Ariana também deu, igualmente curtos e silenciosos, porém para a frente.
Ari: Os olhos deles estão abertos.
Jus: Agentetemqueirpracasa. – falei meio trêmulo
Ari: Eu achava que a gente fechava os olhos quando morria.
Jus: Arianaagentetemqueirpracasaecontarpralguém.
Ela deu outro passo. Estava perto o suficiente para tocar o pé do sujeito caso esticasse o braço.
Ari: O que você que aconteceu com ele? – disse Ari
Jus: Talvez tenha sido por causa de drogas ou coisa assim.
Eu não queria deixar Ariana sozinha com o cara morto que podia ser um zumbi assassino, mas também não estava a fim de ficar ali conversando sobre o motivo da morte dele. Tomei coragem e dei um passo à frente para pegar a mão dela.
Jus: Arianaagentetemqueiragora!
Ari: Ok, tudo bem – disse ela.
Corremos até nossas bicicletas, e eu sentia um frio na barriga exatamente como o de empolgação, mas não era. Montamos nas bicicletas, e deixei Ariana ir na frente porque eu estava chorando e não queria que ela visse. Tinha sangue na sola dos tênis roxos dela. O sangue dele. O sangue do cara morto.
E então chegamos às nossas respectivas casas. Meus pais telefonaram para o serviço de emergência, e eu ouvi as sirenes a distância e pedi para ver o carro dos bombeiros, mas minha mãe não deixou. Então tirei um cochilo.
Minha mãe é advogada e meu pai é psicólogo, o que significa que sou centrado para cacete. Então, quando acordei, tive uma longa conversa com minha mãe sobre o ciclo da vida, e sobre a morte ser parte da vida, mas não uma parte da vida com a qual eu precisasse me preocupar muito aos nove anos, e aquilo fez com que eu me sentisse melhor. Para falar a verdade, nunca me preocupei muito com essa questão. O que é um feito e tanto, porque eu sou um bocado preocupado,
O lance é o seguinte: eu encontrei um cara morto. Eu, o pequeno e adorável Justin de nove anos, e minha ainda menor e mais adorável companheira de brincadeiras encontramos um cara com sangue escorrendo da boca, e aquele sangue estava nos pequenos e adoráveis tênis dela quando voltamos de bicicleta para casa. É tudo muito dramático e coisa e tal, mas e daí? Eu não conhecia o cara. Gente que eu não conheço morre o tempo todo. Se eu surtasse toda vez que uma coisa ruim acontecesse no mundo, ia acabar completamente pirado.
Naquela noite, fui para os quarto às nove, porque nove era minha hora de dormir. Minha mãe me colocou na cama, disse que me amava e eu falei ‘’Até amanhã’’, ela respondeu ‘’Até amanhã’’ e então apagou a luz e deixou a porta entreaberta.
Quando me virei de lado, vi Ariana Grande-Butera parada do lado de fora da janela, o rosto quase colado na tela. Eu me levantei e abri a janela, mas a tela continuou entre nós, deixando Ari quase toda quadriculada.
Ari: Fiz uma investigação – declarou ela muito seriamente.
Mesmo de perto, a tela dividia seu rosto, mas dava para ver que trazia nas mãos um caderninho e um lápis com marcas de dente na borracha. Ela baixou os olhos para as anotações.
Ari: A Sra. Feldman, lá de Jefferson Court, disse que o nome dele era Robert Joyner. Ela me contou que ele morava na Jefferson Road, em um daqueles apartamentos em cima do mercadinho, então fui até lá e tinha um monte de policiais, e um deles me perguntou se eu trabalhava no jornal da escola, e eu respondi que nosso colégio não tinha jornal, então ele disse que, como eu não era jornalista, ele ia responder às minhas perguntas. Ele me contou que Robert Joyner tinha trinta e seis anos [36 anos]. Advogado. Não me deixaram entrar no apartamento, mas ele era vizinho de porta de uma moça chamada Juanita Alvarez, e eu pedi uma xícara de açúcar emprestada para entrar no apartamento dela, então ela me contou que Robert Joyner tinha se matado com um tiro. Aí eu perguntei o motivo, e ela me disse que ele estava se divorciando e que estava triste por causa disso.
Depois Ariana parou, e eu simplesmente fiquei olhando para ela, o rosto cinzento iluminado pelo luar e dividido em mil pedaços pela trama da tela. Seus olhos redondos e arregalados ficaram se revezando entre mim e o caderno.
Jus: Um monte de gente se divorcia e não se mata por causa disso. – falei um pouco frio enquanto a olhava
Ari: Eu sei – disse ela, a voz fervilhando de empolgação. – Foi isso que eu disse a Juanita Alvarez. E então ela falou... – Ariana virou as páginas do caderninho. - Ela falou que o Sr. Joyner era um problemático. E aí eu perguntei o que isso significava, e ela me disse que nós apenas deveríamos rezar por ele e que eu precisava levar o açúcar para minha mãe, e eu falei para deixar o açúcar para lá e fui embora.
Fiquei em silêncio outra vez. Só queria que ela continuasse falando. Aquela vozinha carregada de animação de quase saber das coisas, fazendo com que eu sentisse como se algo importante estivesse acontecendo comigo.
Ari: Acho que sei o motivo. – disse ela afinal.
Jus: E qual é?
Ari: Talvez todos os fios dentro dele tenham se arrebentado – respondeu ela.
Enquanto tentava pensar no que dizer, eu me aproximei e abri o trinco da tela que nos separava, soltando-a da janela. Coloquei a tela no chão, mas Ariana não me deu oportunidade de falar. Antes que eu pudesse me sentar de novo, ela aproximou o rosto do meu e sussurrou:
Ari: Feche a janela.
Então fechei. Pensei que ela fosse embora, mas simplesmente ficou ali me observando. Acenei e sorri para ela, mas seus olhos pareciam fixos em algo atrás de mim, algo monstruoso que a deixava pálida, e eu fiquei com medo demais para me virar e ver o que era. Só que não tinha nada atrás de mim, é claro – exceto, quem sabe, o cara moto.
Parei de acenar. Minha cabeça estava na mesma altura que a dela enquanto nos encarávamos através do vidro. Não lembro como aquilo terminou – se eu fui dormir primeiro ou se ela foi. Na minha lembrança, esse momento não termina. Só ficamos ali, fitando um ao outro, eternamente.
Ariana sempre adorou um mistério. E, com tudo o que aconteceu depois, nunca consegui deixar de pensar que ela talvez gostasse tanto de mistérios que acabou por se tornar um.
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