História Coração de vidro - Acidente?

Entre duas notas de música existe uma nota, 
entre dois fatos existe um fato, 
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam 
existe um intervalo de espaço, 
existe um sentir que é entre o sentir 
nos interstícios da matéria primordial 
está a linha de mistério e fogo 
que é a respiração do mundo, 
e a respiração contínua do mundo 
é aquilo que ouvimos 
e chamamos de silêncio.

- Clarice Lispector

Eu e Seungkwan trocamos olhares assombrados. Os olhos do garoto ao meu lado estavam arregalados e sua boca entreaberta, sinal de que ele estava tão assustado e atônito quanto eu. Corri até a porta da frente, tentado a destrancá-la. O meu lado racional travava uma batalha com meu lado destemido, o primeiro me dizia que se eu tentasse bancar o heroi acabaria me arrependendo enquanto o segundo me incentivava a sair e ajudar quem quer que pudesse estar em perigo.     

  — O que será que foi isso? - Boo questionou em um sussurro, após o silêncio voltar a reinar no ambiente. 

— Só descobriremos se eu for lá fora verificar - respondi, apesar de não estar ansioso para desvendar a razão de alguém ter gritado de forma tão assombrosa.

Seungkwan me olhou como se eu tivesse algum problema psicológico e disse atordoado:

— Você está falando sério? Não passou pela sua cabeça que pode ser um assassino em série?

Engoli em seco, tentando em vão não me deixar influenciar por suas palavras. Pesquei meu celular no bolso da calça, decidindo agir de forma mais racional.

— Acho que é melhor ligar para a polícia - afirmei, soando mais seguro do que eu realmente me sentia. A situação seria menos intimidadora se a energia voltasse logo. Meu colega assentiu vigorosamente, me deixando menos hesitante quanto a minha decisão.

Antes que a polícia chegasse ao prédio, a energia se fez presente, me tranquilizando mais do que eu admitiria em voz alta. Em questão de segundos ouvimos sons de vozes no lado de fora, como se os moradores acreditassem que a luz os protegeria de qualquer mal em potencial.

— Pelo menos a energia voltou - Seungkwan disse, parecendo mais aliviado do que eu.

Sobressaltamo-nos ao ouvirmos outro grito agudo, só que este não parecia vir da mesma pessoa.

— Meu Deus! - o garoto de cabelos vermelhos exclamou completamente assombrado. Sua face estava pálida e ele mordia os lábios repetidamente.

Apesar de estar com o coração acelerado e a garganta seca, levei a mão até a maçaneta, decidido a descobrir o que estava acontecendo. Eu não podia ficar de braços cruzados enquanto meus vizinhos corriam perigo.

— Você está pensando em ir lá fora? Ficou louco, Hansol? - Seungkwan perguntou, soando assustado e indignado demais.

— Eu preciso - estava prestes a destrancar a porta quando ele levou sua mão até a minha, me impedindo de realizar tal ato. Como se minha mão estivesse em chamas, ele rapidamente a afastou da minha. Lancei um olhar questionador para meu colega, porém sua feição assustada me impediu de tecer qualquer comentário. 

Antes que tentasse garanti-lo de que ficaria bem, duas batidas na madeira fizeram meu coração falhar uma batida. Olhei através do olho mágico, respirando aliviado ao ver quem era.

— É o Seokmin - informei ao meu colega de quarto enquanto abria a porta.

A expressão profundamente nebulosa do garoto que sempre carregava um sorriso nos lábios fez com que meu estômago afundasse. Eu não precisava perguntá-lo o que acontecera para saber que não gostaria nem um pouco de sua resposta. Atrás dele, um rapaz tentava acalmar sua namorada, sussurrando algo em seu ouvido.

— O que aconteceu, Seokmin? - o tom de voz de Seungkwan refletiu o temor que sentia.

— O Minghao rolou escada abaixo...ele está desacordado... - nosso colega respondeu ao mesmo tempo em que um policial surgia no meu campo de visão.

