Sebastian sentiu o mundo parar de girar e, mesmo que por míseros segundo, foi como se tudo ao seu redor congelasse e o tempo deixasse de existir. A única coisa que tinha consciência era de sua essência demoníaca entrando em conflito. A densa névoa o envolveu e em um piscar de olhos estava na mesma sala que o conde. Sua aparência humana havia voltado, pois mesmo numa ocasião como essa, ele não poderia deixar que Ciel presenciasse sua forma horrenda.
Com um esforço imensurável, cada passo foi dado como se um pedaço seu desmoronasse pelo caminho, e aos poucos suas forças pareciam desaparecer com a proximidade. Suas mãos trêmulas pegaram no colo o corpo quase sem vida de seu mestre, atestando que ele fora atingido numa área vital.
“Bocchan...” Por mais que Sebastian tentasse controlar a voz, ela saiu levemente embargada. Seu coração contraiu ao olhar o rosto pálido do rapaz e o peito encharcado de sangue. Ele sabia que um dia esse momento chegaria, mas não imaginou que seria tão ‘cedo’, que tudo acabaria desse jeito. “Me perdoe, bocchan... Eu falhei em protegê-lo”.
Ciel começava a sentir o frio se apoderar de seu corpo, e mesmo tendo o calor de Sebastian o envolvendo, isso não foi o suficiente para aquecê-lo. A letargia começou a afetá-lo e falar se tornou difícil, a falta de ar e a dor no peito eram grandes.
“Você não falhou... A minha vingança está concluída... E a sua parte do contrato também.” O conde tentou dar um sorriso para monstrar que estava tudo bem, porém só o que conseguiu foi tossir e escarrar um pouco de sangue.
“Não fale mais nada... Não faça nenhum esforço...” O mordomo não queria que Ciel se esgotasse ainda mais. Mesmo sabendo que seria inútil tentar retardar o inevitável e que o último suspiro logo chegaria, ainda assim ele queria prolongar aquele fio de vida pelo maior tempo que conseguisse.
“Chegou a hora... Pegue o que é seu de direito...” Ciel estava preparado para ter a alma devorada. Ele não tinha medo, nunca teve, só sentia por não poder ficar mais tempo ao lado do demônio e não conhecer o filho, que mesmo não admitindo, já amava. Fora isso, Ciel estava em paz.
Sebastian engoliu em seco e piscou algumas vezes, seus olhos ardiam e o peito começava a pesar. Podia sentir claramente o coração bombear o sangue mais rápido em seu corpo humano. “Eu não posso fazer isso...” Não conseguiu mais falar, pois o nó entalou na garganta deixando sua voz trêmula.
“Pare de ser tolo... demônio! Não me... faça te... ordenar...” A voz de Ciel não passava de um fio arrastado, sua vista começava a embaçar e ele reuniu o resto de forças que tinha para levar a mão ao rosto do moreno. Tocou a pele macia que outrora tantas vezes beijou e olhou bem em seus olhos avermelhados. Admirou os lábios e cada detalhe de sua face, queria memorizar cada mínimo pedaço daquele ser, mesmo que depois de sua morte todas essas lembranças deixassem de existir. “Sebastian... Eu nunca cheguei a te falar... Pelo menos não abertamente... Mas eu sempre te amei...”
Desde a morte de seus pais, essa era a primeira vez que aquelas palavras saíam da boca de Ciel, e ele até sentia um mínimo de arrependimento por não as ter dito antes, seu orgulho não o deixou, mas ele não morreria sem antes dizê-las. Esse era o segredo mais valioso que havia em seu coração.
Apesar da vista turva, ele conseguiu ver quando os olhos do demônio cintilarem, mas não em seu habitual tom rubro, e sim devido ao líquido que se formou na linha d’água. O conde pensou que talvez fossem os delírios causados pela grande perda de sangue, mas confirmou estar enganado quando sentiu a primeira lágrima cair em seu rosto e rolar por sua bochecha “Sebas... tian...”
“Shiii, bocchan...” Pela primeira vez em toda sua existência Sebastian estava chorando. Sim, chorando! Seu nariz umedeceu deixando a ponta avermelhada e sua face esquentou. Não conseguindo mais segurar as lágrimas, ele permitiu que elas descessem por seu rosto. Era a pior dor que já sentiu.
Abraçou o corpo do rapaz com o máximo de delicadeza que conseguiu. Ouvir aquela declaração justo nesse momento tornou tudo mais doloroso, as palavras que um dia tanto esperou escutar já não faziam mais sentido, e apenas colaboravam para aumentar seu sofrimento. Selou os lábios de seu mestre carinhosamente, esses que não eram mais doces, agora tinham um gosto ferroso e eram frios. Ciel já estava sem vida!
