1. Spirit Fanfics >
  2. Com amor, Lizzie >
  3. Verão

História Com amor, Lizzie - Verão


Escrita por: Brokenprince93

Capítulo 1 - Verão


Fanfic / Fanfiction Com amor, Lizzie - Verão

 

                          
Verão. 

Época de férias, sair com os amigos, ir para qualquer lugar distante da escola. Não para mim, que tinha decidido trabalhar nessas férias. Era a condição imposta por minha mãe, caso eu quisesse sua ajuda para comprar um carro. Não que eu me importasse com isso, eu não tinha amigos ou coisa do tipo. Ainda assim, eu preferia estar trancado no meu quarto com meu video game. "Mark, leve isso pra mesa três, por favor." Ouvi a voz doce de Lucy dizer às minhas costas.
"Claro, sem problemas". Peguei os pratos de suas mãos e caminhei até a mesa ao fundo, ao lado das janelas. Tudo o que eu podia pensar era no tipo de carro que minha mãe escolheria para mim, eu definitivamente deveria estar com ela nesse momento. "Aqui está." Eu disse colocando os pratos na pequena mesa.
"Hum... Os ovos mexidos são pra mim, na verdade." Disse a garota do lado esquerdo da mesa.
"Me desculpe." Eu disse um tanto constrangido enquanto mudava a disposição dos pratos.
"Não se preocupe, ela é um tanto chata com essas coisas." Disse a mulher do lado direito. "Nós mesmas poderíamos ter trocado os pratos." Ela lançou um olhar fulminante à garota do lado oposto.
"Não tem problema." Eu disse tentando apaziguar a situação. "Se precisarem de mais alguma coisa, é só chamar." Me afastei o quanto antes da mesa em direção ao balcão onde Elisa me esperava com um sorriso. 
"Vi que já conheceu a garota nova, você não perde tempo, não é?" Me lançou um olhar cínico de quem sabia perfeitamente que eu jamais seria capaz de falar com uma desconhecida intencionalmente.
"Ah, sim, claro. Já estou com o telefone dela e já marcamos de nos encontrar mais tarde." Eu disse. O rosto de Elisa ficou repentinamente pálido enquanto ela olhava algo às minhas costas. Ela sorriu, repentinamente achando graça de algo.
"É mesmo? Bom, então aproveite e diga isso pra ela." Ela apontou um dedo em direção à algo atrás de mim e foi atender algum chamado das mesas. Eu me virei e também devo ter ficado repentinamente pálido ao ver a garota da mesa parada a poucos centímetros de mim, me encarando com uma expressão de dúvida no rosto. E que rosto. Do jeito que estávamos próximos eu não pude deixar de reparar, ela era linda. Seus olhos tinham um tom escuro e intenso de azul, como se pudessem ler sua mente, sugar sua alma. Suas bochechas salpicadas por sardas e separadas por um nariz reto e comprido, talvez um pouco comprido demais. Tudo isso contornado pelas mechas vermelhas de seus cabelos longos e cheios. Sim, eu notei tudo isso nos poucos segundos que tive antes de seus lábios começarem a se mover e ela começar a falar, me tirando do estado de estupor causado por sua surpreendente e próxima beleza.
"Quando pensava em me avisar que temos um encontro?" Sua boca puxou um pouco para o lado no que pareceu um sorriso irônico. Eu fiquei sem reação.
"Ah... Hum... É... Não é bem isso." Eu não sabia como explicar a situação. Sua boca puxou um pouco mais e não me restou dúvidas de que sim, era um sorriso. O mais belo que eu já vira até então. Ela pegou uma caneta do balcão e uma das minhas mãos e começou a escrever algo.
"Você tem mãos frias." Ela disse antes de terminar de escrever e colocar a caneta de volta no balcão. "Bom, você esqueceu o café. Acho que deve estar muito empolgado com o encontro." Eu olhei o que ela havia escrito em minha mão e não acreditei quando vi um aparente número de celular anotado lá. Fiquei olhando para ela sem saber o que dizer. "Então... Acabou o café daqui?" Ela perguntou, me tirando novamente do estado de completa incredulidade.
"Ah, não. Desculpe. Eu ja vou levar." Ela deu as costas e começou a caminhar em direção à mesa no fundo. Eu fiquei lá, parado, observando aquele ser peculiar caminhando com tamanha desenvoltura e confiança.
"Presta atenção, idiota. Não vá estragar tudo." Era Elisa, parada ao meu lado segurando duas xícaras. Fez um movimento de cabeça em direção à mesa onde a garota estava se sentando. Eu peguei as xícaras de sua mão e respirei fundo. Eu teria que fazer isso, era o meu trabalho. Elisa deu um tapa de leve em minha cabeça e se afastou novamente, me deixando ali, sozinho, com meu desafio. Fui caminhando em direção à mesa tentando não olhar diretamente para ela, coloquei as xícaras e murmurei um pedido de desculpas antes de começar a me afastar novamente.
"Então é você quem irá se encontrar com minha filha?" A voz soou às minhas costas como punhais que se cravavam nelas. Eu me virei e olhei para a garota, que estava rindo descontroladamente. Mais uma vez eu não soube o que dizer. Sua mãe me olhava com divertimento. "Boa sorte com isso, rapaz." Ela se virou para sua filha. "Você vai precisar."
                           ***
Eu estava deitado há um bom tempo agora, tivera de fazer hora extra na apertada lanchonete naquele dia, porque quem quer que tivesse que me substituir decidira não ir e havia comunicado sua decisão na última hora possível. Ou assim Lucy explicara. Eu não me importava em ficar até mais tarde em dias normais, era um modo interessante de ganhar um dinheiro a mais e eu não tinha muito o que fazer em casa, de qualquer forma. O problema é que não havia sido um dia normal. Não, eu, de alguma forma, tinha o número de uma garota em mãos, literalmente. Eu tinha o número de uma garota linda em mãos, e não ligaria. Sim, eu ja havia me decidido por isso naquele momento. Não fazia o menor sentido ligar pra uma desconhecida louca que passou seu número pra um cara que ela nunca havia visto na vida. Ou assim eu queria acreditar. 
Eu estava deitado segurando o celular de frente para o meu rosto, olhando para o número que há poucos instantes eu lavara de minhas mãos no banho, quando o celular vibrou repentinamente. "O que foi Elisa?" Eu perguntei sem mais delongas.
"Oi Mark, boa noite! Tudo bem com você?" Perguntou a garota irônica do outro lado da linha, ressaltando sua aparente falta de interesse por meu estado.
"Tá ligando pra saber sobre a menina ruiva, né?" Eu respirei fundo, cansado. Elisa riu.
"Na verdade, eu realmente só queria saber como você está. Me importo com as pessoas, sabe?" Ela disse, ainda rindo. "Mas já que você tocou no assunto, como foi? Já marcou o encontro?" Ela perguntou. O modo como ela fez a pergunta fez todo o processo de ligar para a ruiva desconhecida e marcar um encontro parecer algo casual, rotineiro, que eu fazia todos os dias pela manhã. Eu pensei, por alguns segundos, que talvez estivesse exagerando a respeito da situação e concluí que não, era impossível para mim fazer algo assim.
"Não, eu não vou ligar. Na verdade, eu nem tenho mais o número." Menti. "Se apagou da minha mão ao longo do dia." Um suspiro de decepção fez-se ouvir do outro lado.
"Não sei porque fiquei surpresa, de verdade. Qual o seu problema Mark?" Ela perguntou e desligou, sem esperar por uma resposta. Uma resposta que eu ainda não tinha naquela época.
                               ***
"Mark, não vai trabalhar hoje?" A voz de minha mãe me alcançou no meio de um sonho estranho sobre garotas de cabelos vermelhos, me trazendo de volta ao inexorável mundo real. Ouvi uma leve batida na porta: "Mark, está na hora."
"Já estou acordado mãe!" Eu disse em meio a um bocejo. "Vou descer em alguns instantes." Me virei para o lado na cama, pegando o celular em cima do criado mudo para saber as horas: 09:32. 
"Fiz panquecas, estão em cima da mesa." Minha mãe abriu a porta e me mandou um beijo com uma das mãos. "Cuide-se, te vejo no jantar." E saiu apressada descendo as escadas. Eu esperei até não ouvir mais o barulho de seu carro, que se afastava pela vizinhança em direção à escola em que trabalhava, e me levantei com algum custo. Fui até o banheiro e enfrentei um rosto lamentável me encarando no espelho. O rosto de um adolescente cheio de espinhas com barba rala e um cabelo que implorava por um corte descente. O rosto de um garoto pelo qual nenhuma deusa ruiva iria se interessar, eu pensei. Tomei um banho rápido, escovei os dentes, coloquei as panquecas no microondas e sai correndo pela porta, voltando instantes depois para tranca-la. Eu não precisava realmente chegar as dez em ponto ou antes disso na lanchonete, não é como se Lucy fosse me repreender por pequenos atrasos. Ainda mais após as horas extras cumpridas nos dia anterior. Por alguma razão eu queria sair do quarto, de casa, e respirar um pouco. Talvez para tentar parar de pensar em garotas de cabelos vermelhos. 
Estava caminhando, de cabeça baixa, refletindo sobre tudo isso quando algo bateu com força em mim, me arremessando um metro para trás. Bati a cabeça quando caí e o mundo ficou momentaneamente escuro por alguns instantes. Meu cérebro parecia balançar, solto dentro do meu crânio. Algo pesado estava em cima de mim, abri os olhos e não consegui enxergar coisa alguma, havia algo logo acima meu rosto impedindo a passagem de luz. Algo que cheirava bem.
"Me desculpe, não sei onde estava com a cabeça." A coisa saiu de cima de mim e eu senti o alívio do ar entrando em meus pulmões novamente, realizando a troca eficiente de gases com meu coração, que batia acelerado. Percebi que uma vasta cabeleira vermelha era a coisa responsável por eu não conseguir enxergar anteriormente. E também era a coisa que cheirava bem. Ao abrir os olhos agora, vi um par de olhos azuis escuros me olhando, arregalados. Ficamos olhando um para o outro por algum tempo, sem dizer nada. Notei que ela ainda se encontrava parcialmente em cima de mim, apoiada nos braços esticados aos lados da minha cabeça, ainda me olhando fixamente. Meu coração continuava a bater acelerado enquanto eu olhava para aquele rosto com o qual havia sonhado a noite inteira. Quando meus pensamentos começaram a entrar em ordem, tudo se perdeu novamente. A garota me beijou.
                               ***
"Sem discussões, Mark!" Lucy me encarou de forma que deixava claro que eu não devia abrir a boca. "Tire o dia de folga e volte amanhã, se estiver se sentindo melhor." Eu já havia dito dezenas de vezes antes que estava bem, mas Lucy pareceu confiar mais na menina de cabelos vermelhos que espreitava a discussão da porta da lanchonete.
"Sim, senhora." Eu respondi, um tanto desanimado. 
                              ***
Depois do beijo, um momento de silêncio havia se instalado entre nós, até que a Sra. Winston se aproximou dizendo que viu o que havia acontecido da janela de sua sala e, como não nos levantávamos, resolvera sair para ajudar. Aparentemente, eu havia sido atropelado por uma garota de skate. Uma humilhante forma de começar o dia, eu pensei. Eu tentei dizer à sra. Winston que estava atrasado para o trabalho mas, assim como Lucy, ela pareceu contrariada à essa ideia quando a menina ruiva disse que eu havia batido a cabeça com força. "Você devia ver um médico, Mark!" Começou a velha senhora a dizer "Quer que eu chame uma ambulância?" Continuou ela. Levou certo tempo até que eu conseguisse me livrar da velha, mas a menina ainda me seguia, segurando seu skate ao lado do corpo. "Eu explico pra sua chefe, não se preocupe." Ela lançou o skate à sua frente e pulou em cima dele antes que eu pudesse dizer algo. Ao virar pela esquina próxima, ela se virou e gritou um "Me desculpe!" Em minha direção.
                           ***
Eu estava saindo da lanchonete, depois de Lucy não me deixar trabalhar, quando uma voz me chamou de volta ao local.
"Mark!" Era Elisa, vinha em minha direção com duas latas de refrigerante nas mãos e um olhar cínico no rosto. Me empurrou porta afora e parou, olhando para a menina sentada na calçada com o skate aos pés. "Da pra dizer que é bonita" disse enquanto se virava e me entregava os refrigerantes. "Cortesia da casa" ela sorriu, "podia ter me dito ontem, né?" Ela pareceu chateada mas um leve sorriso me disse que ela compreendia os motivos de eu não ter contado.
"Elisa, eu não planejei nada disso!" Ela me olhou sem acreditar. "Acha mesmo que eu queria ter sido atropelado por uma garota de skate?"
"Atropelado por alguém num skate, Mark?" Ela balançou a cabeça de forma negativa. "Francamente, não tinha desculpa melhor para um encontro?" Não esperou por uma resposta antes de retornar à lanchonete. Deixando-me mais uma vez sozinho com a skatista ruiva. Eu temia por minha vida.
                           ***
"Ei!" A ruiva gritou à minhas costas quando passei direto por ela saindo da lanchonete. "Você ainda está com raiva?" Perguntou ela, me alcançando.
"Eu não estou exatamente feliz por ter sido atropelado por uma louca num skate logo pela manhã, sabe?" Mesmo que essa louca tenha me beijado após o incidente, eu pensei. "Mas não, eu não diria que estou com raiva." Eu estava, só não queria admitir. "Só um pouco chateado por ter perdido um dia de trabalho porque alguém fez questão de falar com cada pessoa que encontrasse que eu bati com a cabeça no chão." Pronto, agora não restava mais dúvidas de que eu estava com raiva. Ela parou de caminhar e eu me virei para ela, um pouco à frente. "Olha, me desculpe..." Eu comecei até ser interrompido por ela.
"Quanto te pagam?" Ela perguntou enquanto tirava notas amassadas e moedas dos bolsos de seu jeans surrado.