Após a ambulância chegar a fim de levar Minghao, nosso vizinho do apartamento ao lado, para o hospital e o policial falar comigo e com todos os vizinhos do quinto andar, descobrimos que a queda dele, felizmente não fatal, poderia ter sido causada por alguém. Ou seja, havia uma possibilidade de que ele tivesse sido vítima de uma tentativa de assassinato.  

— Eu não acredito que isso está acontecendo - Seokmin lamentou, ainda abatido. Eu não havia sido apresentado ao Minghao ainda, contudo imaginava que ele era uma pessoa legal por ser um dos amigos do meu colega de trabalho. 

— Ele vai ficar bem - Seungkwan afirmou, tentando reconfortar seu amigo. Não consegui deixar de não notar quando ele cobriu a mão de Lee com a sua, mantendo o contato. O contato físico não parecia aturdir o garoto de madeixas vermelhas, ao contrário do que ocorrera mais cedo quando ele havia encostado sua mão na minha.

Seokmin dissipou meus pensamentos irrelevantes e supérfluos ao levantar-se do sofá falando:

— Eu vou passar a noite no hospital, não aguento ficar esperando por notícias aqui.

— Eu vou com você - Boo disse, se levantando também.

Estava imerso em pensamentos relacionados ao meu colchão quente e confortável enquanto mastigava lentamente uma das minhas típicas torradas de café da manhã quando ouvi a porta ser destrancada. Segundos depois um Seungkwan exausto apareceu no meu campo de visão.

— E o Minghao? - questionei, pois a última notícia que havia recebido fora na noite anterior. Eu não o conhecia, porém desejava que ele se recuperasse rapidamente.

— Ainda inconsciente, mas está estável - meu colega respondeu em meio a um bocejo arrastado. Assenti, sem saber o que dizer naquela situação - Eu vou dormir um pouco antes de ir para a faculdade, estou praticamente morto.

Assenti novamente, terminando meu desjejum matinal. Assim que ele entrou no quarto, lembrei-me de que deveria lhe perguntar se Seokmin iria ao trabalho. Levantei-me e andei a passos preguiçosos até o cômodo vizinho. Seungkwan já estava deitado quando parei na entrada do aposento.

— O Seokmin vai trabalhar hoje? - questionei antes que ele me perguntasse o que eu fazia ali. Já percebera que a falta de uma boa noite de sono não o deixava com o melhor dos humores, o que era totalmente compreensível. 

— Não sei, me esqueci de perguntar. Manda uma mensagem para ele.    

— Já mandei, ele não visualizou.

— Hm...se ele não for, é só falar para o seu chefe o que aconteceu.

 — Ok, pode deixar.

Antes que eu fechasse a porta para que Seungkwan pudesse dormir em paz, este chamou meu nome. 

— Oi? - perguntei, espiando pela pequena abertura.

— Você já morou na Coreia antes?

— Sim, por quê? - perguntei, repentinamente curioso com seu questionamento inusitado.

— É que eu acho que nós éramos colegas de sala no ensino fundamental.

— Sério?

— Eu me lembro de que havia um garoto americano chamado Hansol na minha sala no quinto ano e você se parece muito com ele.

— Nossa, você tem uma memória muito boa, hein - falei genuinamente surpreendido com o fato de ele se lembrar de mim, pois eu era muito tímido quando criança. Além disso, eu e minha família havíamos morado em Seoul apenas por dois anos. Quando eu completei dez anos de idade, nós voltamos para Nova York. Tentei me recordar de algum rosto parecido com o seu em meio às lembranças da minha infância, porém minha memória não era tão boa quanto à dele.

— Pelo jeito você não se lembra de mim - ele parecia um pouco decepcionado, mas talvez fosse apenas impressão minha.

— Eu não sou muito bom em lembrar rostos, me desculpe.   

— Já faz 11 anos, Hansol, é normal. Agora chega de papo que eu preciso dormir um pouco - Seungkwan deu fim a nossa breve conversa, virando-se para o outro lado. Fechei a porta cuidadosamente enquanto desejava me lembrar do seu eu infantil.