CAMILA - dias atuais
Querido diário,
Alguma coisa horrível vai acontecer hoje.
Não sei por que estou escrevendo isso. É loucura. Não há motivos para eu estar aborrecida e todos os motivos para ficar feliz, mas... Mas aqui estou eu, às cinco e meia da manhã, acordada e apavorada. Fico dizendo a mim mesma que é só porque estou totalmente confusa com a diferença de fuso horário entre a Espanha e aqui. Mas isso não explica por que estou tão assustada. Por que estou tão perdida.
Dois dias atrás, enquanto tia Sinu, Sofia e eu estávamos voltando de carro do aeroporto, tive uma sensação estranha. Quando entramos na nossa rua, de repente pensei: “Mamãe e papai estão em casa esperando por nós. Aposto que estarão na varanda da frente ou na sala, olhando pela janela. Eles devem ter sentido muito a minha falta.”
Eu sei. Isso é totalmente maluco.
Mas mesmo quando vi a casa e a varanda vazias, ainda senti isso. Corri pela escada e tentei abrir a porta, até bati a aldrava. E quando tia Sinu destrancou a porta, eu explodi para dentro e fiquei no corredor escutando, esperando ouvir minha mãe descer a escada ou meu pai chamando do gabinete dele.
Foi aí que tia Sinu deixou a mala cair no chão com estrondo atrás de mim, soltou um suspiro imenso e disse: “Estamos em casa.” Depois, Sofia riu. E me veio a sensação mais terrível que tive em toda a minha vida. Nunca me senti tão completamente perdida.
Casa. Estou em casa. Por que isso parece uma mentira?
Eu nasci aqui, em Miami. Sempre morei nesta casa, sempre. Este é meu velho quarto de sempre, com a marca de queimadura no piso de madeira de quando Normani e eu tentamos fumar escondido no quinto ano e quase sufocamos. Posso olhar pela janela e ver o grande marmeleiro, que Harry e os meninos escalaram para invadir a festa do pijama do meu aniversário há dois anos. Esta é a minha cama, minha cadeira, minha cômoda.
Mas neste momento tudo me parece estranho, como se este não fosse o meu lugar. Eu é que estou deslocada. E o pior é que sinto que pertenço a algum lugar, mas não consigo descobrir qual é.
Ontem eu estava cansada demais para ir ao primeiro dia de aula. Dinah pegou o horário para mim, eu não tive vontade de falar com ela ao telefone. Tia Sinu disse a todos que ligaram que eu estava com jet lag e dormindo, mas ela me olhava de um jeito estranho no jantar. Mas hoje vou ter que ver o pessoal. Vou ter que ver Lauren. Temos que nos encontrar no estacionamento antes da aula. Será por isso que estou assustada? Porque eu tenho medo de encontra-los? De encontra-la?
Camila Cabello parou de escrever. Olhou a última frase que rabiscara e sacudiu a cabeça, a caneta pairando sobre o pequeno caderno com capa de veludo azul. Depois, com um gesto repentino, ela levantou a cabeça e atirou caneta e caderno na grande janela da sacada, onde eles quicaram suavemente e caíram no assento acolchoado.
Era tudo tão completamente ridículo. Desde quando ela, Camila Cabello, tinha medo de encontrar alguém? Desde quando tinha medo de alguma coisa? Ela se levantou e passou os braços com raiva num quimono de seda vermelha. Nem olhou para o elaborado espelho vitoriano acima da cômoda de cerejeira: sabia o que veria ali.
Camila Cabello, descolada, latina e magra, a que lançava moda, a veterana do Ensino Médio, a garota que todo menino queria ter e toda menina queria ser. Que agora tinha uma careta incomum na cara e a boca num biquinho.
Um banho quente e um café e vou me acalmar, pensou ela. O ritual matinal de se lavar e se vestir era tranquilizador, e ela se demorou nele, vasculhando as novas roupas de Barcelona. Por fim escolheu um top rosa-claro e short branco de linho que a deixavam parecida com um sundae de framboesa. Dá vontade de comer, pensou Camila, e o espelho mostrou uma garota com um sorriso secreto. Seus temores anteriores derreteram, esquecidos.
— Camila! Onde você está? Vai se atrasar para a escola! — A voz veio fraquinha do primeiro andar.
Camila passou a escova mais uma vez pelo cabelo sedoso e o prendeu atrás com uma fita rosa escura. Depois pegou a mochila e desceu a escada. Na cozinha, Sofia, de 4 anos, comia cereais à mesa e tia Sinu queimava alguma coisa no fogão.
Tia Sinu era o tipo de mulher que sempre parecia meio atrapalhada; tinha um rosto fino e meigo, e cabelo claro ondulado, puxado de qualquer jeito para trás. Camila lhe plantou um beijo no rosto.