"O que você está fazendo...?" Eu perguntei, ainda sem entender.
"Toma!" Ela esticou ambas as mãos em minha direção, contendo todas as variedades de notas e moedas. "Tem 56 dólares e 45 cents aí!" Ela disse, como se isso fosse me convencer a pegar o dinheiro. "Vamos lá, você não ganha mais que isso por dia, não é?" Na verdade, eu ganhava. Pouco mais, mas ganhava. Não quis entrar nesses detalhes, tudo o que eu queria era ir pra casa e me deitar um pouco. Certamente pensando nela.
"Olha, não precisa." Eu disse fechando suas mãos estendidas em minha direção. "De verdade, foi um acidente. Ambos estávamos distraídos." Eu sorri, tentando tranquiliza-la. Ela manteve os braços estendidos, mas sua expressão mudou. Como se uma ideia acabasse de passar por sua cabeça.
"Pegue o dinheiro, Mark." Ela disse brandamente, me olhando de maneira serena e inocente. O fato dela me chamar pelo nome me assustou. Percebi nesse momento que eu ainda não sabia seu nome.
"Ei, não precisa." Eu repeti. "Já disse, não se preocupe com isso." Eu a olhei nos olhos quando disse isso, tentando convencê-la de que eu estava falando sério. "Eu só preciso ir pra casa, descansar um pouco." Meu olhos ainda se direcionavam aos dela, por isso pude perceber a súbita mudança em seu olhar quando eu terminei de falar. Ela passou a me olhar de um modo desafiador, como se eu tivesse acabado de ofende-la. 
"Não, Mark." Ela disse sem aumentar o tom de voz, mas o modo como ela cerrou os dentes me fez perceber que, por alguma razão ainda desconhecida por mim, eu a havia irritado. E não me pareceu uma boa ideia, no momento, irritar uma garota com um skate ao alcance. "Você não vai pra casa." Ela continuou no mesmo tom. "É por isso que estou te pagando, você vai passar o dia comigo." Seu olhos brilharam de uma forma impressionante, me deixando novamente sem saber o que dizer. Algo que, mais tarde, eu viria a perceber como uma característica marcante dela.
"Han...?" Foi tudo o que eu consegui expressar naquele momento. Ela, felizmente, entendeu que se tratava de uma pergunta.
"Sim, senhor" ela veio em minha direção e colocou o bolo de notas e moedas nos bolsos do meu jeans. "Ou você está pensando que é só dar à uma garota o primeiro beijo de sua vida e depois sair caminhando por aí, como se nada tivesse acontecido?" Ela levantou o rosto, ficando a apenas centímetros do meu. "Falando nisso, eu me chamo Elizabeth." Ela deu as costas indo até o seu skate, alguns metros atrás, me deixando com uma sensação de formigamento nos lábios, ansiosos por outro beijo. "Mas pode me chamar de Lizzie."
                              ***
"Tome." Eu disse, passando a ela uma das latas de refrigerante dadas por Elisa anteriormente. "Provavelmente está quente, por ter ficado esse tempo na minha mochila..." Eu dizia antes de ser interrompido por uma explosão de refrigerante. Lizzie abrira a sua lata e agora se encontrava com boa parte do corpo coberto pelo refrigerante de cola, inclusive, e principalmente, seu cabelo. Eu ri. Eu ri tanto que caí para trás no extenso gramado à beira do lago, onde nos encontrávamos sentados.
Ela olhava para a lata com uma expressão de espanto, como se ainda não tivesse caído a ficha do que havia ocorrido.
"Mark..." Ela começou a dizer, aparentemente se esforçando para se controlar. "Diga que você não balançou a lata de propósito antes de me entrega-la..." Continuou ela, cerrando os dentes da mesma forma que fizera anteriormente. Outra característica dela que eu notaria com o tempo, ela sempre falava dessa forma quando estava com raiva. Sempre. 
Eu me surpreendi com a pergunta, pelo tom sério com que ela a fizera e porque esse tipo de coisa era algo que jamais passaria pela minha cabeça. Mas, logicamente, Lizzie não me conhecia o suficiente para saber disso. Ainda.
"Claro que não!" Eu respondi, parando de rir. "Por que eu faria algo assim?" Ela me olhou por algum tempo antes de se decidir por acreditar. Ainda hoje eu penso que aqueles olhos podiam ler minha mente.
"Droga, eu vou ficar toda pregando..." Ela esticava os dedos das mãos, que provavelmente já estavam grudando uns nos outros. Levou uma das mãos aos cabelos cor de fogo e percebeu o maior dano causado pela explosão dos químicos açucarados. "Merda! Por que eles têm que colocar tanto açúcar nessas coisas?" Ela bufou e abaixou a cabeça, olhando para a grama.
"Bom, não posso fazer nada quanto aos efeitos do açúcar na pele... Ou nos cabelos..." Eu disse enquanto remexia em minha mochila a procura de uma toalha pequena que sempre levava comigo. "Mas posso te ajudar a não ficar molhada!" Encontrei a tolha e joguei para ela, que começou a se secar imediatamente.
"Valeu, Mark!" Ficamos em silêncio por algum tempo, enquanto ela se secava e eu observava o lago, calmo na leve brisa de verão. 
"Então, o que te trouxe à cidade esse verão?" Ela calmamente terminou de secar seus cabelos antes de responder.
"Problemas na família" ela começou, abaixou a cabeça e ficou olhando para suas mãos, sua mente em algum outro lugar distante dali. "Meus pais se divorciaram, então minha mãe decidiu se mudar pra cá e me trouxe com ela." Ela levantou a cabeça e me olhou, com um meio sorriso. "Você a conheceu, ontem na lanchonete."
"Ah, sim. Eu me lembro" Como eu poderia esquecer duas ruivas tão peculiarmente lindas. "Vocês se parecem muito uma com a outra." Eu disse e ela riu. "Sinto muito pelo divórcio também..." Eu completei.
"Nah, não se preocupe. Tá tudo bem agora." Seu celular tocou em algum ponto dos seus apertados jeans e ela precisou se levantar para tirá-lo do bolso. Olhou para o número que estava ligando e simplesmente ignorou, se sentando e mantendo o celular na mão. "Me fale sobre você, Mark."
"Algo em particular que você queira saber?" Eu perguntei "Minha vida é bem desinteressante, sabe? Melhor te entediar apenas com o que você quiser saber." Ela se deitou na grama, olhando o céu e aparentemente pensando no que perguntar.
"Huum..." Ela murmurou depois de um tempo. "Por que você não me ligou ontem?" Ela perguntou naquele tom, aparentemente normal, que me assustava. Pensei bem numa resposta que não a fizesse cerrar os dentes novamente.
"Eu tenho dificuldades com essas coisas..." Eu comecei. "Eu não costumo ter encontros, então não sei bem como agir." Ela podia ficar brava, mas ao menos era a verdade.
"Eu entendo." Disse ela, aparentemente sem nenhum sinal de raiva. "Eu vi você dizendo aquilo pra sua amiga na lanchonete e meio que percebi que você estava sendo irônico, mas como eu ainda não conhecia ninguém aqui, resolvi aproveitar." Ela sorriu, aparentemente encabulada. "Me desculpe por isso, Mark."
"Tudo bem, não se preocupe." Olhando para ela, eu não achava que ela teria muita dificuldade em fazer amigos na cidade. Ainda assim, agradeci ao universo pela oportunidade. "Você fará muitos amigos quando as aulas começarem, não tenho dúvidas." O celular dela tocou rapidamente, aparentemente recebendo alguma mensagem, que ela leu imediatamente.
"Droga, tinha me esquecido." Ela se levantou rapidamente, pegando seu skate jogado na grama. "Desculpe Mark, eu realmente preciso ir, a gente se vê depois" e saiu correndo em direção à rua. Eu fiquei lá, sentado, observando aquela obra prima da natureza se afastar com os cabelos balançando com se fossem chamas descontroladas em seu couro cabeludo. Ela definitivamente seria popular aqui. Ou em qualquer outro lugar que decidisse viver.
                            ***
Sábado. OITO HORAS DA MANHÃ. Achei importante contextualizar isso porque alguém teve a audácia de bate na porta do meu quarto nesse dia e horário. Sim, depois de eu ter passado a noite jogando vídeo game e indo dormir apenas às seis da manhã. "Mark, você tem visitas." Mães possuem uma estranha habilidade de nos acordar apenas com o som de sua voz. Pelo menos a minha costumava ter esse poder sobre mim, não importando o quão profundamente eu estivesse dormindo, eu sempre acordava ao ouvir sua voz. Um poder que também pode ser uma maldição.
"Mande embora e diga pra voltar depois!" De preferência em uma hora decente, eu pensei enquanto tentava voltar a dormir.
"Oi, Mark!" Uma voz feminina, que não era a da minha mãe, soou do lado de fora da porta. Me sentei abruptamente na cama ao som daquela voz. Seria um sonho?
"Acho que você terá que dizer isso pessoalmente, querido." Ouvi a voz da minha mãe novamente, o som dos passos nos degraus da escada indicava que ela estava se afastando, me deixando sozinho com aquele ser do lado de fora da porta. "Como essas adolescentes estão atrevidas hoje em dia." Eu a ouvi resmungar em direção ao andar de baixo. Definitivamente não era um sonho, ela estava mesmo aqui. Embora eu não fizesse ideia do porquê.
"Mark, posso entrar?" Perguntou a garota girando a maçaneta da porta.
"Não!" Eu gritei desesperadamente, pulando da cama em direção à porta. Tarde demais. A porta se abriu e Lizzie deu de cara comigo, instantes antes de eu alcançar a porta para impedi-la.
"Bom dia, Mark!" Disse a garota, sorrindo. Depois abaixou os olhos e seu rosto repentinamente adquiriu um tom de vermelho semelhante à cor de seus cabelos. "Oh, você dorme pelado..."
                          ***
"Olá, Mark!" Disse a ruiva mais velha quando passei pela porta dos fundos da casa em direção ao pequeno quintal, onde a mulher estava organizando algumas mesas e cadeiras. "Que bom revê-lo!" Disse enquanto deixava de lado a organização e abria os braços para me receber em um abraço. A mulher cheirava a algo adocicado, como canela. "Você não está com uma cara muito boa, está tudo bem?"
"Sim, só não dormi muito essa noite." Eu respondi. A mulher sorriu e disse para eu ficar à vontade no local, antes de se virar e retomar a organização do pequeno espaço gramado. Pelo que Lizzie explicara no caminho, elas dariam uma pequena festa para conhecer melhor os vizinhos. Eu não vi muito sentido nisso, ainda não conhecia boa parte deles e não via motivo para tal. Mas talvez fosse apenas eu sendo antissocial demais.
Lizzie parou à porta dos fundos, aparentemente procurando por algo, que pareceu encontrar quando me viu. Caminhou até a mesa onde eu estava e colocou uma xícara com algo quente à minha frente.
"Vai te ajudar a acordar." Ela disse, ainda evitando me olhar nos olhos depois do incidente da manhã.
"Obrigado" eu disse, peguei a xícara e tomei um pequeno gole do café preto e quente, que desceu queimando pela minha garganta. Ficamos em silêncio enquanto eu tomava vagarosamente a amarga bebida trazida por Lizzie, até que eu quebrei o silêncio: "vocês precisam de ajuda com a organização?" Eu me atrevi a olha-la agora, achei curioso vê-la sem seu velho jeans e suas camisas cortadas. Ela estava com um vestido de um tom claro de azul, que contrastava com o azul escuro de seus olhos, acima das bochechas altas e sardentas. Algum antepassado dela certamente foi um viking, eu pensei. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo e ela usava pequenos brincos brilhantes em cada orelha.
"Não, não se preocupe. Ainda temos tempo e provavelmente minha mãe terminará bem antes." Ela olhou para a mulher arrumando um arranjo de flores em um vaso e sorriu. "Ela é muito perfeccionista, sabe? Melhor não nos metermos em sua organização." A mulher percebeu o olhar da filha e sorriu de volta.
"Por que não vão dar uma volta? Só não se esqueçam de voltar antes do almoço, isso aqui ainda vai levar algum tempo." Disse a mulher. Era um bonito sábado de verão, não haviam muitas nuvens no céu, que brilhava da cor do vestido da garota sentada à minha frente.
"Quer ir até o lago?" Perguntou a dona do vestido cor de céu. Eu confirmei com um aceno de cabeça, ainda hipnotizado por tamanha perfeição.
                               ***
"Em que você acredita, Mark?" Perguntou a garota sentada à minha frente, enquanto jogava pequenas pedras, que pegara pelo caminho, no lago que se estendia amplo à sua frente. Eu estava deitado na grama, olhando para o céu em um estado parcial de sonolência.
"Em que sentido?" Eu perguntei, num esforço para me manter acordado. A garota parou de atirar pedras e se deitou ao meu lado, virei a cabeça e a vi fitando o céu, pensativa.
"Acha que é pra lá que iremos, quando morrermos?" Eu virei minha cabeça para o céu novamente, pensando. Eu não acreditava em Deus, mas não tinha certeza se era isso que ela queria saber.
"Difícil dizer." Eu comecei. "Tem muita coisa lá." Eu apontei o imenso azul com um movimento de cabeça. Pude sentir ela se virar para mim, esperando que eu me explicasse. "Estrelas, planetas, galáxias..." E o vazio, eu pensei. Um imenso e, talvez, infinito vazio.
"Nada se perde, tudo se transforma..." Ela disse, voltando a olhar para o céu. "Li isso em algum lugar, e por algum motivo não consigo parar de acreditar nessa afirmação..." Ela suspirou lenta e longamente, absorta em seus pensamentos, antes de continuar: "Talvez nossa consciência também não se perca, sabe?" Ela não esperou por uma resposta. "Talvez simplesmente se transforme em... Em alguma outra coisa..." Disse ela, como se essa outra coisa fosse algo de menor importância. Tive a impressão de que, de alguma forma, isso era algo que a atormentasse.
"Isso é algo que a preocupa?" Eu perguntei, sem me virar para ela. Ela não respondeu, ignorou a pergunta e começou a cantar uma canção antiga, que eu não ouvia há muito tempo:

"Because all of the stars, 
are fading away.
Just try not to worry, 
you'll see them someday..." 

Sua voz, de alguma forma, possuía um efeito relaxante em mim. Como se eu pudesse dormir para sempre e esquecer de tudo, desde que o ar nao parasse de passar por aquelas magníficas cordas vocais, produzindo aquele hipnótico som. Ela parou de cantar, seu silêncio me trazendo de volta ao mundo real. Se virou para mim, perguntando: "É isso o que você quis dizer?" Parecendo não ter tomado conhecimento da minha pergunta anterior, ela continuou: "As estrelas..." Ela sussurrou próximo ao meu ouvido, fazendo meu corpo inteiro arrepiar. "Nós as veremos... Um dia...?"
"Não sei..." Eu respondi, olhando para um céu claro e sem nuvens e pensando se algum dia eu subiria naquela direção. "É isso o que você deseja?" Perguntei, ela pareceu notar essa pergunta.
"Eu só não quero desaparecer, deixar de existir por completo..." Foi a minha vez de me virar para ela, nossos rostos tão próximos que eu podia sentir sua respiração. 
"Você não vai. Enquanto alguém se lembrar de você, você continuará a existir." Eu disse, tentando não soar muito clichê. "Mesmo que seja apenas como uma representação na mente de alguém..." Na minha, por exemplo, eu pensei.
"Você se lembraria de mim, Mark?" Sua voz saiu baixa, apenas um sussurro. Fui capaz de perceber cada palavra se formando em seus lábios. Eu pensei em tantas respostas para essa pergunta, mas nenhuma delas se concretizou em palavras. Tudo o que pude fazer foi ficar olhando dentro de seus olhos, na esperança de que aquele intrigante e misterioso órgão tingido de azul pudesse ler minha mente mais uma vez. Lágrimas começaram sair de dentro deles, caindo e molhando a grama com seu líquido salgado. Minha próxima sensação foi a de seus lábios encostando nos meus, pude sentir o gosto de suas lágrimas, não mais um privilégio exclusivo do gramado abaixo de nós, enquanto sentia sua língua tocar a minha. 
A garota lera meus pensamentos novamente.
                           ***
Não havia sinal de tristeza no rosto sardento da menina ruiva que conversava alegremente com seus novos vizinhos, apesar de sua aparente vulnerabilidade apenas há algumas horas antes. Todos ao seu redor pareciam se encantar pela facilidade com que ela conversava e interagia com eles, inclusive eu, que estava encostado à uma parede na sala, apenas observando-a.
"Encantadora, não é?" Era a mãe dela, uma mulher muito bonita, que de forma alguma aparentava ter mais do que trinta anos. Ruiva, nariz comprido e bochechas altas, que davam uma forma rasgada aos olhos azuis escuros. Não havia dúvidas de que ela possuía algum laço sanguíneo próximo com Lizzie; se tivesse que apostar sem as conhecer, no entanto, diria que eram irmãs. Ela enxugava as mãos em um pano, observando enquanto Lizzie pegava um garoto no colo e girava-o pela sala apinhada de móveis e convidados, o garotinho dando gargalhadas de prazer.
"Sim" eu disse sorrindo. Foi tudo o que eu pude dizer no momento. A mulher suspirou, colocou o pano nos ombro e ficou me olhando, com um sorriso triste em seu rosto.
"Precisamos conversar, Mark." Ela disse, olhando de relance para a menina ruiva que estava sendo atacada sem piedade por três crianças risonhas. "Acho que agora é um bom momento, venha comigo." Disse, fazendo um sinal com a cabeça em direção à porta dos fundos. 
Já estava anoitecendo, o pequeno quintal gramado estava vazio sob as primeiras estrelas que pontilhavam o céu. Ela se sentou em uma mesa mais afastada, com um suspiro de alívio. "Ah, finalmente posso me sentar um pouco." Eu me sentei de frente para ela, que me olhava fixamente com seus incômodos olhos azuis, como os herdados por sua filha. "Sua mãe esteve aqui até pouco antes de vocês voltarem." Eu devo ter transparecido surpresa, porque logo em seguida ela explicou, sorrindo. "Aparentemente Lizzie a convidou quando foi chamá-lo essa manhã."
"Ah, entendo. De qualquer maneira, me desculpe por nos atrasarmos para o almoço." Eu disse, tentando explicar o motivo de não chegarmos a tempo, como o combinado. "Acabamos perdendo a noção do tempo" concluí, envergonhado. A mulher deu uma curta gargalhada, seus olhos se iluminaram em um brilho de malícia.
"Sei bem como são essas coisas, não se preocupe." Ela piscou um olho pra mim, em um sinal de compreensão, o que me deixou ainda mais envergonhado. "Não acho que sua mãe tenha se importado também, ela disse que não via a hora de você fazer amigos." Ao perceber que eu ainda estava sem coragem de encara-la, ela tocou meu queixo com um dedo indicador e levemente levantou minha cabeça, me forçando a olhar para ela. "Não há pelo que se envergonhar, Mark." Disse a mulher com um sorriso tranquilizador. "Desde que você a trate bem, isso jamais será um problema." Algum pensamento súbito passou por sua mente, fazendo com que sua expressão mudasse instantaneamente. "Oh, eu ainda não lhe disse meu nome, não é?" Perguntou ela enquanto passava as mãos pelos cabelos vermelhos, prendendo-os em um coque frouxo no alto da cabeça. "Me chamo Melissa." Apresentou-se a mulher. "Caso Lizzie ainda não tenha lhe dito." Estendeu uma mão de dedos longos e elegantes em minha direção, em uma apresentação um tanto tardia. Eu segurei-a por alguns instantes e pude sentir o calor que se desprendia delas. "Você tem mãos frias." Comentou ela, assim como sua filha alguns dias atrás. Ficamos em silêncio, enquanto ela me encarava com uma expressão de dúvida, como se pensasse em como iniciar a conversa. "Bom, Mark..." Ela suspirou, finalmente tomando coragem para começar. "Existem certas coisas, sobre Lizzie, que acho que você deveria saber de antemão..." Disse ela. Ficamos em silêncio novamente, enquanto ela olhava para o céu, ao crepúsculo. Eu estava pensando sobre o quão sério seriam tais coisas que eu deveria saber, quando uma voz vinda da porta dos fundos da casa desviou minha atenção.
"Mãe, Richard chegou." A voz soou um tanto fria, com uma autoridade difícil de se imaginar em uma garota de dezesseis anos. A mulher à minha frente se levantou, seu corpo ficando subitamente tenso. As duas olhavam fixamente uma para a outra, como se conversassem telepaticamente. Melissa acenou resignadamente com a cabeça uma vez, em um gesto que me pareceu ser de concordância, e se virou para mim: "Teremos que conversar outra hora, Mark" disse ela, com um pequeno sorriso, colocando uma mão em meu ombro. "Cuide bem dela, rapaz." Piscou novamente um olho para mim e saiu caminhando em direção à porta, onde Lizzie estava parada, com os braços cruzados, como se estivesse de guarda no local. "Ele é todo seu agora" disse a ruiva mais velha, quando a mais nova abriu passagem para que ela entrasse. Lizzie ficou olhando para dentro por um tempo, antes de se virar e caminhar até mim.
"Sobre o que falavam?" Perguntou ela, parando a meio caminho da mesa onde eu estava, me encarando com uma expressão vazia e os punhos cerrados com força aos lados do corpo, esperando minha resposta.
"Hum... Não muita coisa." Comecei a dizer. "Ela queria conversar sobre nós dois. Disse que tinha que me contar algo, aí você chegou..."
Ela continuou me encarando, os olhos fixos nos meus, com uma expressão assustadora. Provavelmente lendo minha mente, como sempre, eu pensei.
"Você tem que ir, Mark." Ela disse, abaixando a cabeça e olhando para seus pés, calçados em sandálias trançadas até os joelhos. A brisa do início da noite balançando suavemente seu vestido azul e seus cabelos presos. "Já está tarde."
Eu fiquei surpreso ao ouvi-la me mandar embora daquela maneira, mas, ainda assim, decidir não questionar. Era a casa dela, afinal de contas.
"Tem razão" eu disse enquanto olhava as horas em meu relógio: 19:35. Me levantei, passando direto por ela, em direção à porta. Ela não fez menção de me seguir, enquanto eu entrava na casa e me dirigia à porta da frente. Ao chegar à sala, notei que Melissa ainda estava se despedindo dos últimos convidados que restavam no local, congestionando a porta pela qual eu pretendia passar. Após alguns instantes, ela pareceu me notar ali, de pé, esperando e acelerou suas considerações finais aos vizinhos retardatários.
"Já está indo?" Ela perguntou, após  despachar o último convidado e fechar a porta atrás de si. Pareceu consternada quando eu confirmei com um aceno de cabeça. "Droga." Esbravejou ela tirando uma mecha de cabelo vermelho, que escapara de seu coque improvisado, dos olhos. "Foi por minha causa, não é?" Perguntou ela, mais para si mesma do que para mim. "Espere aqui, não vá ainda." Disse ela, indicando um sofá próximo com a cabeça e dirigindo-se com passos apressados até à porta dos fundos. Fiz o que ela mandou e me sentei, de cabeça baixa, olhando para minhas mãos cruzadas em meu colo. Esperando não ser a causa de um conflito entre mãe e filha. 
Alguns minutos depois, ouvi passos na escada às minhas costas, demonstrando que havia mais alguém na casa. Me virei e vi um par de pernas descendo os degraus que levavam ao segundo piso. Pernas que pertenciam à um homem que acabara de alcançar o primeiro piso. 
"Melissa...?" Chamou o homem se virando para a cozinha, procurando pela mãe de Lizzie. 
"Hum... Ela está lá fora com Lizzie, senhor." Eu disse. Ao me ouvir, o homem dirigiu sua atenção para a sala, local onde eu estava. Ele ficou repentinamente pálido ao me ver, de pé, olhando para ele. Imagino que eu deva ter ficado da mesma cor ao vê-lo, parado a poucos metros de mim. A pessoa que eu mais odiava em toda a minha vida.
"Mark...?" Disse o homem, ainda surpreso, sem saber o que dizer, apenas olhando fixamente para mim. "Mark..." Ele tentou falar novamente, quando eu me apressei em direção à porta e saí para a rua, correndo deliberadamente em direção à minha casa. "O que ele estava fazendo ali?" Eu me perguntava, sem obter nenhuma resposta que fizesse sentido. Sentia uma raiva crescente dentro de mim, a mesma raiva que sentira alguns anos atrás. 

"O que aquele homem estava fazendo ali...?"
                               ***
Nove anos atrás; fora a última vez que eu vira aquele homem. Não foi tempo o bastante para que eu esquecesse seu rosto, no entanto.
"Mark, está tudo bem com você?" A voz de minha mãe soou em algum lugar da casa.
"Sim, mãe. Só estou um pouco cansado." Menti. "Vou dormir, boa noite!" Menti novamente.
"Não vai nem tomar banho?" A voz em algum ponto da casa me alcançara novamente. Eu não respondi. Apenas fiquei lá, deitado em minha cama, olhando para o teto. Pensando.
                             ***
Lizzie tentara me ligar durante toda a manhã de domingo; como eu dormi até às duas da tarde, nem tomei conhecimento de suas ligações. Não que isso fizesse diferença, também. Eu não a teria atendido, de qualquer forma. O sol brilhava forte lá fora, seus raios penetravam no quarto, através da cortina cinza, e espalhavam sua luz de forma irregular por todo o abafado espaço. Infelizmente, eu notei, não poderia passar o resto do dia no quarto; eu estava com fome. Me levantei (passei a dormir de cueca para minimizar futuros incidentes) e me arrastei até o banheiro. Tomei um banho rápido, me vesti e desci até a cozinha em busca de algo para comer. O dia estava realmente lindo, apesar do calor infernal. Aparentemente, minha mãe não estava em casa, provavelmente estava visitando minha tia Sarah, que adoecera recentemente. Me sentei em frente à tv comendo o que sobrara de uma pizza de sexta à noite, subitamente me lembrando de que esta era a ultima semana das férias de verão. "E eu aqui assistindo na TV à um urso polar rolando na Neve" pensei. Meu celular tocou ao meu lado, no sofá. 
"Olá, mãe." Atendi, terminando de comer uma última fatia de pizza velha, enquanto o urso, que aparentemente era uma fêmea, rugia ameaçadoramente para a câmera na TV.
"Que bom que acordou, filho." Começou minha mãe "deixei lasanha no forno pra você, dá uma olhada quando estiver com fome!" Tarde demais, eu pensei enquanto mastigava os remanescentes da pizza de dois dias atrás.
"Obrigado, mãe! Olharei sim." Eu respondi. Ela se despediu rapidamente, me dizendo para não deixar louça suja e que voltaria à noite. Resolvi desligar a tv e estava subindo para o meu quarto novamente quando a campainha tocou. Parei por uns instantes na escada, pensando se deveria ignorar e continuar o percurso até o quarto. "Nada de bom bate à porta num domingo" eu pensei. Suspirei, desanimado, e fui até a porta da frente.
A garota parada lá não disse nada ao me ver, ficou apenas me olhando com uma expressão triste em seu rosto.
"Sim...?" Eu disse, não estava com muita paciência para momentos como aquele.
"Posso entrar...?" Perguntou a garota, logo em seguida mostrando um pacote que estava escondendo às costas. "Trouxe cheeseburger."
                               ***
"Lucy me disse que fez do jeito que você gosta, não vai comer...?" Perguntou a garota sentada à minha frente na pequena mesa da cozinha, se referindo ao pacote pardo deixado sobre a bancada. Eu ainda estava com raiva, e vê-la ali, à minha frente, só piorava a situação. Lembranças do homem voltaram à minha memória, as recentes e as de muito tempo atrás; formando uma grande confusão em minha cabeça. Definitivamente não era uma boa hora para conversar com ela.
"Não estou com fome" eu respondi. Estava evitando olhar para ela, e ela provavelmente havia notado isso, apenas decidira não comentar nada a respeito. O som dos ponteiros do relógio pendurado na parede era a única coisa que impedia o completo silêncio no ambiente. Pude senti-la desconfortável com a situação, enquanto se remexia em sua cadeira, mas não olhei para ela, preferi manter os olhos fixos em algum ponto da mesa.
"Me desculpe por ontem" ela começou a dizer. Vi suas mãos ansiosas se entrelaçarem sobre o ponto da mesa para o qual eu estava olhando, talvez em uma tentativa de controlar o tremor, eu pensei. "Não devia ter te tratado daquela forma". Repentinamente, veio à minha mente a lembrança de Lizzie, no pequeno quintal de sua casa na noite anterior, dizendo que eu devia ir embora. Seu corpo tenso e rígido enquanto me dirigia um olhar fulminante. Incrível como eu pude me esquecer daquela cena, eu pensei enquanto me lembrava mais claramente do dia anterior. Até então, o encontro com o homem na casa de Lizzie era tudo em que eu havia conseguido pensar. Comecei a me perguntar se ela sabia quem ele era, enquanto ainda mantinha os olhos fixos em minhas mãos.
"Tudo bem, não tem problema" eu respondi. "Era a sua casa, afinal de contas" completei após um momento. Ela bufou, pude sentir sua impaciência através de seus dedos tamborilando sobre o granito da mesa, num aparente esforço para manter a calma.
"Sim, Mark" começou ela, pausadamente. "Mas isso não me dá o direito de ser grossa com ninguém lá". Pude sentir seus poderosos olhos presos em mim. "Principalmente com você..." Concluiu ela. Eu não fazia ideia do que ela queria ouvir de mim, e eu realmente não estava com humor para esse tipo de conversa no momento.
"Tá, tudo bem" eu disse, querendo encerrar logo o assunto. "Sem ressentimentos". Olhei para ela pela primeira vez e me forcei a dar um sorriso, percebendo em seguida, pelo modo como ela me olhou, que não havia sido muito convincente. Havia algo familiar no modo como Lizzie me olhava; uma angústia que eu já vira antes, como os olhos de alguém que carrega muito dentro de si para poder suportar. Alguém prestes a desabar a qualquer momento. Minha mãe costumava ter olhos assim, eu me lembrei.
"Ele quer conversar com você, Mark..." Disse ela em um tom baixo, desviando os olhos para seus dedos longos, esticados sobre a mesa. Então ela sabia quem ele era, afinal de contas. Aquilo já era demais para mim, eu não suportaria falar sobre isso naquele momento, acima de tudo com ela. Me levantei da mesa e fui até a torneira pegar um pouco de água, enchendo o copo e tomando de uma só vez. O relógio continuava incessantemente do seu lugar na parede, sempre nos lembrando do tempo que estávamos perdendo. Eu podia sentir seus olhos em minhas costas, me encarando, esperando para ver como eu reagiria. "Você..." Começou ela, dando uma leve tossida quando sua voz falhou. "Você não precisa fazer isso... Se não quiser..." De repente vieram à minha mente um milhão de teorias. Teorias sobre as quais eu talvez estivesse me recusando a pensar até então. A mais promissora delas era uma que deixava bastante claro que Lizzie só se aproximara de mim por causa daquele homem, talvez tentando me aproximar dele. Naquela época eu ainda não sabia que teorias nem sempre se aplicavam na prática.
"Lizzie, você tem que ir" eu disse, ironicamente repetindo o que ela havia me dito no dia anterior. Eu não conseguia mais suportar estar com ela, falando sobre tal assunto. A menina baixou os olhos, e eu pude notar as lágrimas que começaram a descer por seu rosto, quando me virei. Elas deixavam longas trilhas molhadas por suas bochechas altas, minúsculas gotas se prendendo em seus longos cílios. Ela pareceu hesitar por alguns instantes, enquanto passava uma mão no rosto, desfazendo a trilha de lágrimas. Então, respirou fundo, finalmente parecendo tomar uma decisão.
"Me desculpe, Mark" disse ela, logo antes de sair a passos largos em direção à porta da frente. Pude escutar o barulho da porta batendo com força quando ela a fechou, ao passar. Após isso, um silêncio perturbador tomou conta da casa. Apenas o maldito relógio ainda se fazia ouvir. Fiquei um tempo parado, contando os segundos pelo ritmo dos ponteiros, de pé na cozinha vazia. Veio até mim o cheiro do cheeseburguer trazido pela garota, me fazendo lembra de sua presença solitária em cima da bancada. Minha cabeça doía, como se agulhas espetassem meu crânio de dentro para fora. Eu precisava me deitar um pouco mais, pensei, enquanto pegava o pacote na bancada e jogava-o no lixo.
                            ***
"Então você sabia?" Eu perguntei, olhando a rua vazia pela janela. Estava anoitecendo quando minha mãe finalmente chegara em casa. Ela me lançou um olhar preocupado que durou alguns instantes antes de responder.
"Sim... Bom, mais ou menos." Começou ela. "Ele me ligou pouco antes do início do verão, dizendo que voltaria para a cidade." Ela não me olhou enquanto falava, passando uma mão pelos cabelos castanhos espessos antes de retomar: "Parece que conseguiu um emprego no hospital da universidade, como chefe de algum departamento." Concluiu ela. Então ela também sabia, eu pensei. Tive a sensação de que havia sido  completamente manipulado, como uma criança.
"E nunca passou pela sua cabeça conversar com seu filho sobre isso?" Eu disse, aumentando o tom de voz gradativamente enquanto falava, sem me dar conta. "Como você pôde perdoa-lo tão facilmente?" Eu provavelmente estava gritando nessa hora. Me lembro bem da expressão triste no rosto de minha mãe enquanto me ouvia; isso provavelmente não era algo fácil para ela também, ainda assim, ela lidava com isso de uma maneira muito melhor do que a minha. Algo que eu não pude entender na época, eu só conseguia enxergar uma mulher passiva, derrotada, que em nada lembrava a professora que teve de lutar e derramar sangue para nos sustentar, há um tempo atrás. "Você já esqueceu tudo o que ele fez?" Eu a olhava sem entender. "Tudo o que passamos por culpa daquele merda?" Aparentemente ela tivera um dia longo cuidando de minha tia. Mesmo isso não foi motivo para que eu sentisse pena, ao contrário, seu cansaço a fazia parecer indiferente à esse assunto; algo que era de extrema importância pra mim.
"Calma, Mark." Pediu ela, soltando o ar que pareceu prender enquanto eu gritava pela sala. "Eu não sabia que ele estava na casa com as Murray." Disse, se referindo à Lizzie e Melissa. "Senão eu provavelmente não teria ido àquele almoço." Seus olhos encontraram os meus, buscando compreensão, sem jamais encontrar.
"Ele chegou ao anoitecer" eu disse. Repentinamente uma questão passou por minha cabeça: "Quem te contou que ele estava lá?" Perguntei, já com uma suspeita em mente.
"Richard me ligou, hoje pela manhã." Ela disse, sem dar mais explicações. Apenas a menção daquele nome fazia meu sangue ferver. Saí de perto da janela e comecei a circular pela sala, sem saber para onde ir.
"Preciso sair um pouco" eu disse. Eu não queria mais pensar sobre esse assunto, eu não queria mais estar ali olhando para minha mãe, eu precisava ficar sozinho. De preferência ao ar livre. "Te vejo mais tarde" Disse enquanto me dirigia até a porta. A voz de minha mãe, às minha costas, me fez parar no batente.
"Ele ainda é seu pai, Mark" lembrou ela; suas palavras me atingindo como uma flecha. Por mais óbvio que fosse, era algo que eu não costumava pensar. "E pode esquecer do carro esse verão." Continuou ela. "Talvez isso o ensine a não gritar com sua mãe dessa forma." Fechei a porta às minhas costas e caminhei em direção à noite. Sem carro, sem Lizzie... Sem pai.
                                ***
"Então, vai me contar o que aconteceu entre você e Lizzie ou eu terei que te bater até você dizer?" Perguntou Elisa de algum canto da cozinha, enquanto eu lavava vagarosamente a pilha de pratos, talheres e xícaras sobre a bancada. Me virei para ela, sem entender.
"Você a conhece?" Perguntei, achando estranho a naturalidade com que ela falou da outra garota; que até alguns dias atrás era referida como "a garota nova". Ela revirou os olhos, num gesto de impaciência.
"Claro, ela é minha prima." Disse ela, me lançando um olhar malicioso. Elisa era uma garota bonita, mesmo em seu horário de trabalho; quando vestia seu avental e prendia seus cabelos loiros de tom desbotado. Ela deve ter percebido minha expressão de surpresa, porque deu uma risada e, em seguida, continuou: "eu falei pra ela sobre você" disse enquanto se aproximava e se sentava no lado da bancada que já estava livre de louças sujas. "Olhando agora, parece que foi um erro..." Fingiu uma expressão pensativa, colocando a ponta de um dedo indicador nos lábios. "Vai me falar sobre o que aconteceu, ou terei que te afogar nessa pia?" Perguntou, olhando para a água cheia de gordura. 
Mais uma mentira. Mais uma vez eu havia sido manipulado, eu pensei. Parei o que estava fazendo e fiquei observando a água se esvair pelo ralo, até sobrar apenas a sujeira da louça. "Não quero falar sobre isso" disse, enquanto tirava as luvas e as jogava para ela. "O resto é com você". Ela as pegou, e ficou me observando retirar o avental, pensativa.
"Eu fui até a casa dela ontem" começou ela enquanto calçava uma luva em sua mão direita. "E ela não quis se quer sair do quarto e conversar comigo" continuou ela, calçando a da mão esquerda. "Logo..." disse quando finalizou. "Imaginei que era bem provável que você tivesse algo a ver com isso, já que minha tia também não quis me contar nada." Ela veio até mim com uma velocidade que eu jamais poderia esperar e me empurrou contra a parede, me prendendo pelo pescoço com seu antebraço direito. "Para o seu próprio bem, Mark; eu desejo de todo coração que você não tenha nada a ver com isso." Disse ela em um tom que poderia ser tido como normal, se não fosse pela presente situação de estar me sufocando com seu antebraço. Ela me olhava de um modo que teria me assustado em uma situação normal; sua raiva estava explícita em cada músculo de seu rosto. Talvez tivesse me assustado, eu pensei, se eu me importasse. O que definitivamente não era o caso, naquele presente momento. Não, eu não me importava em apanhar de uma garota na cozinha suja de uma lanchonete. Fiquei olhando para ela, seus olhos castanhos atentos para qualquer movimento súbito de minha parte, esperando que ela fizesse o que achasse melhor. Ficamos um tempo nessa situação, eu com uma expressão demonstrando que não me importava e ela com uma expressão demonstrando que estava falando sério; até  que, finalmente, Lucy entrou, empurrando a porta com uma força completamente desnecessária, fazendo com que batesse a centímetros do local onde Elisa havia me encostado.
"Mark..." Começou ela e parou, ao não me ver na pia. Elisa já estava pegando um prato da pilha quando eu me dei conta de que ainda estava na mesma posição em que ela me prendera poucos segundos antes. "O que está fazendo aí?" Perguntou Lucy, me puxando para fora da cozinha sem esperar por uma resposta. "Tem alguém querendo falar com você, vamos!" A imagem de Lizzie veio imediatamente à minha mente. Tudo o que eu não precisava no momento era ter que lidar com ela ali. "Aqui está." Disse ela para alguém do lado de fora do balcão. "Não demorem muito, sim?" Levantei a cabeça e vi o rosto de Lizzie à minha frente, parecendo um pouco mais alta do que o normal. 
Demorei um pouco a notar que não era ela, afinal de contas.