“Eu também te amo... Bocchan...” Ele aconchegou seu mestre no colo e o embalou como se em seus braços estivesse a coisa mais preciosa do mundo. Seu nariz afundou nas madeixas acinzentadas, aspirando fortemente apenas para gravar eternamente o delicioso aroma que elas tinham, e logo seus lábios desceram selando cada canto do rosto, mas infelizmente o calor da pele estava se esvaindo mais rápido do que deveria.
Depois de vários beijos, encostou sua testa a de Ciel e deixou que suas lágrimas lavassem o rosto dele. Nesse momento seu orgulho já não mais importava, nada mais importava, nem fazia sentido. E ele perdeu a noção do tempo que passou naquela posição.
Ao longe barulhos de saltos foram ouvidos e se aproximavam, assim como assovios cantarolados e a porta da sala abriu de forma brusca. “Chegou a hora da Death! Sebas... chan” Grell entrou em seu costumeiro estilo escandaloso, mas assim que viu a situação em que o moreno se encontrava, sua expressão se tornou séria no mesmo instante.
O shinigami não soube o que falar, não estava acreditando na imagem a sua frente e até se sentiu desconfortável por está ali, mas não havia jeito, se não fizesse seu trabalho a tempo, Willian o puniria com várias horas extras, no mínimo! O silêncio se tornou constrangedor, e ele ficou dividido entre sair da sala e dar mais privacidade ao demônio ou ir até o corpo de Diederich e colher sua alma. “Eu sinto muito...” Resolveu falar por fim.
Sebastian estranhou a presença o Deus da morte naquele lugar, visto que tanto Ciel quanto Diederich tinham as almas destinadas a seus respectivos demônios, sendo assim não constariam no livro da morte “O que você está fazendo aqui?”.
O ruivo pegou sua agenda e abriu na página marcada. “Barão Diederich, 51 anos, causa da morte: perfuração no tórax e hemorragia, causador da morte: Ciel Phantomhive... Não sabemos como, maasss... milagrosamente essa ficha apareceu de última hora no departamento, aliás, se esse homem não fosse morto por Ciel, ele morreria daqui a poucos meses devido a uma doença degenerativa no pulmão! Também achamos estranho, já que...”
Olhou novamente na ficha para confirmar o nome.
“Diederich tinha um contrato com um demônio e teria a alma consumida por ele, mas já que a ficha estava lá e Willian não estava afim de encontrar com você, e também para me ver longe dele, me mandou aqui para coletar essa alma. Bem... Eu estou sem tempo...” Grell olhou no relógio de bolso. “Daqui a dez minutos eu tenho a alma de Heloise Watson para colher”.
O shinigami ligou seu motosserra e o barulho metálico quebrou o silêncio do lugar, com um ar enfadado levantou a deathscythe e cravou no corpo de Diederich, logo o cinematografic começou a rolar sendo observado de forma entediada por suas esmeraldas.
Observando com o olhar sem vida o trabalho do shinigami, Sebastian se lembrou da conversa que havia tido com o funerário no dia do casamento:
"Como é para você... ter que conviver com a certeza de que nunca mais verá Vincent?" Essa era uma dúvida que martelava todos os dias em sua cabeça.
"E quem disse que eu nunca mais o verei?"
"Como???"
O shinigami deu um sorriso matreiro. “O trabalho de um shinigami é coletar e julgar as almas, dependendo da importância que sua existência tem para a humanidade. Possuímos também a escolha de prolongar a vida de uma pessoa...”
“Sim, disso eu sei... Então porque você não salvou a vida de Vincent já que tinha essa chance?”
Undertaker analisou atentamente o demônio, avaliando se revelaria aquilo ou não, afinal, shinigamis e demônios naturalmente eram inimigos, mas apesar de relutante, faria isso pelo antigo conde.
“Eu não cheguei a tempo... Vincent já estava sem vida! Essa foi a única vez que eu falhei no meu trabalho e isso me custo muito caro, mas... mesmo que eu tivesse chegado a tempo, eu ‘possuía’ meus princípios como shinigami e uma de nossas regras é que não devemos envolver o emocional ao julgar as almas, então querendo ou não eu teria que colher a alma dele...”
Sebastian pela primeira vez olhou o grisalho por outra perspectiva, era a primeira vez que o albino mostrava algum senso de responsabilidade. Ele não sabia se teria essa mesma coragem, não tinha certeza see quando chegasse a hora, conseguiria devorar a alma de Ciel. E então com o seu silêncio, o albino continuou.