— Bom dia a todo mundo. Desculpe por não ter tempo para o café da manhã.
— Camila, não pode sair sem comer nada. Precisa de proteína — Tia Sinu comentou, deixando de lado um pedaço de torrada queimada — Eu posso te deixar na escola.
Camila fez uma careta. Família e escola não combinavam muito bem.
— Hum não se preocupe, vou comprar um donut antes da aula — disse ela alegremente. Dando um beijo na cabeça de Sofia antes de se virar para sair.
— Mas Camila...
— E é provável que eu passe a tarde na biblioteca da cidade ou no parque, então não me espere para o jantar. Tchau!
— Camila...
Camila já estava na porta da frente. Ela a fechou depois de passar, interrompendo os protestos distantes de tia Sinu, e foi para a varanda. E parou.
Todas as sensações ruins da manhã tomaram-na de novo. A ansiedade, o medo. E a certeza de que algo horrível estava prestes a acontecer.
A Maple Street estava deserta. As altas casas vitorianas pareciam estranhas e silenciosas, como se todas estivessem desocupadas, como as casas de um set de filmagem abandonado. Todas davam a impressão de não conter gente, mas sim coisas estranhas que a observavam.
Era isso; alguma coisa a observava. O céu não estava azul, mas leitoso e opaco, como uma tigela gigante virada de cabeça para baixo.
O ar era abafado e Camila tinha certeza de que alguém a olhava. Ela teve um vislumbre de alguma coisa escura nos galhos do velho marmeleiro na frente da casa. Era um corvo, empoleirado imóvel nas folhas amareladas. E era aquilo que a observava.
Ela tentou dizer a si mesma que isso era ridículo, mas de algum modo ela entendeu. Era o maior corvo que vira na vida, roliço e lustroso, com um arco-íris cintilando nas penas do dorso. Ela podia ver cada detalhe dele com clareza: as garras escuras e ávidas, o bico afiado, um olho preto reluzindo. Estava tão imóvel que podia ser um modelo de cera de uma ave pousada ali. Mas, enquanto o olhava, Camila se sentiu corar aos poucos, o calor vindo em ondas pelo pescoço e as bochechas. Porque ele... olhava para ela. Da mesma maneira que os meninos olhavam quando ela usava um biquíni ou uma blusa transparente. Como se a estivesse despindo com os olhos. Antes que percebesse o que fazia, ela largou a mochila e pegou uma pedra ao lado da entrada da casa.
— Sai daqui — disse ela, e ouviu a raiva tremer em sua voz. — Sai! Sai daqui!
Com a última palavra, ela atirou a pedra. Houve uma explosão de folhas, mas o corvo voou sem se ferir. Suas asas eram imensas e o barulho que faziam parecia o de um bando inteiro de corvos. Camila se agachou, de repente em pânico, enquanto ele voava diretamente sobre sua cabeça, o vento das asas agitando seu cabelo louro. Mas ele subiu de novo e circulou, uma silhueta preta contra o céu branco como papel. Depois, com um grasnido áspero, voou para o bosque.
Camila endireitou o corpo lentamente, depois olhou em volta, constrangida. Não acreditava no que acabara de fazer. Mas agora a ave se fora e o céu já parecia estar normal de novo. As folhas tremularam com uma brisa e Camila respirou fundo.
Na rua, uma porta se abriu e várias crianças saíram, aos risos. Ela sorriu para elas e respirou fundo de novo, o alívio dominando-a como a luz do sol. Como pôde ter sido tão boba? Era um lindo dia, cheio de promessas, e nada de ruim ia acontecer.
Nada de ruim ia acontecer — exceto que ela ia chegar atrasada à escola.
O pessoal todo estaria esperando por ela no estacionamento. Eu posso muito bem dizer a todos que parei para atirar pedras num pervertido que estava me espiando, pensou ela, e quase riu. Ora essa, isto teria dado o que pensar.
Sem olhar para o marmeleiro que ficava para trás, começou a andar pela rua o mais rápido que pôde.
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Ela estava presa nos braços de alguém no instante em que colocou os pés no estacionamento da escola. Todos estavam lá, a multidão toda que ela não via há quase dois anos, além de quatro ou cinco parasitas que esperavam ganhar popularidade por associação.
Todos menos Lauren, Camila pensou, subtamente sentindo-se vazia.
— Mila! — Normani quase gritou na sua orelha, desfazendo-se do abraço para ter uma vista melhor. — Você está incrível!
Camila piscou algumas vezes, tentando tirar Lauren da cabeça.
— Mani você... Wow.
Normani tinha crescido pelo menos dois centímetros e estava mais magra e mais parecida do que nunca com uma modelo da Vogue. Ela comprimentou Camila calorosamente e depois recuou.