"Olá, Mark" disse Melissa. "Acho que temos uma conversa para terminar."
                           ***
A mulher remexia em seu café sistematicamente com uma pequena colher, sem ainda haver experimentado um único gole da bebida preta e forte que ela pedira. Eu pude notar bolsas escuras abaixo de seus olhos, ressaltando seu azul peculiar e incômodo, enquanto ela levantava sua xícara à altura do nariz e respirava os vapores que emanavam dela. Nenhum de nós falara desde que havíamos nos sentado na pequena mesa ao canto, próxima à uma janela que dava para a rua da frente. O Carl's não costumava ser um lugar muito agitado, as pessoas vinham, comiam e iam para suas casas, escolas ou trabalhos. Ninguém costumava passar mais tempo do que o necessário para uma refeição na pequena lanchonete, aberta pelo falecido marido de Lucy, o velho Carl. Naquele momento, especificamente, haviam apenas mais duas pessoas além de nós. Eu havia me cansado de observar a mulher e seu ritual com a xícara de café.
"Isso vai demorar muito?" Eu perguntei de forma direta. Não via motivos para ser muito educado ou simpático naquela situação. A mulher começou a bebericar seu café vagarosamente, fechando os olhos à cada gole que descia por sua garganta, como se fosse a última xícara que tomaria em sua vida. Ela colocou a xícara de volta na mesa e me encarou, com olhos que não deixavam transpassar nada do que estivesse pensando.
"Não, não pretendo tomar muito de seu tempo" falou ela, desviando os olhos novamente para a xícara. Ela usava uma camisa xadrez justa, com dois botões abertos e mangas dobradas acima dos cotovelos; seus cabelos, um pouco mais escuros que os da filha, caíam livres sobre seus ombros. Não dava para dizer que meu pai tinha mau gosto, eu pensei. Já não podia dizer o mesmo sobre ela. "Primeiramente" começou ela, retornando seu olhar para a minha direção. "Acho que lhe devo um pedido de desculpas" ela suspirou, parecendo um tanto cansada. Eu não disse nada, apenas esperei que ela continuasse, observando suas unhas roídas em torno da pequena xícara branca. "Entendo..." Disse ela, ao receber meu silêncio como resposta. "Eu sei que não estou em condições para tal, mas queria lhe fazer um pedido" eu me mantive em silêncio, não querendo prolongar aquela conversa por tempo desnecessário. No entanto, algo em minha expressão deve ter entregado alguma curiosidade sobre o pedido, porque a mulher continuou como se eu tivesse perguntado a respeito. "É sobre Lizzie..." Disse ela, mordendo o lábio e parecendo nervosa ao falar sobre o tema de seu pedido. "Queria que você não a culpasse, Mark" Ela olhou direta e fixamente para mim, como se pudesse enxergar minha alma naquele breve momento, se é que eu possuía uma, e eu pude notar sinceridade e súplica em seus olhos cansados. "Existem... Existem muitos fatores envolvidos que você desconhece." Continuou ela, se virando e olhando para a janela, observando a rua com olhos vagos e perdidos. Era uma linda tarde de verão, céu azul e uma leve brisa com força suficiente para balançar alguns galhos das árvores do outro lado da rua. "E infelizmente eu não estou autorizada a lhe contar sobre nenhum deles, embora eu não concorde com isso" disse ela, fazendo questão de explicitar a última parte. Eu me encostei na cadeira, esticando minhas pernas e cruzando meus braços, também observando o lado de fora da lanchonete. "O que eu quero dizer é... não é culpa dela, Mark" pude sentir que ela estava me observando, mas não desviei os olhos da rua lá fora. "Direcione sua raiva à mim. Se Richard estava lá naquele dia, foi por minha causa..." Eu respirei fundo à menção daquele nome, me lembrando que eu também tinha perguntas a fazer.
"Vocês sabiam?" Eu comecei, tentando controlar a raiva. "Sabiam que ele é meu pai? Sabiam sobre tudo o que ele nos fez passar, quando simplesmente foi embora, sem dizer nada?" Eu perguntei, me sentando mais próximo à mesa e atento a qualquer expressão que seu rosto pudesse entregar. O que foi absolutamente nada, devo dizer.
"Sim. Eu sabia, ele mesmo contou... Muitas vezes até" falou ela, tentando não dizer mais que o necessário. "Mas não é por ele que eu estou aqui agora, Mark." Seus olhos cansados pareceram lacrimejar por alguns instantes, até que ela passou uma mão sobre eles, e a máscara de imparcialidade retornou à seu rosto. "Lizzie... Isso não é justo com ela." A mulher voltou os olhos ao café que esfriava sobre a mesa. "Por favor, não a culpe por isso, não sinta raiva dela por isso... Está sendo muito doloroso para ela, Mark." Eu realmente não tinha motivos concretos para estar com raiva de Lizzie, eu pensei, exceto a teoria de que ela só havia se aproximado de mim por causa do meu pai.
"Há quanto tempo estão juntos... Você e aquele homem?" Eu perguntei, me percebendo subitamente desesperado por informações. "Porque ele decidiu voltar depois de tanto tempo?" A mulher me lançou um olhar de piedade, balançando a cabeça em um gesto de negação. Talvez por perceber que Lizzie não era importante para mim naquele momento, que eu tinha muitas perguntas sobre o homem em sua casa. Ela se levantou, procurando algo em sua bolsa, e retirou uma nota de cinco de sua carteira, deixando-a sobre a mesa. Em seguida, pegou sua xícara e tomou-a de uma só vez, colocando-a de volta na mesa com um baque. "Não estamos juntos, Mark." Disse ela enquanto me olhava friamente. "Eu e Richard... Não é como você pensa..." ela disse, me olhando de forma séria e intensa. "Por favor, pense sobre o que lhe disse sobre Lizzie". A mulher se virou, caminhando até a saída. Era incrível como elas se assemelhavam até mesmo na maneira confiante de andar, como se estivessem sempre onde queriam estar, familiarizadas com tudo ao seu redor. Eu fiquei sentado um tempo, observando enquanto ela entrava em seu carro e partia. 
Tá bom, eu pensei, era hora de admitir que, de alguma forma, Lizzie era importante para mim. E talvez fosse estupidez, mas eu devia fazer algo a respeito.
                             ***
"Sobre o que minha tia veio conversar com você?" Elisa estava me esperando do lado de fora da lanchonete quando eu saí. Seus cabelos estavam soltos, caindo ondulados por seus ombros. Ela até parecia ser uma daquelas garotas comuns, eu pensei, não fosse pelo cigarro entre seus dedos.
"Ela quer que eu vá falar com Lizzie" eu respondi. Não foi exatamente esse o assunto, mas eu não queria entrar em detalhes. Me encostei na parede ao lado da garota fumante, olhando o baixo movimento da rua à frente da lanchonete.
"E você vai?" Ela perguntou, dando um trago no cigarro e soprando a fumaça para o alto. Eu não era exatamente amigo de Elisa, mas havia algo que sempre nos aproximava. Talvez fossem nossas inúmeras diferenças e discordâncias, mas, se eu tivesse que afirmar algo a esse respeito, eu diria que é o pouco que temos em comum que nos aproxima. Nós sabíamos o que era passar por dificuldades em casa, coisa que poucos nessa cidade poderiam dizer.
"Eu não sei..." Eu disse, olhando para os meus pés, calçados em um par de tênis pretos e gastos. "O quão mal ela está?" Eu perguntei. Elisa jogou o que sobrou do cigarro no chão e pisou em cima.
"Vamos" disse a garota fazendo um sinal com as mãos para que eu a seguisse até seus carro. "Melhor você ver por si mesmo." Ela foi caminhando à frente, com sua regata rasgada e seu velho (talvez único) jeans, sem esperar por uma resposta, não parecendo estar interessada no que quer que eu pudesse opinar a respeito. Não custa nada tentar, eu pensei, resignado. Comecei a acompanhá-la quando subitamente me lembrei de algo.
"Vai indo, esqueci algo na lanchonete" eu disse enquanto me virava  e voltava correndo, indo buscar meu trunfo.
                                ***
"Bom, o jeito vai ser entrar sem nos anunciarmos" disse Elisa após ficarmos dez minutos tocando a campainha e batendo na porta. Por alguma razão, aquilo não me parecia uma boa ideia.
"Elisa" eu comecei "Se alguém nos ver, pode pensar que estamos mal a intencionados e chamar a polícia!" A garota riu, enquanto levantava uma das  pedras de tamanho considerável, utilizadas para cercar o pequeno jardim que percorria a entrada da casa, e pegava uma chave escondida sob ela.
"Não seja idiota, Mark" disse enquanto abria a porta. "Eu sou da família." Ela entrou à minha frente e me esperou passar para fechar a porta às minhas costas. O local estava escuro e abafado, raios dispersos de sol entravam pelas pequenas brechas deixadas pelas pesadas cortinas que tapavam as janelas da sala. O silêncio era total, como se não houvesse ninguém no local.
"Lizzie" chamou Elisa enquanto subia os primeiros degraus da escada para o segundo piso. "Lizzie, sou eu, Elisa." Eu comecei a subir atrás da garota e pude notar que seu jeans possuía um rasgo em um local um tanto interessante do ponto de vista em que eu me localizava.
"Hora de comprar jeans novos" eu comentei. Elisa se virou abruptamente, seu rosto, provavelmente vermelho, me encarando dois degraus acima na escura escadaria. 
"Cala a boca, Mark!" Me deu um soco no braço e começou a subir novamente, tapando o rasgo com uma das mãos. "Lizzie, você está aí?" Disse ela quando alcançou o corredor no segundo andar. Terminei de subir e a encontrei de frente á segunda porta à direita, me olhou por um momento e se voltou para a porta, batendo levemente com os nós dos dedos. "Lizzie, só queremos conversar com você." Me aproximei dela e pude ouvir movimentos vindos do cômodo atrás da porta, que se abriu, revelando um leão com uma espessa juba avermelhada e cara de poucos amigos.
"Queremos...?" Murmurou o leão com a voz fraca. Elisa deu um passou para o lado, deixando espaço para que Lizzie pudesse me ver.
"Sim, viemos ver como você está." Disse ela fazendo um movimento com a cabeça em minha direção. A garota ruiva abriu a boca em um gesto de completa incredulidade, e a manteve assim, parecendo incapaz de fecha-la. Me encarando com olhos arregalados.
"Oi" eu disse, mostrando meu trunfo com a mão direita. "Trouxe cheeseburguer".
A garota gritou.
                            ***
"Precisava ter gritado daquele jeito ao ver o garoto?" Perguntou Elisa à sua prima, que estava deitada no sofá acima de nós, que ficamos esparramados no carpete de frente à ela. A menina havia devorado o cheeseburguer com uma rapidez assustadora, fazendo jus à sua aparência de alguns minutos atrás, e agora limpava o ketchup remanescente em suas bochechas, lambendo-o nos dedos.
"Você viram o estado do meu cabelo." Começou ela, enquanto limpava suas mãos sujas de gordura na blusa de seu pijama azul. "Era de se esperar que reagisse daquela forma, não é?" Elisa riu.
"Não, seria de se esperar que algum de nós reagisse daquela forma." Disse a garota loira. Meu olhos se encontravam com os de Lizzie com frequência, sempre causando certo desconforto em ambos quando isso acontecia. Elisa pareceu notar também. "Bom, vocês têm muito o que conversar" começou ela enquanto se levantava, deixando o desconcertante rasgo em seu jeans novamente à vista. "Preciso ir" disse olhando as horas em seu celular. Depois se virou em nossa direção com um olhar malicioso. "Comportem-se crianças, não façam nada que eu não faria." Lizzie sorriu, lançando um olhar desafiador à sua prima.
"Claro, desde que você prometa comprar calças novas." Elisa revirou os olhos por um instante antes de seguir para a porta, pegando suas chaves na mesinha ao lado do sofá. O silêncio predominou novamente no ambiente após o baque da porta se fechando. Talvez eu devesse ir também, eu pensei. Lizzie se levantou de seu lugar no sofá e se sentou bem à minha frente, com suas pernas cruzadas, me encarando com aqueles malditos e desconfortáveis olhos, que podiam enxergar além do que eu queria mostrar. Pegou uma de minhas mãos e começou a esfrega-la com as ambas as suas. 
"Minha mãe te mandou aqui?" Perguntou ela, não parecendo irritada com o fato de eu ter conversado com sua mãe, dessa vez. Ainda assim, pensei com cuidado antes de responder, finalmente me decidindo pela verdade.
"Mais ou menos. Ela passou no Carl's hoje, mas foi Elisa quem me disse que você não estava se sentindo bem." E que me fez vir aqui também, eu pensei. A menina balançou a cabeça algumas vezes em um sinal de concordância, enquanto mantinha minhas mãos entre as suas. Eu não podia esperar mais, precisa falar sobre o homem da noite do último sábado. Precisava entender mais sobre o papel de Lizzie naquilo. Precisava saber o que ele estava fazendo aqui. "Lizzie..." Eu comecei, enquanto ela olhava para minha mão, presa entre as suas. "Sobre aquele homem, de sábado..." Ela balançou a cabeça súbita e freneticamente de um lado para o outro.
"Não, Mark." Começou ela, me encarando com olhos sérios. "Não vou falar sobre ele, isso é assunto de vocês." Ela continuou me encarando, talvez buscando algum sinal de compreensão. "Eu..." Começou ela novamente, quando eu não disse nada. "Eu gosto de você" disse ela, antes de parar de falar por alguns segundos, deixando suas últimas palavras vagarem livre e desconfortavelmente pelo ambiente. Eu sabia o que eu deveria dizer, e sabia, também, que não o diria. Muito por culpa do homem de sábado, que insistia em voltar à minha mente sempre que eu olhava para Lizzie. Ela pareceu notar isso. "Você não o verá mais aqui, Mark" disse ela. Era oito da noite e o dia ainda estava claro lá fora, feixes de luz perpassavam espaços da janela não cobertos pela pesada cortina na sala das Murray. "Aquilo foi um acidente, e eu acho que enquanto vocês não decidirem conversar sobre tudo, eu minha mãe não devemos nos meter." Eu respirei fundo, apesar de ouvir atentamente tudo o que ela havia dito, eu ainda queria fazer algumas perguntas. Fixei meu olhos nas mãos que envolviam as minhas.
"Ele e sua mãe... Eles..." Eu comecei, sem ter necessidade de terminar. Ela balançou a cabeça em um sinal negativo, e acredito que notou a confusão que se formou em minha cabeça também.
"Se quiser detalhes, receio que terá que falar com ele." Disse ela, em resposta aos meus pensamentos. "Prometemos que ninguém falaria de assuntos dos outros naquela mesma noite, depois que você saiu." Lizzie ficou encarando nossas mãos unidas em seu colo, parecendo pensativa. Queria poder ler a mente dela, eu pensei. "Eu, mais do que qualquer um, não posso ser a primeira a quebrar o pacto" concluiu ela, ainda olhando nossas mãos. O barulho da tranca da porta atraiu minha atenção repentinamente, seguido pelo som de passos e sacolas.
"Ah, oi Mark!" A linda ruiva mais velha me olhava da entrada da sala, carregando sacolas nas duas mãos. "Elisa me disse que o encontraria aqui!" Foi até a cozinha e voltou com apenas algumas sacolas do que parecia ser comida chinesa.
"Trouxe o jantar" disse a mulher sorridente.
                                ***
"Vou tocar essa sexta no bar do Luke" comentou Elisa, enquanto caminhávamos até seu carro. Era o fim do expediente no dia seguinte à nossa visita na casa de Lizzie, e eu achei estranho ela ter comentado sobre seu show, eu nunca havia ido a nenhum deles antes e ela provavelmente sabia que as chances de eu ir a esse eram mínimas. Minha explicação veio no comentário seguinte.
"Lizzie quer ir com você" disse a garota loira, me observando com cautela. Não falei nada, não sabia ao certo em que situação eu me encontrava com Lizzie no momento. O jantar na noite anterior havia sido alegre e divertido, com as duas ruivas se divertindo com fato de eu ser um total desastre ao lidar com o "hashi", ou os palitos que os asiáticos insistem em usa pra comer, como eu costumava chamar. Ainda assim, foi estranho me despedir dela antes de ir; como se ainda houvesse muito a ser dito. O que de fato havia, eu pensei, de ambas as partes. Elisa se encostou em seu carro, apoiada na porta do passageiro aberta. "Está tudo bem entre vocês?" Ela perguntou, me encarando. Eu retribuí o olhar, pensando no que responder, enquanto me lembrava da conversa na última noite.
"Ela..." Eu comecei, engolindo em seco. Eu não sabia porque contaria isso à Elisa, mas era algo que estava me incomodando e eu precisava desesperadamente de ajuda. Essa é a única explicação que consigo encontrar hoje pra ter falado com ela a respeito disso na época. "Ela disse que gosta de mim..." Eu disse, me sentindo aliviado ao perceber que Elisa não estava rindo. Ela continuou me observando, sua expressão vazia não deixava transparecer nada do que estivesse pensando. Algo que, aparentemente, eu era o único que não conseguia fazer.
"Entra no carro, Mark." Disse ela, enquanto dava a volta pela parte da frente de seu pequeno e velho fusca azul, se dirigindo ao assento do motorista. Fiz o que ela pediu e pude notar imediatamente o característico cheiro de cigarros que sempre predominava no interior do pequeno veículo. Elisa havia fechado a porta e agora encarava o pára-brisas à sua frente, as duas mãos apoiadas no volante. "Acredite nela" ela falou, repentinamente se virando para mim. "Eu sei que parece estranho, vocês se conhecem a pouco tempo e tal..." Continuou ela. "Mas vocês têm muito em comum, Mark" Ela se virou novamente e deu a partida no carro, que respondeu com o típico e exagerado barulho do motor.
"Como o quê?" Eu perguntei, atento à garota que manobrava cuidadosamente o carro para sair do estacionamento da lanchonete.
