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História Contos que vão morrer com o tempo - A História de Um Furo.


Escrita por: Luciuslestrange

Capítulo 6 - A História de Um Furo.


"Ela olhava o mundo com seus olhos lindos  

Enquanto ele só tinha olhos para os olhos dela." Escreveu Cecília  nas paredes do quarto que eram feitas de um material parecido com quadro de escola, um pouco mais resistente talvez. 
Ela escrevia com frequência enquanto aguardava insistentemente a chegada de Tatiana.  

O quarto cheirava a lavanda e os cachinhos de Cecilia ainda estavam úmidos pelo banho que ela acabara de tomar. Ela estava vestida de azul marinho e solidão. Jogada na cama com as pernas e mãos abertas como uma estrela do mar. Por um momento no qual ela fechou os olhos, conseguiu ouvir o barulho das ondas do mar quebrando na praia. Ahh... Queria estar com Patrícia em uma praia deserta, onde as duas seriam uma só criatura, onde a pele preta de Tatiana entraria em fusão com a pele sem cor de Cecília.  

 

- Ahh, aquela desgraçada deve ter feito algum feitiço, só pode!- disse ela enquanto lentamente abria os olhos, e se deparando com um ponto específico do forro de madeira que continha um pequeno furo. 

Ela era virginiana, perfeccionista ao ponto de separar camisetas por fabricante. Antes de alugar o apartamento inspecionou cada milésimo dele. Aquele furo não estava ali quando ela deitava todo dia com seu chá de carqueja e seus biscoitinhos de amendoim, Nem quando ela gemia com Patrícia entre suas pernas. Aliás, ela sempre olhava para o teto enquanto gemia de puro deleite. E aquele furo não estava lá! 

Seriam os cupins tão poderosos ao ponto de fazer um furo tão perfeito ? Será que os responsáveis por aquilo também eram virginianos, quer dizer, cupins virginianos ? Talvez ela mesma tivesse feito aquele furo enquanto dormia, quem sabe ela fosse uma daquelas sonâmbulas e achasse que o teto era um grande bolo caramelizado, já que ele era todo envernizado.  

Nãaao,aquilo já era loucura! Ela saberia se era uma daquelas sonâmbulas que passam no Discovery  Channel, a mãe com certeza teria historias constrangedoras de situações cômicas que ela passou por fazer coisas toscas enquanto dorme. 
O máximo que a Clarice conta sobre a infância da filha é que com dez anos tocava "Gota de Sangue" ao piano enquanto a mãe cantava, o que nem chega a ser tosco. Mas aquilo não era uma historia sua,  ela era  uma mera figurante em mais uma das muitas histórias do baú mental da mãe. De como sua voz  era cristalina, do futuro  como cantora que ela poderia ter tido e de como tudo isso foi arruinado pelo maldito feto que assombrara seu útero.  

 

Cecília era o feto. 

 

Mas a filha a despeito de tudo aquilo nem se incomodava,  já que tinha por perto inúmeros amigos e uma tia de casa grande com caramanchão com balanço no quintal dos fundos que morava próximo a masmorra da mãe. Vera era o nome da salvadora de Ceci. 
A menina cacheada adorava aquela tia, ainda mais quando ela acendia vela para os caboclos que ela colocava em altar. Era engraçado ver aqueles homenzinhos morenos, ou negros, negros mesmo com a mão no peito e uma outra ao léu. Sua tia dizia que ela acendia por proteção, para eles  lembrarem que ela existia. Achava aquilo estranho, era como se ela precisasse agrada-los, nem que fosse com a morbidez da chama de uma vela para que eles a protegerem dos maus caminhos, como num torpe jogo de interesses.  

A força na qual Cecília  acreditava, aquela força que nunca seca, não atendia aos desejos por interesse. Tinha de ter merecimento. 

 

Quando deu por si novamente, estava deitada na cama, só que dessa vez, mais encolhida, como quando era menina e chupava o dedo.  