“Apesar de difícil, eu fiz o meu trabalho... mas decidir o que fazer com alma dele estava nas minhas mãos, poucos sabem, mas há um procedimento que só shinigamis da alta patente estão autorizados a fazer... Temos o arbítrio de decidir se a alma será destinada a descansar, sendo esse o procedimento padrão ou... se será encaminhada para renascer, esse método é usado apenas em situações muito especiais, quando a pessoa deixou algo muito importante em vida para cumprir. E claro que esse algo se refere ao ‘bem da humanidade’...”
Sebastian estava deveras interessado com a revelação daquela informação e se perguntou o que o antigo conde ainda teria de tão importante a cumprir “E o que Vincent ainda tem de tão importante a fazer para merecer essa chance?”
“Nada!”
“Como?” Sebastian ficou confuso outra vez, já que isso era feito somente em casos especiais, então porque o funerário o havia encaminhado para reencarnar?
“Vincent não tem nada de importante a cumprir, muito menos fazer algo a favor da humanidade, mas... a decisão dele reencarnar ou não estava nas minhas mãos.” Undertaker sorriu travesso, só não havia deixado o departamento shinigami antes porque sabia que Vincent logo morreria e depois que colheu sua alma e a encaminhou, ele se tornou um desertor.
***
“Grell...”
“Hum!” o ruivo terminava de preencher a ficha e assim que acabou deu uma carimbada.
“Colha a alma de Ciel...”
O shinigami piscou várias vezes surpreso com o pedido. Ele havia presenciado o demônio cultivar durante anos aquela alma, sempre dizendo o quanto essa seria uma refeição saborosa e agora que a tinha em mãos, a estava abdicando?
“O quê? Acho que não ouvi direito!” Perguntou para confirmar.
“Colha a alma de Ciel... E a encaminhe para reencarnar... Por favor!” O demônio rastejaria aos pés do ruivo se fosse preciso, nada seria pior do que passar a eternidade com a dor que estava sentindo.
“Eu não sei do que você está falando.” Tentou dar um desdobro no moreno, afinal, esse era um procedimento delicado e ele nunca tinha feito antes por ser especial, e com certeza a alma de alguém como Ciel não merecia essa oportunidade. “Eu não posso fazer is...”
“Por favor... Eu te imploro... Faço qualquer coisa se preciso...”
Grell olhou bem para o demônio de aparência deplorável, havia sangue em suas roupas e respingos em seu rosto, o cabelo estava uma completa bagunça, os olhos avermelhados e inchados indicavam o choro e em seu colo aninhava o conde como se fosse uma criança a dormir.
Essa era uma decisão difícil e em juízo perfeito jamais faria isso, visto que William possivelmente o esfolaria vivo quando descobrisse, mas juízo era o que nunca teve e estava realmente compadecido daquele ser tão poderoso, que no momento o implorava de forma quase humilhante.
Ele soltou um suspiro, já que estaria ariscando seu coro, não deixaria de tirar alguma vantagem da situação e até já sabia o que iria pedir. “Coloque o corpo no chão, mas lembre-se: você me deve uma e deixou bem claro que não importa o que seja”.
Sebastian apenas assentiu depositando o conde no chão e se afastou, o shinigami ligou o motosserra e o som estridente que até pouco tempo lhe parecia insuportável, agora era seu balsamo. Não importava o que fosse, ele estaria disposto a pagar o valor pela reencarnação de seu mestre.
Grell se aproximou e sem hesitação fincou a deathscythe, o demônio cerrou os punhos e fechou os olhos por um momento, aquilo era doloroso de se ver. Logo o filme da vida começou a rodar serenamente e tanto shinigami quanto demônio presenciaram tudo que realmente se passou no coração do jovem.
Todas as lembranças de Ciel eram reveladas, sua infância feliz, os momentos com seus pais, as brincadeiras com Lizzy e seu cachorro Sebastian, o incêndio, a ajuda de Tanaka, o sequestro, as torturas, o pacto, os primeiros dias, meses e anos depois deste, a descoberta dos verdadeiros sentimentos...
“Eu tentei ao máximo não me afetar por suas provocações, não que tivesse com ciúmes, longe disso, eu: O conde Phantomhive, o cão de guarda da rainha, não me rebaixaria a tanto por causa de um simples mordomo. Um demônio.”
“Aquele olhar me deu um pouco de medo, era diferente dos que já tinha presenciado, mas mesmo assim não me deixei intimidar. E em um piscar de olhos, quando dei por mim, Sebastian havia tomado meus lábios, me deixando em choque e sem forças para reagir.”
“- Eu nunca deixarei que nada de mal lhe aconteça. Por que... Eu amo você, bocchan.
Eu senti meu corpo congelar, não estava acreditando no que tinha acabado de ouvir: um demônio dizendo que me amava.”