"Bom, vocês dois foram abandonados por seus pais, para começar" Ela notou minha expressão de surpresa e continuou. "Imaginei que ela ainda não teria te contado sobre isso, acho que eu mesma só sei porque o pai dela era meu tio" ela me deu uma olhada rápida enquanto entrávamos na rua e seguíamos rumo à minha casa. "Elas parecem não gostar muito de falar no assunto... Até porque o tio Josh já morreu, de qualquer maneira." Morreu, eu pensei. Lizzie havia me dito que tinha se mudado porque seus pais se divorciaram... Por que essa garota está envolta em tantas mentiras? Eu me perguntei enquanto observava a conhecida paisagem pela pequena janela do fusca. "Enfim, talvez tenha sido isso que tenha me feito falar de você para ela" disse Elisa enquanto virava à direita e seguia pela rua da minha casa. "Ou talvez não, o fato é que apostei que podia dar certo. Você não é tão ruim, afinal de contas..." Ela encostou o carro do lado oposto à minha casa, observando um luxuoso carro preto que estava parado em frente à garagem. "Acho que você tem visitas" comentou. Ela chegou um pouco para frente no banco, tentando enxergar melhor a figura idosa encostada no carro do outro lado. "Aquele não é..." Começou ela antes de eu a interromper.
"É, é ele mesmo" eu disse, sem nem olhar para o homem me esperando do lado oposto da rua, não conseguiria imaginar outra pessoa que poderia dirigir um carro como aquele até a minha casa. Elisa ficou me encarando por um tempo, sem saber o que dizer.
"Mark..." Começou ela novamente. Eu estava olhando para minhas mãos, dispostas em meu colo, pensando nos motivos que poderiam ter levado aquele homem até ali. Era muita coincidência meu pai e meu avô aparecerem ao mesmo tempo na cidade, eu pensei. E por mais cético que eu pudesse ser, eu não acreditava em coincidências.
"Obrigado pela carona" eu disse, me despedindo de Elisa enquanto saía do carro. Num último esforço, a garota se esticou e puxou meu braço antes que eu pudesse fechar a porta, me olhando por um tempo antes de falar.
"Ligue pra ela, Mark" pediu ela. "Por favor..." Eu demorei um pouco a entender que ela estava falando de Lizzie. Fiquei olhando-a por um tempo, buscando em minha memória recente o assunto sobre o qual falávamos antes de eu ver o carro em frente à minha casa. Então, percebendo que eu já estava completamente tomado por outros assuntos, ela simplesmente fechou a porta do carro sem me exigir nenhuma confirmação. Disse apenas um "Te vejo na sexta" enquanto partia novamente com o carro. Isso provavelmente significava que ela não trabalharia mais essa semana, provavelmente teria treino de futebol. Fui caminhando lentamente até o carro preto parado à garagem, observando o homem velho e careca que estava encostado nele, me esperando, enquanto fumava um cigarro.
"Essa não é aquela namoradinha que você tinha quando era mais novo?" Perguntou o velho enquanto eu me aproximava, se referindo a Elisa. "Qual era mesmo o nome dela?" Continuou ele ao não obter resposta da primeira pergunta. "O que faz aqui?" Eu perguntei, olhando diretamente nos olhos de meu avô.
                            ***
"Então você vai simplesmente nos abandonar, é isso?" A mulher de cabelos escuros estava sentada em um poltrona, os cotovelos apoiados nos joelhos enquanto suas trêmulas mãos se agarravam a um copo com água que ela já nem se lembrava mais de beber. O homem caminhava de um lado a outro na espaçosa sala de estar, suando em uma camisa parcialmente desabotoada. Ele parou e encostou a cabeça na parede, os olhos fechados em aparentemente cansaço.
"Não há outro jeito." Disse ele, abrindo momentaneamente os olhos e encarando a parede lisa e fria. "Eu volto, Selma." Ele experimentou olhar para a mulher sentada na poltrona com detalhes em madeira escura, seus olhos desfocados estavam direcionados ao copo em suas mãos, mas ele sabia que ela nem sequer tinha consciência do objeto de vidro.
"Você volta..." Disse ela, dando uma risada nervosa. "A quem você pensa estar enganando, Richard?" Seus olhos se encontraram com os dele de maneira tão intensa que o forçaram a virar o rosto.
"Me desculpe... Me desculpe..." Começou o homem, chorando copiosamente. "Eu sou fraco, Selma..." Ele resistiu à intensidade do olhar da mulher, dessa vez. "Você sempre soube disso... E ainda assim você sempre ficou do meu lado, sempre me deu força." Ele balançou a cabeça de forma negativa repetidamente, antes de continuar. "Mas dessa vez eu não consigo, sinto muito..." A mulher se manteve em silêncio, absorvendo tudo o que ouvira.
"Seu pai está matando pessoas, Richard..." Começou ela, escolhendo bem suas palavras, tentando não perder o controle de sua raiva. "Você vai simplesmente fingir que não vê? Vai simplesmente fingir que não está acontecendo?" O homem engoliu em seco, procurando uma maneira de deixar tudo aquilo menos doloroso.
"Ele sabe, Selma." Ele pôde notar o espasmo de surpresa que percorreu o corpo da mulher sentada. "Sim, ele sabe o que estamos fazendo. Sabe sobre nós e acho que sabe sobre o Josh também..." Ele esperou para ver se a mulher teria algo a dizer sobre isso, mas ela apenas o encarou em silêncio. "Ele não vai fazer nada... Com vocês, eu quero dizer. Mas eu tenho que me afastar... Só Deus sabe o que pode acontecer se ele desconfiar que ainda estamos metidos nisso..." Essa nova informação parece ter causado o efeito esperado na mulher. Ela havia abaixado a cabeça em aparente sinal de resignação, de que havia entendido a situação.
"Então você vai abandonar sua mulher, seu filho e seu melhor amigo para salvar sua maldita bunda?" Gritou a mulher, repentinamente se levantando e arremessando o copo na direção do homem que se desviou no último instante possível, enquanto o copo explodia na parede em um mistura de cacos de vidro e água.
"Não é só da minha vida que estamos falando aqui..." Começou a gritar o homem, quando um garoto com não mais que nove anos de idade entrou na sala, olhando para ambos os adultos com uma expressão assustada. O homem interrompeu imediatamente o que dizia, olhando o garoto com uma expressão de intenso sofrimento no rosto. Deu alguns passos em direção ao menino, quando a voz da mulher, vinda de algum ponto da sala, o fez parar.
"Não se aproxime dele." Sua voz sairá trêmula e desafinada, mas com uma autoridade inquestionável. "Se é isso mesmo o que você quer, então vá." Completou a mulher apontando para a porta. O homem hesitou por alguns instantes, olhando do menino para a mulher repetidamente. Lágrimas caíam de seu rosto quando ele pegou o paletó jogado em cima do sofá e saiu pela porta em direção à rua. A mulher se aproximou do garoto e o abraçou, lágrimas que escorriam  sem controle por seu rosto molhavam os cabelos sempre bagunçados do menino.
"O papai vai voltar?" Ela pôde ouvir a voz abafada de seu filho vinda de algum lugar em meio à seus braços.
"Não, Mark. O papai fugiu..."
                           ***
"Eu queria começar me desculpando, eu sei que não fui de grande ajuda quando Richard os deixou..." O velho estava sentado confortavelmente na pequena poltrona estampada, ele usava um terno azul escuro, sob medida, que realçava sua barriga proeminente. Pude notar que minha mãe não havia ficado nem um pouco feliz em vê-lo, mas ainda assim decidiu ouvir o que ele tinha a dizer. "Tenho plena consciência de que não foram momentos fáceis e que, de alguma forma, eu deveria ter me responsabilizado pela estupidez de meu filho." O silêncio percorreu o ambiente durante alguns instantes, sendo interrompido pela voz fria e direta de minha mãe.
"O que você quer aqui?" Disse ela, observando-o sem desviar os olhos. Poucas vezes a vi falando dessa forma, como se o mundo estivesse sob sua autoridade; era assustador. O velho aparentemente não se surpreendeu ou se ofendeu com a maneira direta com que a pergunta foi feita pela mulher, que não tirava os olhos dele.
"Sim... Bem, vamos direto ao ponto." Ele se ajeitou mais confortavelmente na poltrona antes de continuar. "Eu quero compensar vocês por toda a minha negligência ao longo desses anos..." Começou ele, fazendo uma breve pausa antes de continuar. "Entendo que o garoto esteja às vésperas de seu último ano no colégio e, bem, eu poderia colocá-lo em qualquer universidade do país." Ele me olhou, com um sorriso no rosto de quem sabe que tem um ótimo trunfo em mãos. Eu não soube como reagir àquilo, o que fez com que o sorriso no rosto do velho aumentasse, exibindo uma série de dentes perfeitos demais para sua idade. Eu mesmo nunca soube o quão rico ou influente meu avô era. Sempre soube que ele vivia bem, no entanto, nunca tive uma real dimensão de seu poder aquisitivo.
"Porque isso agora?" Era a voz da minha mãe, me tirando de meus devaneios. "Vai me dizer que acordou hoje com uma repentina vontade de começar a se importar com seu neto?" O velho parou de sorrir ao ser atingido pela ironia da mulher.
"Nunca é tarde para se arrep..." Começou ele antes de ser interrompido pela mulher que se levantara de seu lugar no sofá.
"Você já deixou claro o que quer" falou ela no mesmo tom frio e autoritário. "Não precisava nem ter se incomodado em abrir a boca, o fato de ter reaparecido ao mesmo tempo que seu filho já deixa tudo muito claro para mim." Os dois se olharam por um tempo sem dizer nada. O velho se levantou lentamente de seu assento, desamassando seu paletó com as mãos. "Muito bem, então." Disse ele, sem tirar os olhos da figura magra que era minha mãe. "Fico feliz em saber que fui claro." Notei um brilho diferente em seus olhos ao dizer isso, embora talvez apenas minha mãe tenha entendido o porquê. Ele se virou para mim, sorrindo novamente. "A proposta ainda está de pé rapaz." Falou ele, tirando um cartão do bolso interno de seu paletó. "Se estiver interessado em um emprego de verdade, também estou à disposição." Disse enquanto deixava seu cartão na pequena mesa de centro. "Tenham uma boa noite." Se dirigiu até a porta, com minha mãe seguindo-o de perto e parecendo aliviada ao fecha-la às suas costas. Eu peguei o cartão que fora deixado sobre a mesinha e fiquei olhando o nome e o número que ele exibia. 
                         Joseph Faitz
Levantei os olhos e vi que minha mãe me observava com uma expressão que não me dava ideia alguma do que se passava por sua cabeça, ainda encostada à porta de entrada. 
"Nem pense nisso, Mark..." Ela disse, vindo rapidamente em minha direção com intenção de tirar o cartão de minhas mãos.
"Mãe..." Eu comecei, mantendo o cartão fora de seu alcance. "Você ouviu o que ele disse?" Ela parou de tentar pegar o cartão e ficou parada, me olhando enquanto aguardava o que eu tinha a dizer. "Qualquer - Universidade - Do - País." Eu disse, da maneira mais pausada e clara que consegui. "E imagine o quanto deve pagar o emprego que ele me ofereceu!" Minha mãe balançou a cabeça negativamente, passando a mão sobre seus cabelos espessos e escuros.
"Você não conhece esse homem, Mark." Ela falou, me olhando com o rosto sério. "Mas eu o conheço, e não quero meu filho perto daquele tipo de coisa." Ela estendeu a mão em minha direção, à espera do cartão. "Estamos entendidos?"
Eu coloquei o cartão em sua mão, e ela imediatamente o rasgou em pedaços milimétricos. Mal sabia ela que eu havia decorado o número.
                             ***
"Fique sempre o mais longe que puder desse homem, Mark." Foi o que minha mãe não parou dizer na tal conversa. Eu tentei argumentar; afinal de contas, o velho se ofereceu para me colocar em qualquer universidade do país. Não que eu fosse ter dificuldades para entrar em uma boa instituição, eu sempre tivera ótimas notas e era presidente e fundador do clube de cinema da escola. Sem contar as boas referências que eu teria por uma parte considerável de meus professores. 
Ainda assim, não seria uma má ideia ter uma vaga garantida em uma boa universidade sem ter que passar pelo burocrático processo de entrada. Mas minha mãe foi irredutível quanto a isso, era pra eu ficar o mais longe possível do velho e sua influência. "Esse homem já fez coisas muito ruins, Mark." Disse ela na ocasião, sem dar mais detalhes. "E é bem provável que ainda faça." 
                               ***
"Você já quis tocar o céu?" A pergunta veio de algum lugar à minha direita. Eu estava sentado ao chão, encostado na parede externa da lanchonete. Lizzie havia vindo me fazer uma visita, por não ter muito o que fazer em casa, segundo ela. Assim, Lucy me dispensou pelo resto do dia, dizendo que o baixo movimento não justificava me prender ali em um dia tão bonito. Eu não questionei, afinal de contas, eu seria pago normalmente.
Então, lá estávamos nós, dois adolescentes sentados à sombra numa tarde de quarta-feira. Meus olhos estavam fechados enquanto eu absorvia os sons do ambiente ao meu redor: carros  e pessoas que passavam, pássaros que cantavam, árvores que balançavam ao vento...
"Voar, você quer dizer?" Eu perguntei, ainda em meu estado de relaxamento. Ela estava sentada em seu skate, encostada na parede à meu lado.
"Sim... Simplesmente subir e deixar tudo isso para trás..." Respondeu ela. Eu abri um olho, contemplando um céu azul e livre de nuvens. Pensando em como aquela parecia uma excelente ideia.
"Sim, o tempo todo..." Eu suspirei, amaldiçoando a gravidade por tornar aquela ideia impossível. 
"E você?" Eu perguntei.
"Também..." Foi tudo o que ela se limitou a dizer. O silêncio predominou mais uma vez entre nós, preenchido apenas pelos sons ao nosso redor. Agora era uma boa hora, eu pensei. Olhei para a garota sentada ao meu lado, com sua camisa xadrez e seu short que aparentemente havia sido uma calça em algum momento do passado, e me espantei novamente com o modo com que sua beleza me intimidava. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo, deixando sua orelha repleta de piercings à mostra.
"Lizzie..." Eu comecei. Ela se virou para mim, me permitindo notar a profundidade do azul presente em seus olhos. Azuis como um mar tempestuoso. "Você disse que gostava de mim, no dia em que fui à sua casa..." Ela desviou o olhar rapidamente, encarando o chão com repentino interesse. Notei que suas bochechas começaram a corar levemente. "O que... O que isso significa...?" Eu também comecei a encarar o chão à minha frente, imaginando figuras desenhadas no concreto. Ela demorou um pouco a responder, tanto que eu comecei a me arrepender de ter perguntado.
"Eu não sou como as outras pessoas, Mark..." Começou ela, lentamente. Aparentemente, o tempo que ela levou se devia ao fato de estar pensando na melhor forma de responder. "Eu não posso me dar ao luxo de trocar olhares ou ter conversar tímidas e constrangedoras com alguém antes de começar a decidir se gosto ou não..." Olhei para ela, novamente, e a vi ainda fitando o chão, suas mãos de dedos longos e elegantes se mexiam de maneira nervosa entre seus joelhos. "O que eu quero dizer é... Essas coisas têm uma intensidade maior em mim..." Ela se virou e seus olhos se encontraram com os meus, em busca de compreensão. "Eu não posso perder oportunidades, Mark..." Disse ela sem desviar os olhos dos meus. Eu já estava completamente hipnotizado nesse momento. Era bem provável que o que quer que ela dissesse fizesse sentido para mim naquela hora, tudo o que eu conseguia notar era a maneira com que seus lábios se mexiam para dar forma àquelas palavras. "É por isso que no momento em que eu o vi... Eu já sabia que..." Ela engoliu em seco, voltando a olhar para o chão. Seu rosto em um tom de vermelho semelhante ao de seus cabelos. Eu esperei que ela concluísse, não estava pronto para falar ainda. "Eu já sabia que eu gostava de você... Eu já sabia que queria estar com você..." Falou ela de uma só vez. Eu fiquei em silêncio, como sempre sem saber o que dizer em situações importantes. "Me desculpe, Mark... Eu sei que tudo isso parece estranho e não deve fazer nenhum sentido pra você..." Ela me olhou novamente enquanto eu estava observando um grupo de pássaros voando próximos às arvores do outro lado da rua.
"Lizzie..." Eu comecei, repentinamente me lembrando do que Elisa havia me pedido. "Quer ir ao show da banda da Elisa comigo nessa sexta?" Me virei para ela como alguém que tem certeza que obterá uma resposta satisfatória. Eu não podia estar mais certo, eu pensei enquanto olhava para a garota cujo sorriso fazia meu coração parar de bater por alguns milésimos de segundos. Naquele momento eu tinha certeza de que poderia tocar o céu, desde que ela jamais parasse de sorrir.
                                ***
"O quê? Acha que eu sou velha demais pra me divertir?" O sorriso no rosto de Melissa deixava claro que ela não havia se ofendido de verdade pela minha surpresa ao saber que ela também estava indo ao show.
"Na verdade ela é, o problema é convencê-la disso." Falou uma sorridente Lizzie agarrada ao meu braço direito. Melissa revirou os olhos ao ouvir a filha e falou para entrarmos logo no carro.
"Você sabe onde fica esse tal bar, Mark?"
Perguntou ela do banco do motorista, enquanto Lizzie se sentava ao seu lado no banco do carona e eu encontrava um espaço em meio a bagunça no banco de trás. Elas estavam lindas, eu devo dizer; mesmo isso não sendo novidade alguma pra ninguém. Melissa estava com uma camisa do Metallica, jeans e uma bota escura; enquanto Lizzie usava uma camisa de uma banda chamada The Pretty Reckless, shorts e um All-Star de cano médio. Lógico que eu estava me sentindo um tanto deslocado com minha camisa azul sem estampa, originada da minha total falta de experiência em eventos desse tipo.
"Sim, é logo na entrada da cidade, saindo da rodovia à direita." Meu primeiro show, eu pensei, é bem provável que eu tenha que aguentar inúmeras piadas sobre a minha presença no local. O garoto antissocial estava saindo da caverna...