Ally por outro lado, não tinha crescido nada, e seu cabelo vermelho encaracolado veio até o queixo de Camila enquanto ela lançava seus braços seu redor. Espere um minuto — cachos? Pensou Camila. Ela empurrou a garota menor para trás.
— Allysson! O que você fez com o seu cabelo?
— Você gostou? Acho que me faz parecer mais alta.
Ally afofou a já macia franja e sorriu, seus olhos castanhos brilhando com excitação, seu rosto em formato de coração iluminado.
— Dinah. Você não mudou nada — prosseguiu Camila.
Esse abraço foi igualmente caloroso em ambos os lados. Tinha sentido mais falta de Dinah do que de qualquer outro, Camila pensou, olhando para a garota alta. Dinah nunca usava maquiagem; mas também, com uma pele azeitonada perfeita e grossos cílios negros, ela não precisava. Nesse momento ela estava com uma elegante sobrancelha levantada enquanto estudava Camila.
— Mila! Onde está o seu bronzeado? Achei que tivesse mandado você aproveitar a Riviera Espanhola.
Camila riu.
— Você sabe que eu não me bronzeio.
— Só um minuto; isso me lembra... — Ally interrompeu, pegando uma das mãos de Camila. — Adivinha o que eu aprendi com a minha prima esse verão? — Antes que qualquer um pudesse falar, ela os informou triunfantemente: — Leitura das mãos!
O grupo todo se dissolveu em risadas.
— Riam enquanto podem — disse Ally, nem um pouco perturbada. — Minha prima disse que eu sou vidente.
— A mesma que "previu" você e Troy se casando? — Normani arqueou as sobrancelhas perfeitas, sorrindo.
— Ou a que disse que Yolanda era sua encarnação do passado? — Dinah comentou, abafando o riso.
Camila sorriu torto e Ally fechou a cara com um biquinho.
— Isso não tem graça — disse ela, olhando para palma de Camila. — Agora, deixe-me ver...
— Tudo bem, mas apresse-se ou vamos chegar atrasadas — Camila disse, um tantinho impaciente. Ela não precisava de uma leitura de mãos, precisava ver Lauren.
— Certo, certo. Agora, essa é a sua linha da vida — ou é a sua linha do coração? — Normani e Dinah cairam na risada. — Quietas; estou alcançando o vácuo. Eu vejo... Eu vejo…
— Você vai sair do armário. — Dinah murmurou e um borbulhinho de risadas ecoou pelo grupo.
— Sair sim mas... Você vai correr perigo — a voz de Ally estava abafada e distante. — Apesar — ela continuou depois de um momento, parecendo confusa — De que você vai gostar. — Seus arregalados olhos castanhos se levantaram para Camila com perplexidade antes de quase arremessa-la para longe.
Normani e Dinah trocaram um olhar cínico.
— Mila vai entrar em perigo por sair do armário? — Normani riu.
— Eu me pergunto por quem... — Dinah assoviou na direção de Camila que balançou a cabeça.
— De ninguém, olha o show acabou. Vamos! — ela disse as amigas, vagamente irritada. Sempre achara que truques psíquicos eram justamente aquilo — truques. Então por que estava aborrecida? Só porque naquela manhã tinha quase ficado fora de si...
As garotas começaram a andar em direção ao prédio da escola, mas o ruído de um motor primorosamente ajustado parou todas em suas trajetórias.
— Ora, ora — Normani disse, encarando. — Vejam quem decidirão aparecer.
— Quem decidiu — Dinah corrigiu, entediada.
O reluzente Turbo 911 preto ronronou pelo estacionamento, procurando por um espaço, movendo-se tão preguiçosamente quanto uma pantera perseguindo uma presa.
Quando o carro parou, a porta abriu, e elas vislumbraram o motorista, Camila sentiu o tempo parar.
Seu coração batia acelerado e ela não tinha certeza se estava respirando. O ambiente ao seu redor parecia ter congelado e um friozinho correu sua espinha. Camila ficou tonta.
De onde estava, podia ver um corpo magro e músculos lisos. Jeans desbotados, camiseta apertada, e uma jaqueta de couro com um corte incomum. Seu olhos estão cobertos por um óculos escuro e seu cabelo estava ondulado — completamente escuro.
Camila deixou seu fôlego escapar tão alto que suas bochechas queimaram de vergonha.
Do outro lado do estacionamento a garota pareceu ter ouvido, porque no mesmo instante virou a cabeça para olha-la.
Era ela.
Ha poucos metros de distancia, Lauren Jauregui tirava os óculos escuros. Graciando sua visão com gélidos olhos...
Camila sentiu a confusão tomar conta de seus pensamentos. Seu coração batendo freneticamente.
Lauren estava mais alta definitivamente, mais pálida do que normalmente era, e seus olhos, seus lindos olhos verdes já não eram mais verdes...
Eram de um rico, castanho-dourado.
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