O pai adorava aqueles momentos, quando Cecília ia passar os dias determinados pelo juiz na casa de Leocádio, ele não ia trabalhar a deixava ficar em casa, ela era o "bebê garotinha" dele, e ai se a "cobrona"(apelido carinhoso que tinha dado à ex mulher) viesse reinar, ele "a pegava de faca", como ele gostava de brincar. Quando ele morreu e o juiz deu a guarda total a Clarice,  a menina Cecilia se fechou em copas. 
Não brincava, não assistia desenhos e não lhe era permitido ver os amigos e a "Tia Catimbozeira," acabou tendo que esperar os dias passarem e os dias se tornaram meses e os meses anos e eles foram passando até a hora dela ser convidada pela tia Vera a trabalhar no escritório de contabilidade. Logo depois mandou  a mãe às favas e disse que ia embora, essa por sua vez aceitou  sem pestanejar, mas sentiu os anos roubados por aquela oportunistazinha quando se viu velha e sozinha.
Depois os bons tempos voltaram! Ela estudava para as provas da faculdade, procurava apartamento (já que morava com a tia) e cuidava do RH da firma. Depois de três meses, ela encontrou um apartamento com uma mobília minimalista e alguém pra dormir nele.  

 

Conheceu Tatiana em show do Engenheiros do Hawaii. Estava apinhado de gente e ela tinha pego um péssimo lugar onde todo mundo acabava encostando (ou em alguns casos encoxando) ela. Mas alguém se esfregava com Mas quando viu aquela menina da pele de ouro marrom com aqueles cabelos crespos soltos como os de Bethânia e aqueles olhos de mercúrio, sentiu as pernas bambearem. 
Obvio que na idade dela, quase vinte e todos, ela já tinha tido relações lésbicas (ela saia nos intervalos da faculdade e ia fumar e beijar as meninas do curso de filosofia no estacionamento), mas com aquilo foi diferente, foi como se uma descarga elétrica elétrica tomasse conta de todo o seu ser. Os olhares foram faiscantes, e depois do show, ela convidou a garota para um chope. "O máximo que ela vai me dizer é tome no cu", pensou ela. Mas a outra sorriu aceitou de praxe, como se recebesse convites de desconhecidas para tomar chope quase que diariamente. 

Foram num barzinho ali perto, pediram uma porção de batata frita e os maiores canecos de chope. Queriam beber até esquecerem seus nomes. 

 

- Então, eu sei que você estava me encoxando no show, que os seus peitos estão furando a sua blusinha e que eu to louca pra te beijar. Mas eu ainda não sei o seu nome. - disse a menina pálida. 

 

A menina negra sorriu um sorriso sacana e se aproximou, violentamente de Cecilia, que ao invés de ficar assustada, sorriu em conjunto.  

 

- Eu me chamo Izabel Margareth Tatiana de Moraes.  

 

As duas sorriram e beberam o chop. Tatiana não sabia como agir, ate porque normalmente ela tomava a iniciativa. Ela não esperava que aquela menina com cara de tonta,  com seus cabelos cacheados e seus olhos de nada pudesse ser capaz de ser tãaao direta.  

Mas ela era, e aquilo foi pela noite a dentro, até o momento maravilhoso em que as duas trocaram o primeiro beijo. Os lábios de Cecilia estavam calmos, talvez bêbados pela quantidade de chope ingerida. Tatiana estava mais desesperada, beijava e movimentava a língua como uma cobrinha viscosa. Elas lutavam uma luta ferrenha pelo amor,  e continuavam  beijo como se necessitassem dele pra viver. 

E de certa forma precisavam. 

 

Os devaneios de Cecilia acabaram quando a outra mandou uma mensagem dizendo  que estava na porta, esperando-a para abrir.  

Cecilia soltou um gritinho de excitação e saiu do parapeito da janela de seu quarto para atender a porta. Lá estava,  sua Tatiana linda com os cabelos crespos atados num rabo e um colar de búzios. Ela gostava muito de ser namorada dela, era como se as duas se completassem.
Beijaram-se longamente, como se qualquer uma das duas tivesse voltado da guerra e foram direto para o sofá, onde uma garrafa de Jurupinga (que Cecília quase não comprou quando viu o preço esmagador), e beberam. O álcool era o combustível da relação das duas. 

 

- Tem falado com a sua mãe ? - perguntou Tatiana logo depois de ter virado o copo, fazendo uma careta feia. 

 

Cecília sorriu na hora, mas logo depois virou os lábios em total sinal de amargura. 

 

- Ela não me responde. Liguei ontem pra vizinha dela, pra saber se estava bem. Pelo que eu entendi, vai a ópera todo domingo. 

 

Tatiana não pode deixar de sentir a fisgada no coração. 

 

- Amor, desculpa fazer você passar por isso tudo... 