“Eu me sentia extremamente envergonhado com as reações do meu corpo, nunca tinha sentido essas sensações avassaladoras e apesar da vergonha, eu não queria parar, estava queimando de desejo. EU DESEJAVA, SEBASTIAN! Não pensaria em mais nada e deixaria para medir as consequências depois, agora apenas me entregaria a esse momento de prazer.”
“Eu já estava acordado há algum tempo, não queria admitir mais sentia uma imensa falta dos toques do meu mordomo, até mesmo dos beijos que ele roubava quando se aproveitava da minha distração”
“Ver todo aquele animo em seu rosto me deu um aperto no peito, odiava estar lhe enganando, mas por enquanto isso era necessário, pois tenho planos que infelizmente Sebastian não conseguiria entender.”
“- Porque você está me falado isso, bocchan?
- Nada de mais... Apenas quero que em momento algum você esqueça, o quanto você é importante para mim.”
“Houve momentos em que fechei os olhos e vergonhosamente imaginei estar com meu mordomo, sentia falta de algo que ‘fisicamente’ Elizabeth não poderia me proporcionar e para compensar imaginava ser em Sebastian que estava penetrando.”
“Entrei na mansão indo direto para o quarto, pelo menos o destino estava facilitando meu trabalho. Eu gostava de Elizabeth, ela era uma boa pessoa e o amor que me dirigia era puro, mas infelizmente ao fazer uma escolha, eu teria que abrir mão de outra e nessa disputa desvantajosa, ela não era a escolhida”
“Eu estou preparado para ter minha alma devorada, eu não tenho medo, nunca tive, só sinto por não poder ficar mais tempo ao lado de Sebastian e não conhecer meu filho, que mesmo não admitindo, já amo. Fora isso, eu estou em paz.”
“Toquei a pele macia que outrora tantas vezes beijei e olhei bem nos olhos avermelhados, depois os lábios e cada detalhe de sua face, queria memorizar cada pedaço de Sebastian, mesmo que depois de minha morte todas essas lembranças deixassem de existir “Sebastian... Eu nunca cheguei a te falar... Pelo menos não abertamente... Mas eu sempre te amei...”
A última lembrança de Ciel foi a do demônio selando seus lábios, depois disso o cinematographic ficou em branco e foi completamente coletado pela deathscythe. Todas as memórias, desde as mais inocentes até as mais impuras, foram reveladas e houve momento em que Grell desviou os olhos em respeito a intimidade do casal.
Enquanto terminava de preencher a ficha que acabara de forjar, o shinigami não se deu conta da aura que estava se formando no lugar. Sebastian estava imóvel, sem saber identificar o misto de emoções que sentia, mas com certeza eram das piores possíveis, sua sanidade estava definhando e a fúria que assolava seu peito estava ficando fora de controle, até que chegou o momento em que seus olhos cegaram e nada mais foi visto.
“Se-Sebas-chan...” Grell bambeou dando passos para trás, o ser a sua frente era assustador, e a obscuridade de proporções medonha parecia entranhar em seus poros causando um medo aterrador. Nunca antes pensou desejar estar bem longe daquele demônio.
Quando escutou a risada horripilante, se arrependeu ferrenhamente de não ter feito logo seu trabalho e ido embora, a escuridão tomou o lugar e por segundos não conseguiu enxergar nada, apenas sentiu uma forte turbulência ao redor que o fez prostrar-se no chão e depois tudo ficou calmo novamente. Ele não poderia dizer que não estava com medo de abrir os olhos, mas assim que o fez, foi enorme seu alívio ao perceber que estava sozinho.
Depois de séculos Belial estava descontrolado novamente, um grito gutural escapou por sua garganta liberando toda a dor dilacerante e foi ouvido por quilômetros de distância. O sentimento esmagador da perda deixou a fera dentro de si ensandecida e totalmente fora de controle. Tomado pela fúria e sem mais consciência do que fazia, ele se deixou levar por seus instintos primitivos, era como se tivesse voltado ao início de sua origem demoníaca e o terror se alastrou por onde passava.
Aquele dia ficou marcado na história de Londres e passado silenciosamente de geração em geração como a chacina de 1893, onde uma quantidade assombrosa de mortes aconteceram ao mesmo tempo, pessoas apareciam inexplicavelmente assassinadas de forma brutal e ninguém conseguia encontrar o causador de tais delitos. Exceto os shinigamis, esses que tentaram de todas as formas combater a fúria do demônio, mas era simplesmente impossível, não importava quantos fossem, não havia como deter Belial e o número de almas roubadas foi catastrófico.
Depois de horas intermináveis de terror, uma aparente calmaria pairou sobre Londres, porém o cenário era caótico, o caso sobrenatural havia dizimado uma grande parte da população, mas surpreendentemente em meio a toda essa chacina, houve uma sobrevivente inesperada.
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