Com duas ruivas maravilhosas.

                           ***

"Ei, Mark! Como está se sentindo ao ar livre?" Primeira piada, feita por Frank; um garoto gordo com algumas espinhas de tamanho anormal que sempre se esforçava para ser o palhaço da classe; foi ótimo ver o espanto em seu rosto ao notar Lizzie agarrada em meu braço enquanto abríamos caminho em meio às pessoas. Ele ficou um bom tempo nos encarando sem conseguir fechar a boca. Aos poucos pude notar que ele não era o único, outras pessoas que haviam feito algumas classes comigo nos anos anteriores também nos olhavam, apontavam e comentavam sempre que achavam ter uma oportunidade.
"Então, você é tipo o Pé Grande pra essas pessoas..." Começou Lizzie depois que lhe expliquei o motivo daquilo. "Todos sabem que existe, mas poucos têm o privilégio de ver..." Concluiu, rindo ao ver minha expressão diante de sua comparação.
"Todos sabem que o pé grande existe?" Eu perguntei, também rindo. A garota deu de ombros e fez um movimento com a cabeça em direção à sua mãe, que havia terminado uma acalorada conversa com o responsável pelo bar e agora se aproximava do local onde nos encontrávamos.
"É o que minha mãe costuma dizer, pelo menos." Estávamos encostados no balcão do bar, que a essa hora servia apenas refrigerantes e deixava Melissa um tanto contrariada.
"É claro, Mark." Falou a ruiva mais velha enquanto se aproximava com um copo de plástico com refrigerante, olhando feio para o balconista que se recusava a lhe dar uísque no lugar de Sprite. "Todos sabem que o Pé Grande é um alien." Concluiu ela enquanto piscava um olho para mim, fazendo Lizzie revirar os olhos.
"Acho que talvez eu possa ser algo assim pra eles." Eu falei, me referindo às pessoas que nos observavam, retomando o assunto anterior com Lizzie quando Melissa desapareceu em meio à multidão para se entrosar com alguns outros pais que lá estavam, sua sociabilidade me assustando cada vez mais. "Mas o que talvez os deixe ainda mais surpresos..." Continuei, enquanto a observava tomar seu refrigerante pelo canudinho. "É você." Ela levantou os olhos, surpresa. Será mesmo que ela não tinha ideia da impressão que causava nas pessoas? Eu me perguntei ao notar a curiosidade e a dúvida em seus olhos, pedindo por uma explicação. "Bom, me ver durante as férias já é algo um tanto incomum, como eu lhe expliquei... Junte com isso uma garota linda que não sai de perto de mim e você terá reações como estas." Eu disse com um movimento de cabeça em direção à pequena multidão. Ela se virou lentamente para um grupo de garotos da oitava série que a olhavam admirados e pareceu compreender o que eu queria dizer.
"Ah..." Foi tudo o que ela conseguiu falar antes de voltar sua atenção ao copo de plástico e seu canudo, suas bochechas salpicadas por sardas ficando levemente coradas.
                            ***
O show foi incrível. Até mesmo para os meus padrões um tanto exigentes à época. Eu já havia ouvido falar que a banda de Elisa (broken little princess, ou BLP para os íntimos) era boa, mas eu percebi que não fazia ideia alguma do quanto. 
Ainda assim, o ponto alto da noite não havia sido o show e os clássicos cantados por Elisa, pelo menos não para mim. A melhor parte veio após o show.
"Só eu estou um pouco decepcionada por Elisa não ter nos dado atenção?" Perguntou Melissa enquanto saíamos do bar, caminhando à nossa frente. 
"O que esperava, que ela te dedicasse uma música?" Perguntou Lizzie, revirando os olhos mais uma vez. Ela estava com uma aparência bem menos apresentável do que quando havia chegado, vários fios vermelhos haviam se soltado das amarras de seu rabo de cavalo e agora flutuavam ao redor de sua cabeça com a brisa fria do começo da noite. Seus rosto estava afogueado após ter pulado, dançado e cantado ao som de cada música no show.
"Não seria uma má ideia." Respondeu a mulher mais velha. "Eu sou tia dela, não sou?" Completou ela, sorrindo. Outra diferença que pude notar entre mãe e filha tão parecidas: o sorriso. O de Lizzie era mais discreto, reservado; o que dava uma sensação de conquista sempre que eu conseguia arrancar algum dela. O de Melissa era mais solto, as marcas ao redor de sua boca sinalizavam uma predisposição ao riso, alguém sem nenhum receio de achar graça do mundo. Talvez fosse isso que a deixava com a aparência tão jovem, eu pensei.
"Ei! Vocês dois!" Uma voz soou de algum lugar às nossas costas. Era Elisa, que vinha correndo em nossa direção com seus cabelos repicados balançando ao vento e sua maquiagem escura, carregada e um tanto borrada. Lembrava vagamente a moça estampada na camisa de Lizzie.
"Olha, alguém arrumou jeans novos!" Comentou Lizzie, quando sua prima nos alcançou, recebendo um olhar frio em resposta.
"Já não era sem tempo..." Eu comentei, recebendo um soco no peito ao invés do olhar frio.
"Onde vocês pensam que vão?" Perguntou a garota com jeans novos, ignorando os comentários anteriores. "Vai ter festa na casa do Matt, de encerramento das férias. Vocês vêm, né" Troquei um olhar com Lizzie, sem saber o que responder. Eu não estava afim de ir, mas não me importaria se ela quisesse.
"Vai ter álcool lá?" Perguntou Melissa, fazendo notar que Lizzie precisava de sua permissão para ir. Elisa se virou para ela, surpresa, notando-a pela primeira vez.
"Ah, oi tia!" As duas se abraçaram por alguns instantes. "Não sabia que viria" disse Elisa.
"Percebi" Falou Melissa, se fingindo contrariada. "Então, sobre essa tal festa..." Começou ela, pedindo explicações.
"Não terá álcool e eu prometo deixá-la em casa meia-noite em ponto." Falou Elisa, sorrindo. Melissa olhou de Lizzie para Elisa, pensativa.
"Quero ela em casa às dez." Falou ela, se decidindo. Lizzie trocou um olhar com Elisa, que ainda estava sorrindo, antes de questionar sua mãe.
"Mãe, se for pra voltar às dez não tem o menor sentido eu ir." Dessa vez a troca de olhares aconteceu entre as duas ruivas e levou um tempo muito maior, como se estivessem em outra uma conversa telepática. Por fim, Melissa se virou para mim com seus olhos cansados, admitindo a derrota.
"Cuide dela, rapaz." Disse enquanto colocava uma mão em meu ombro esquerdo. Eu confirmei com um breve aceno de cabeça, mal sabendo o que a noite reservava.
                               ***
O som estava alto. Muito alto. Tocando bandas como Blink-182, Sum 41, Simple Plan e All Time Low. Eu gostava dessas bandas mais por influência de Elisa do que por qualquer outra coisa. A casa estava repleta de adolescentes se embriagando, fumando maconha, ou simplesmente sentados no sofá olhando para o teto com olhos desfocados, que era provavelmente onde eu ficaria se não estivesse com Lizzie. Elisa nos levou até onde estava Matt, o guitarrista de sua banda que eu costumava dizer que estava afim dela com o objetivo de irrita-la.
"Matt, esse é meu amigo Mark" disse ela apontando para mim. "O que nunca sai de casa." Acrescentou, rindo. 
"Ah, sim." Disse o garoto enquanto apertava minhas mãos. Ele estava em um grupo com outros garotos e eu os cumprimentei com um aceno rápido de cabeça, pensando em como eu realmente não queria estar ali. "Ouvi muito de você, Mark!" Continuou Matt. "Elisa vive reclamando que você não aparece nos shows." Taí algo que eu não sabia, eu pensei, olhando para Elisa de relance e sorrindo ironicamente enquanto ela me mostrava o dedo do meio. "Quem é essa menina linda e por que eu ainda não a conheço?" Perguntou o garoto se virando para Lizzie no momento em que a notou.
"Essa é minha prima, Lizzie." Falou Elisa, enquanto Matt beijava as mãos da menina. "E namorada do Mark." Completou ela, fazendo o garoto se afastar da garota como se tivesse levado um choque. Taí mais uma coisa que eu não sabia, eu pensei novamente. O garoto com cabelo de surfista pareceu surpreso por alguns instantes, ligeiramente envergonhado.
"Ah... Me desculpe, eu não sabia!" Disse ele, sorrindo enquanto tirava uma franja loira da frente dos olhos. Matt era alto, de compleição forte e rico, pelo que pude notar de sua casa. Ele não estudava na mesma escola que eu, ia pra uma escola particular na cidade vizinha. "Fiquem à vontade para usar a piscina ou qualquer outra dependência da casa que quiserem." Disse ele de maneira solícita, tentando se redimir.
"Os quartos estão vazios também..." Comentou Elisa, lançando um olhar um tanto indecente a mim e a Lizzie, talvez sem saber que isso era algo que constataríamos por conta própria algum tempo depois...
                            ***
"Vira! Vira! Vira! Vira! Vira!" 
O coro se repetia novamente em alto e bom som. A música alta invadia meu cérebro através dos meus ouvidos e eu tinha a impressão de que era impossível estar em algum silencioso novamente, enquanto virava meu quinto shot de tequila. Dessa vez, era por não estar disposto a beijar uma garota alta e esguia do time de cheerleaders, pelo menos não enquanto Lizzie estivesse jogando também, eu pensei. Ambos estávamos esperando a garrafa nos escolher, algo que havíamos combinado há algumas trocas de olhares atrás.
A garrafa começou a girar novamente e eu nem sequer me lembrava mais do motivo de eu estar jogando aquilo; talvez fosse algo relacionado ao "vamos, Mark! Vai ser legal" dito por Lizzie instantes antes. Minha cabeça girava um pouco e por mais que eu esfregasse os olhos, eu ainda enxergava tudo um pouco embaçado.
"Elisa e Lizzie!" Anunciou uma voz no grupo ao redor da mesa.
"Wow! Taí algo que será interessante de assistir!" Comentou outra voz que eu suspeitei ser a de Matt. Forcei um pouco a vista e vi as duas garotas se olhando, havia uma certa malícia presente no sorriso de ambas, o que sugeria que elas provavelmente não tomariam tequila dessa vez. Elisa deu de ombros após ter encarado sua prima por alguns instantes e começou a contornar a mesa até onde ela estava, parando à sua frente. Lizzie teve uma crise de riso nesse momento, talvez devido ao fato de ter tomado o mesmo número de shots que eu. Ou até mais.
"Como nos velhos tempos?" Perguntou Lizzie, fazendo com que Elisa também desandasse a rir. Algumas pessoas que não estavam na brincadeira começaram a se aproximar da mesa, enquanto as que estavam começaram a gritar incentivos às primas. Elisa pegou o rosto de Lizzie com as duas mãos e a beijou. Um beijo intenso, forte e rápido. Minha cabeça começou a girar ainda mais ao ver aquela cena, o que me levou a procurar desesperadamente por suporte em uma parede próxima. Ainda em dúvida se aquilo estava realmente acontecendo. A multidão presente explodiu em gritos, enquanto câmeras de celulares pegavam cada ângulo possível. Eu me lembro de ter pensado que algo estava errado naquele momento,  que eu estava me esquecendo de alguma coisa importante, mas com a quantidade de álcool em meu sangue e duas garotas se beijando à minha frente, esse pensamento rapidamente se desfez. As duas se separaram e Elisa começou a fazer reverências ao público que as aplaudia com entusiasmo. Lizzie estava olhando fixamente para mim, de uma forma intensa e decidida. Ao contrário do que se podia imaginar, ela não parecia constrangida ou envergonhada pelo que havia acabado de acontecer. A garota simplesmente começou a caminhar em minha direção, ainda sem tirar os olhos de mim. Alguém gritou um "pega ele, garota!" de algum ponto desconhecido no ambiente lotado. Me lembro de ter ficado um pouco assustado com o modo como Lizzie me olhava, é sempre difícil encarar alguém com olhos tão decididos. Principalmente aqueles olhos. Ela parou, poucos centímetros afastada de mim, seu rosto inclinado em direção ao meu, seus olhos levemente desfocados pelo efeito do álcool, sua boca entreaberta se preparando para um beijo. Deu um puxão em meus cabelos na altura da nuca, trazendo minha orelha próxima à sua boca.
"Agora é a sua vez" sussurrou ela, antes me empurrar com força contra a parede próxima e me beijar. Naquele momento, o mundo se resumiu aos gritos de adolescentes enlouquecidos e ao gosto de tequila na boca de Lizzie.
                             ***
Abrir os olhos naquela manhã de sábado foi uma das piores decisões que já tomei na vida. Me lembro que a luz do sol entrava forte pelas janelas de vidro sem cortinas e me atingia diretamente nos olhos, dando a sensação de levar uma machadada bem no meio do crânio. Me virei para o lado e vomitei no chão, coberto por tacos de madeira encerados. E vômito. Minha cabeça ainda pulsava forte com um dor terrível, eu definitivamente não abriria os olhos nunca mais, eu pensei, quando algo subitamente se mexeu ao meu lado na cama, fazendo com que meu pensamento anterior se provasse imediatamente equivocado e eu abrisse os olhos, assustado. Milhares de fios avermelhados se espalhavam pelos lençóis, refletindo esplendorosamente a luz do sol que entrava pela janela que, definitivamente, não era a do meu quarto. Essa repentina percepção fez com que eu me virasse e vomitasse novamente, enchendo mais uma vez o chão encerado, que também não era o do meu quarto, do que quer que eu havia comido no dia anterior. Ao levantar a cabeça novamente, vi minhas roupas jogadas próximas à porta do pequeno quarto, que era belamente decorado com quadros e flores colocadas em um jarro na pequena cômoda abaixo da janela, as paredes claras faziam minha cabeça ficar a um ponto próximo de explodir. Eu ainda não fazia ideia de onde estava, mas sabia que estava deitado, pelado e com uma garota ruiva apagada ao lado. A porta do quarto começou a repentinamente ser esmurrada com força.