 

- A culpa não é sua, a minha mãe é uma burguesa daquelas da década de trinta... Mesmo você tendo posses, ela ia colocar você pra comer na cozinha... 

 

... Como ela de da primeira vez né Cecília. Ela não foi nem capaz de olhar pra minha cara e dizer que eu não era digna da sala de jantar. - a garota parou um pouco o maçante monólogo para ver se teria replica da namorada, quando viu que não, continuou - Ela adorava dizer que tinha te criado para casar com um médico ou um advogado. Deu pra ver que ela não gostou de ter visto que você estava com uma  mulher, preta, comunista e Professora de História. 

 

Cecília parou um minuto e olhou para a outra, mediu cada centímetro de Tatiana, só com o olhar.  

Ela queria um cigarro, precisava fumar como as atrizes cínicas dos clássicos de Hollywood. 

 

- Tá,mas como a gente chegou no assunto "Dona Clarice Magalhães", mesmo ?   

 

A outra sorriu e preferiu falar de algo mais leve. 

 

- Onde tá a vitrola? Quero ouvir aquele disco de novo. Aquele que a gente estava ouvindo ontem, sabe ? Aquele daquela moça linda que cantava aquele bolero "Sabor a Mi." 

 

A vitrola tá  lá no meu quarto, e o bolero é mais ou menos assim: 

 

-Isso!  

  

Tanto tiempo disfrutamos de este amor 
Nuestras almas se acercaron tanto así 
Que yo guardo tu sabor 
Pero tu llevas también 
Sabor a mí 

 

- É a Eydie Gorme o nome dela. Minha mãe tinha um monte de discos dela, roubei alguns quando sai de lá.  

 

 

- Essa semana não teve gira no terreiro ?  

 

- Não. Minha tia foi pra Boston resolver uns assuntos da firma e ela ainda acha que "eu estou preparada para assumir os afazeres de mãe-de-santo." - Disse Cecília imitando a voz esganiçada da tia. 

 

- Coisas de Verinha. - Terminou Tatiana. 

 

As duas apenas sorriram e foram correndo para o quarto e saltaram no sofá. Tatiana logo subiu em cima de Cecília e começou a distribuir beijos e mordidas em seu pescoço.  

Cecília as vezes tinha de ir trabalhar de echarpe por estar com o pescoço marcado. Era um preço a se pagar. 

Mas logo ela começou a sentir sua intimidade umidificar, o atrito dos corpos era constante e excitante. Cecilia já soltava gemidos contidos com os lábios entreabertos. Ainda sim quando abriu os olhos, viu o furo no teto. 

Era como se alguém visse o que acontecia ali,  um stalker. Ela sempre ouvia a caminho do trabalho,na Band News, casos de neuróticos que faziam essas coisas. Provável morava em cima do apartamento dela era um moço chamado Danilo.  Sabia, pouco dele, que ele era servidor público, que ia no culto todo domingo e que gostava de jazz. Mas não poderia imaginar que o estilo pai de família, bem Bolsonaro; iria ficar olhando ela na hora do ''rala-e-rola''... Bem que dizem que quem vê cara não vê coração.

- Tati... Tatiana- disse Cecília tirando a namorada de cima dela com força.

- Oi meu amor...

- Esse furo maldito já estava ali quando você começou a frequentar minha casa?

- Que furo mulher... cê acha mesmo que eu reparava em furos quando eu vim à sua casa pela primeira vez, eu reparava em furos no teto?! eu queria mesmo era tu chupar todinha.

Cecília não pode deixar de se constranger pela forma um tanto quanto ''despojada'' que a namorada se referia as respectivas relações sexuais de ambas... Mas acabou rindo.

- Eu, diferente de você, prestava a atenção nos furos, e esse furo não estava ai!

Tati não pode deixar de revirar os olhos.

- Eu aqui cheia de amor pra dar e você vem me falar de furo Cecília? Eu devo ser uma merda mesmo!

Elas riram mais um pouco e logo depois voltaram a se beijar. 

Elas deitaram, e tentaram dormir. Mas Cecília se sentia afrontada pelo buraco maldito no forro do seu teto de madeira. E foi se emburrecendo até o momento que colocou um lustre naquele buraco; se sentiu feliz e indignada; hora por ter conseguido (enfim) ter tapado o buraco e triste por um  lindo lustre de pétalas de rosa; e triste por ele ter ficado fora do ponto central todo.

Mas ela era feliz, aprendeu a conviver com o lustre fora de foco.

 



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