"Mark!" TUM, TUM, TUM.

"Mark, Lizzie, vocês estão aí?" A fortes batidas continuaram, até que eu consegui juntar forças suficientes para me levantar e vestir minhas calças antes de abrir a porta. Minha cabeça explodindo de dor.
"Ah, você está aí, ainda bem!" Disse quem quer que fosse. Eu não conseguia abrir os olhos mais do que apenas alguns milímetros. "Ai meu deus..." Disse o indivíduo desconhecido. "Mark... Você e a Lizzie..." Minha cabeça foi atingida subitamente por uma dor intensa e eu vomitei pela terceira vez em menos de dez minutos, o ácido quente subindo pela minha garganta e vazando por minhas narinas enquanto eu caía de quatro no chão com os espasmos causados pela pressão exercida em meu estômago. Eu tremia descontroladamente. Mãos me seguraram pelos ombros e me ajudaram a levantar. "Mark, olhe para mim..." Disse a pessoa, sua voz saindo fraca pelo esforço em me manter de pé. "MARK! Abre a merda dos olhos e olhe para mim!" Senti um forte tapa do lado direito do rosto e fiz o que me foi pedido. Pude ver o rosto de Elisa me encarando, seus cabelos caíam sobre seus olhos ainda carregados de maquiagem, mas não me impediam de notar o desespero e o medo transmitido por eles.
"Mark, você sabe que horas são?" Ela perguntou, me balançando pelos ombros numa tentativa de me passar a importância da questão. Eu me sentia fraco, ainda estava tremendo bastante e com uma dificuldade imensa para me manter de pé. Tudo o pude fazer foi balançar a cabeça negativamente. Elisa me soltou, exasperada, indo em direção à cama de solteiro onde os milhares de fios de cabelo vermelho estavam. Eu me deixei cair ao chão novamente, enquanto a ficha da situação começava a cair junto comigo. Eu estava numa casa que não era a minha, com Lizzie e Elisa no mesmo quarto. Algo no fundo da minha mente me dizia que aquilo era um grande problema.
"Lizzie!" Chamou Elisa, balançando a garota na cama. "Lizzie, acorda!" Ouviu-se um murmúrio vindo de algum lugar em meio à selva de fios vermelhos no lençol branco. "Ah, meu deus..." Disse Elisa quando retirou os lençóis e encontrou sua prima vestida apenas com sua roupa íntima. "Meu deus, meu deus... Melissa vai me matar..." Falou ela, jogando os cabelos para trás em sinal de preocupação. Acho que esse foi o momento em que a ficha realmente caiu, alguns acontecimentos da noite anterior estavam voltando gradativamente à minha mente. Lembranças não muito nítidas de beijos, tequila, piscina e cabelos vermelhos... "LIZZIE, LEVANTA!" Gritou Elisa de algum lugar fora da minha cabeça que parecia estar rachando ao meio, fazendo com que a garota ruiva finalmente abrisse os olhos e levantasse a cabeça alguns centímetros.
"Elisa... O que foi...?" Perguntou ela com a voz arrastada, tapando a luz do sol com uma das mãos para enxergar a prima.
"O QUE FOI?" Perguntou Elisa de volta, dando uma risada nervosa. "O que foi é que são duas da tarde e você e Mark estão nus na cama do Matt!" Lizzie se levantou da cama brusca e repentinamente, seus olhos se arregalaram ao me ver sentado junto à porta do quarto. 
"Meu deus do céu..." Murmurou ela, ainda me olhando com espanto, o desespero começando a se formar em seu rosto. Acredito que eu também tenha olhado para ela da mesma forma, a diferença é que eu estava olhando para os seus seios, completamente à mostra.
                           ***
"ELIZABETH ANNE MURRAY!" 

Eu ouvi o grito de dentro do carro de Elisa, foi a primeira vez que escutei o nome do meio de Lizzie. O silêncio que se seguiu depois me fez temer pelo destino das duas garotas. Eu tinha ligado para minha mãe, enquanto Elisa dirigia seu fusca o mais rápido possível para deixar Lizzie em casa primeiro, e disse a ela que eu acabara dormindo na casa de um amigo após a festa e me esquecera de avisar. Depois, tudo o que tive de fazer foi continuar pedindo desculpas repetidamente por não ter atendido ao celular e não ter avisado que não dormiria em casa. Ela não tinha ficado muito preocupada pois sabia que eu estava com Elisa e, por algum motivo, minha mãe confiava nela. Como ela havia saído cedo para cuidar de minha tia, eu pude dar uma minimizada dizendo que havia chegado em casa pela manhã.
Esperei por alguns minutos no carro e, percebendo que a conversa entre as três dentro da casa ainda poderia levar um tempo considerável, saí do carro e comecei a subir a rua em direção à minha casa. Lembranças da noite anterior voltando em flashs à minha consciência. Nós realmente havíamos feito sexo...? Eu estava começando a me lembrar de seu toque, do calor de seu corpo contra o meu, do gosto de sua boca que mal me deixava respirar, da sensação única de estar dentro dela... Meu deus... Minha primeira vez e eu estava bêbado demais para aproveitar, que idiota. Eu poderia pensar nisso depois, tudo o que eu precisava agora era de alguns analgésicos e meu quarto escuro e abafado.
                              ***
Eu não falei com Lizzie depois dos acontecimentos da festa, dormi o restante do sábado e não tive coragem de sair da cama no domingo, último dia de férias. Eu estava me sentindo desidratado e meu estômago ainda apresentava alguma indisposição enquanto eu forçava a pizza comprada no dia anterior todo o caminho até ele. Quanto a noite chegou, eu ainda estava em meu quarto pensando pela milionésima vez sobre o que havia acontecido e sem coragem alguma de ligar para Lizzie ou Elisa, quando alguém tocou a campainha. Desci vagarosamente os degraus, pensando se minha mãe havia perdido as chaves novamente. A pilha de louças sobre a pia da cozinha pareceu me chamar quando eu a olhei de relance e me senti ainda mais desanimado. Eu teria que dar um jeito naquilo antes que minha mãe chegasse e não restasse muita coisa de mim para contar história.
Abri a porta e encontrei Elisa, ainda vestida com as mesmas roupas de sexta, seus olhos inchados indicavam que estava chorando até pouco tempo atrás. E que vinha chorando há um bom tempo, também.
"Posso entrar?" Perguntou ela passando por mim sem esperar por resposta e se jogando no sofá, tremendo e com as mãos apoiando a cabeça. Eu não preciso dizer que aquilo me pareceu problema, não é?
"Elisa, o que aconteceu?" Eu perguntei, após fechar a porta e me sentar na poltrona. Ela limpou o nariz na manga de sua jaqueta e fungou algumas vezes, tirando o cabelo dos olhos. Ela estava destruída. Sua pele estava pálida de uma maneira doentia, seus olhos inchados e vermelhos pareciam resultado de inúmeras xícaras de café e muito pouco ou nenhum sono. Ela não cheirava muito bem também.
"Lizzie..." Falou ela com a voz fraca. "Ela está no hospital, Mark..." Ela continuou, me encarando fixamente após dizer aquilo. Duvido que estivesse realmente me vendo, seus olhos desfocados estavam olhando para algo muito distante dali.
"O que aconteceu com ela, tá tudo bem?" Eu perguntei, esperando pelo pior, baseado no estado da garota à minha frente. Ela balançou a cabeça negativamente.
"Não sei, Melissa não me deixou vê-la..." Ela desabou em choro, sem conseguir terminar de falar. Aparentemente um resultado da hipersensibilidade causada pelo consumo desenfreado de café somado a noites sem dormir. Seria complicado conseguir conversar com ela naquele estado...
"Em que hospital ela está?" Eu perguntei, me sentando ao seu lado e passando os braços por seus ombros. Eu podia sentir seu corpo inteiro tremendo junto ao meu.
"Não vá lá, Mark..." Ela falou, soluçando e tentando conter o choro. "Melissa não está feliz com você também, ela não te deixará vê-la." Concluiu, me olhando com seus olhos fundos e perdidos.
Eu não podia culpar Melissa. Ela me pediu para tomar conta de sua filha e ao invés disso eu fiz sexo com ela, pior ainda, fiz sexo com sua filha enquanto estava completamente bêbado. Elisa tinha razão, eu não devia aparecer por lá; não se eu tivesse um pingo de vergonha na cara guardado em algum lugar.
"O que aconteceu com ela?" Eu perguntei, engolindo em seco, começando a sentir o peso da culpa em meu peito. Minha garganta começou a secar, meu estômago a voltar a se indispor e minha consciência a me esmagar. Que merda havíamos feito?
"Ela teve uma convulsão, pouco depois de eu deixá-la em casa..." Começou ela, com dificuldade. "Ela não estava em condições... Bem, ela não podia responder por si mesma, no momento..." continuou ela. Eu sabia bem que Lizzie não seria capaz de muita argumentação no estado em que se encontrava quando chegou em casa, Elisa teve que praticamente carrega-la até a porta, recusando minha ajuda por não querer que Melissa me visse. "Então... Melissa veio com tudo pra cima de mim..." Ela deu uma risada nervosa, sem qualquer vestígio de humor. "Eu realmente pensei que ela fosse me bater... Até que vimos o corpo de Lizzie tremendo no chão... Babando... Seus olhos estavam estranhos, também..." Ela estava soluçando descontroladamente enquanto se forçava a continuar falando. Lágrimas rolaram por suas bochechas pálidas, molhando sua jaqueta ao caírem de seu rosto. "Eu não quero voltar pra casa, Mark... Por favor..." O modo como ela me olhou ao dizer aquilo deixava claro que ela não estava pedindo, estava implorando; implorando para não ficar sozinha. Eu nunca a havia visto tão vulnerável. A sempre forte e determinada Elisa estava ali, na minha frente, em frangalhos. Eu me senti mal por vê-la daquela forma, era como se não fosse permitido, como se eu a estivesse invadindo e vendo uma parte dela que ninguém deveria ver. Uma parte dela que a Elisa forte e determinada sempre protegeu e escondeu. Uma parte dela ainda intocada por tudo o que ela passou, intocada pela vida.
"Você não precisa" eu disse, ajudando-a a se levantar. "Tome um banho e durma um pouco, eu deixo uma toalha e roupas para você na porta do banheiro." Ela pareceu dizer algo em agradecimento em meio à seus soluços intermináveis. Eu praticamente a carreguei por todo o caminho até o banheiro, sem ter certeza de que ela seria capaz de se lavar sozinha. Ela precisava comer alguma coisa também, mas eu não estava em condições de força-la a engolir nada naquele momento. 
Minha mãe chegou algum tempo depois, quando Elisa já estava dormindo em meu quarto, algo em seu rosto me disse que ela nao estava muito feliz em me ver. Eu estava sentado no sofá, abraçado aos meus joelhos enquanto pensava na merda que havia feito, quando escutei ela soltar suas chaves no vidro da mesinha de centro e se sentar na poltrona, olhando fixamente para mim.
"Eu estive no hospital, com Melissa..." Essa informação caiu com uma força esmagadora sobre mim, fazendo com que eu precisasse de um tempo para recuperar o fôlego e voltar a respirar. Minha mãe me olhava com uma expressão triste, sem parecer estar brava. Era ainda pior, na verdade. Parecia decepção.
"Você faz ideia da situação em que me colocou, Mark?" Perguntou ela, sem realmente esperar por alguma resposta. Ela passou as mãos por seus cabelos escuros e cheios, respirando pesadamente com o cansaço. "Ela estava arrasada... Eu não fazia ideia do que dizer..." Parou por alguns segundos, os olhos ainda fixos em mim. Eu não conseguiria olhar para ela naquele momento, nem se tentasse, nem se quisesse... Eu preferia que ela fosse uma daquelas mães bravas, que xingavam e gritavam pela casa, como a de Elisa. Mas minha mãe não era assim. Não, ela fazia você se sentir mal pelo que fez, ela fazia você se sentir mal consigo mesmo. Eu odiava isso nela. "Ela me ligou ontem à noite, dizendo que não estava conseguindo falar com nenhuma das garotas..." Ela respirou fundo, recostando-se na poltrona. "Sabe o que eu disse à ela...? Eu disse que não precisava se preocupar..." Eu estava com a cabeça baixa, observando sem nenhum interesse uma parte de minha calça que começava a se descosturar. "Olhe para mim, Mark." Droga, aquela era sempre a pior parte. A parte em que eu deveria olhar para ela, assumindo as consequências do que quer que tivesse feito. Eu olhei em sua direção, tentando não encarar seus olhos. "Eu disse à ela que não precisava se preocupar, porque vocês provavelmente estavam dormindo na casa de algum amigo..." Eu estava prestes à chorar, talvez meu orgulho fosse a única coisa impedindo as lágrimas de saírem desenfreadas pelo meu rosto naquela hora. Eu não daria à minha mãe essa satisfação. "E no dia seguinte, a filha dela aparece... naquela situação... Você entende, Mark? Entende a situação em que me colocou? Entende como foi difícil para mim estar naquele hospital com a filha dela naquele estado...?" Eu não respondi. Se eu falasse alguma coisa eu perderia o controle sobre minhas lágrimas, eu sabia. Começaria a chorar como um bebê. E quer saber? Teria sido a coisa certa a fazer, eu deveria ter chorado. Deveria ter mostrado para minha mãe que eu estava arrependido. Eu tive uma mãe sem igual, mesmo não me tocando disso na época. Tenho certeza de que ela teria me apoiado, teria me consolado, teria me ajudado a aprender com aquela situação. Mas não, eu não chorei. Não fui homem o suficiente para isso naquele momento. Eu apenas escutei, o que era o mínimo que qualquer covarde poderia ter feito. "Nada de festas para você a partir de hoje, nada de video games também." Ela se levantou e se dirigiu à escada, parando no primeiro degrau e se virando para mim novamente.
"Elisa está aqui? Vi o carro dela parado lá fora..." Eu concordei, balançando a cabeça sem me virar para ela. Eu nao queria que ela percebesse que eu já estava chorando naquela hora, tentando não fazer barulho enquanto deixava todos os meus sentimentos acumulados saírem através de meus olhos. Ela continuou subindo sem falar mais nada, provavelmente sabendo que tinha dito o suficiente para que minha consciência não me deixasse em paz durante a noite.
"E não quero ver aquelas louças na pia pela manhã quando eu for trabalhar!" ela falou de algum lugar no segundo piso. 

A última noite de férias foi uma noite longa...

Muito longa.
                            ***
Esse seria um ano atarefado pro clube de cinema. A escola queria que produzíssemos um curta pra ser exibido no festival do fim do ano, sendo que um trailer deveria ser exibido no festival de inverno, que acontecia antes das férias do meio do ano. Eu já havia começado a trabalhar nos storyboards, baseado no roteiro escrito magnificamente por Alicia no ano anterior. 
Não seria o que seria do clube sem essa garota...
                               ***
"Onde faremos a gravação?" Perguntou Mike, depois de eu, mais uma vez, ter lembrado ao pequeno grupo de seis alunos sobre nossos objetivos naquele ano, meu último ano no colégio. "Poderíamos fazer uma excursão, o que acham?" O grupo pareceu se entusiasmar com a ideia, embora eu não visse muito sentido nisso. O roteiro não especificava cenários muito diferentes do que os que tínhamos na cidade e nos arredores. Assim, poderíamos utilizar o dinheiro gasto em uma excursão e a ajuda da escola de maneira mais eficiente. 
Claro que minha opinião gerou um descontentamento geral, mas todos pareceram entender que uma excursão custaria um tempo e dinheiro que não podíamos dispor naquele ano. 
O clube começava com seis membros naquele ano: Eu, Alicia, Samantha, Mike, Thomas e o Bob, que era o mais novo membro do grupo, tendo entrado no último ano. Decidimos que ele e a Sam ficariam incumbidos de conseguir mais inscrições para o clube, enquanto ainda era permitido fazê-las. Nunca fomos muito populares e sempre ficávamos felizes quando conseguíamos uma ou duas inscrições, como nos anos anteriores. Combinamos que as filmagens começariam assim que eu terminasse o storyboard e Alicia o revisasse, para não perdemos muito tempo. Assim, finalizamos a primeira reunião do ano e nos dirigimos para os pronunciamentos de início do ano letivo no auditório. 
                              ***
Não vi sinal de Lizzie ou Elisa no meio da multidão de alunos que se juntaram para ouvir o diretor e alguns professores falarem sobre o novo ano letivo que se iniciava. Minha mãe havia me trazido para o colégio antes de ir trabalhar e tínhamos decidido não acordar Elisa, que dormia pesadamente. Deixamos algumas panquecas em cima da mesa na cozinha, assim como um bilhete embaixo das chaves de seu carro avisando da existência das mesmas.  Com isso, era pouco provável que ela aparecesse no primeiro dia de aula, o que não me impedia de procurar por cabelos loiros e ruivos em meio ao agrupamento de alunos. 
Eu estava sentado na última fileira de cadeiras do auditório, o que me permitia uma ampla visão de todas as pessoas que entravam no local. Pessoas que pulavam, gritavam, se abraçavam e contavam sobre todas as coisas divertidas que haviam feito nas férias. Eu comecei a pensar no que eu diria no lugar delas... 
"Oi! Eu fiz sexo pela primeira vez com uma linda garota bêbada que teve uma convulsão e está internada em um hospital agora."
Dei uma risada sem humor ao me imaginar falando algo assim a alguém.
"Taí um cara que soube aproveitar as férias!" Senti um leve tapa nas minha costas e me virei para ver Jessica me olhando com um sorriso um tanto indecoroso. Estranho, eu não me lembrava dessa garota ter me dirigido a palavra em todos os anos em que estudamos juntos. Ela deve ter notado minha expressão de surpresa, pois logo em seguida completou. "Eu sempre soube que você não era santo, Mark..." Disse ela piscando um olho para mim antes de sair caminhando em direção às suas amigas que me olhavam, sorrindo. Que merda havia acabado de acontecer ali? Eu pensei, me sentindo repentinamente enjoado. Quantas pessoas sabiam sobre o que havia acontecido?
Eu precisava de um pouco de ar. Tanta coisa havia acontecido em tão pouco tempo. Lizzie, meu pai, meu avô, a festa... Passei com certa dificuldade pelos alunos que entravam no auditório, seguindo no sentido contrário rumo ao corredor e em seguida à saída do prédio. Senti o ar fresco encher meus pulmões no instante em que saí, respirando fundo e tentando colocar meu pensamentos em ordem pela milésima vez nos dois últimos dias. Um brilho vermelho chamou a atenção dos meus olhos ao refletir a luz do sol, me fazendo virar imediatamente em sua direção esperando ver a única garota ruiva que eu conhecia na cidade e percebendo imediatamente que ela não era a única, afinal de contas. Eu havia esquecido de sua versão mais velha. Melissa estava parada há uns trinta metros de distância de onde eu estava, encostada em seu carro com os braços cruzados e olhando fixamente para onde eu estava. Alguma coisa em sua figura distante me fez ter calafrios.
"Oi, Mark" disse uma conhecida voz às minhas costas. Eu congelei naquele instante, não conseguia tirar os olhos da imponente figura de Melissa me observando e, ao mesmo tempo, estava louco para me virar e olhar para sua versão adolescente, cuja voz eu havia acabado de escutar. "Não se preocupe, ela não vai fazer nada..." Falou novamente a voz. "Só quer ter certeza de que eu terei essa conversa com você..." Eu percebi que estava há um bom tempo sem piscar quando meus olhos começaram a arder e me possibilitaram sair do transe em que Melissa havia me colocado. Me virei e vi uma versão um tanto alterada de Lizzie. Ela estava pálida, com olhos sem vida, assim como seus cabelos, que agora não pareciam conter nem de perto o mesmo brilho de alguns dias atrás. "Aqui não" falou ela, fazendo um gesto com a cabeça para que eu a seguisse, enquanto olhava para o local onde sua mãe estava com uma intensidade suficiente para me deixar desejando jamais fazer algo que a fizesse olhar para mim daquela forma.
                              ***
"Porque aqui?" Eu perguntei enquanto nos sentávamos numa mesa qualquer do Carl's. Era um dia quente de setembro, e eu não via a hora do clima começar a esfriar rumo à solidão gelada de Dezembro. Ela estava evitando me olhar no olhos, o que era algo compreensível depois do que aconteceu na festa. Ainda assim, eu esperava uma atitude mais amistosa de sua parte. Eu tinha tentado saber o que aconteceu com ela e se ela já estava bem durante o longo caminho até  a lanchonete, mas tudo o que recebi foram respostas vazias como "não se preocupe" e "eu estou bem". Ela simplesmente tinha caminhado até ali olhando para baixo e com as mãos afundadas nos bolsos de um estranho moletom marrom que era grande demais pra ela. Um enorme moletom marrom em dia quente de Setembro. Até eu fui capaz de perceber que algo estava errado.
"Aqui que tudo começou..." Falou ela, contemplando o local. "Parece que foi há tanto tempo..." Eu fiz o mesmo e comecei a olhar em volta, pelo pequeno e charmoso local, me lembrando de toda a minha existência sem a Lizzie e de como minha vida tinha mudado drasticamente após conhecê-la ali. Não era uma daquelas lanchonetes tradicionais com os bancos colados nas paredes e servindo como divisória entre as mesas. No Carl's haviam pequenas mesinhas que tornavam bem difícil duas pessoas almoçarem ao mesmo tempo sobre elas. Ainda assim, elas davam um certo charme ao lugar. Eram da mesma cor do piso de madeira corrida e lustrada. Algo ali me lembrava uma escola de dança. 
"As coisas..." Começou Lizzie, fazendo uma pausa e respirando fundo antes de continuar. "Tudo termina onde começa, Mark." Percebi que ela olhou rapidamente para mim ao dizer isso e depois desviou o olhar para as intocadas batatas fritas trazidas por Lucy quando nos viu chegar. "Essa é a única maneira de compreendermos o infinito..." Continuou ela, seus olhos começando a se encher de lágrimas. Ela não conseguiria segurar o choro por muito mais tempo. Eu já havia percebido, pelo papo um tanto filosófico, que ela estava ali pra terminar com qualquer que fosse nossa curta e intensa relação. Havia um nó em minha garganta que dificultava minha fala, então eu resolvi deixá-la falar até o fim, esperando para ver no que ia dar. 
"Tudo começa e tudo acaba... Mas o ciclo é eterno..." Seus lábios estavam tremendo, assim como suas mãos e, se ela não estivesse com olhos tão frios e sem vida, eu poderia abraçá-la naquele momento. Hoje vejo que talvez tivesse sido a coisa certa a fazer naquela hora.
"Por que, Lizzie?" Eu perguntei, segurando uma de suas mãos sobre a mesa e a forçando a olhar para mim. Ela se sobressaltou ao sentir o toque inesperado de minha mão. Ficou me olhando por um minuto inteiro, enquanto lágrimas desciam por seu rosto. O inimaginável aconteceu, ela deu uma pequena gargalhada em meio à todas aquelas lágrimas, uma gargalhada fria, sem emoção e que não alcançava seus olhos mortos, antes de retirar sua mão debaixo das minha.
"Porque tudo o que eu fiz até agora foi usar você, Mark..." Ela balançou a cabeça negativamente, sem olhar para mim. "Sim, você era meu brinquedo predileto, até minha mãe perceber..." Eu não sabia como reagir àquilo. Fiquei olhando para ela, sem saber o que dizer. O celular dela começou a tocar em algum ponto daquele imenso e grotesco moletom, ela o pegou e ficou olhando para a tela, soluçando e chorando. Então, se levantou bruscamente e ficou me olhando,  seu rosto desfigurado por lágrimas que pareciam cortar sua pele onde a tocavam, a dor estampada em cada músculo de sua face. "Obrigado pelo sexo, Mark..." Falou ela, parando de chorar aos poucos e me olhando do alto de sua posição. "Mas não pense que significou alguma coisa."
                                ***
Elisa estava chorando. Meu deus... Eu não aguentava mais tanto choro, tudo o que eu queria era ficar sozinho. 
E chorar...
"Me desculpe, Mark... Não era pra ter sido assim... Por favor, me perdoe..." Ela tinha chegado ao Carl's pouco depois de Lizzie ter saído. Agora estava sentada no mesmo lugar onde sua prima estava poucos instantes antes.
"A brincadeira acabou Elisa, vocês jogaram seus joguinhos comigo mas parece que ela se cansou, não é?" Eu estava com raiva dela, eu estava com raiva de Lizzie, de Melissa, de minha mãe... Eu estava com raiva do mundo. Como eu pude ser tão idiota de pensar que uma garota como Lizzie poderia realmente se interessar por mim? Eu devia ter percebido a improbabilidade disso desde o começo. Desde o beijo após ela ter me derrubado... Que tipo de garota faria aquilo? Idiota, um imenso idiota. Era o que eu era. Eu merecia toda aquela dor em meu peito. 
"Qual foi o objetivo disso, Elisa?" Eu perguntei. Ela me olhou com uma tristeza tão grande que eu poderia ter sentido pena, se não fosse pelo ódio que corria em minhas veias naquela hora.
"Me perdoe, Mark... Não era pra ter sido assim... Você precisa entender..." Ela tentou segurar minha mão sobre a mesa mas eu a retirei rapidamente e me levantei para sair dali. Eu não tinha que ouvir as desculpas de Elisa, eu já era capaz de me torturar o bastante sozinho.
"A única coisa que eu preciso entender é que eu fui um idiota, Elisa. Mas isso não quer dizer que eu precise ser de novo." Olhei para ela por alguns instantes, antes de sair. Meu deus, ela estava acabada. Ela estava destruída. Aquilo à minha frente era apenas pequenos pedaços do que ela fora um dia, pequenos fragmentos quebrados de algo que já fora inteiro, forte e resistente. Aquilo era tudo o que havia restado de Elisa. Será que eu também estava com aquela aparência?Comecei a caminhar em direção à saída quando ela repentinamente se levantou e gritou, fazendo com que não apenas eu, mas todos os presentes no local olhassem para ela.
"ELA VAI MORRER, MARK!" Ela começou a chorar ainda mais após ter gritado. Caiu de joelho com as mãos no rosto, seus corpo tremendo e soluçando sem controle algum. Lucy e alguns clientes foram até onde ela estava para ajuda-la, enquanto eu ficava lá, parado. Congelado, tentando absorver o que Elisa havia dito, assim como juntar aquilo com o que Lizzie havia falado anteriormente.

"Porque tudo o que eu fiz até agora foi usar você, Mark..."

Tudo fez sentido naquele instante.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...