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História Crônicas - Sobre o discurso de "bandido bom é bandido morto"


Escrita por: Brokenprince93

Capítulo 8 - Sobre o discurso de "bandido bom é bandido morto"


 

 "Bandido bom é bandido morto".

 

Uma afirmação um tanto comum, não acha?

 

Tenho certeza que você já ouviu alguém dizendo algo parecido, ou leu a respeito em algum "textão" no Facebook; principalmente após assistir no noticiário sobre algum crime hediondo ou, em alguns casos, após sofrer de algum tipo de violência você mesmo. Acredito que a maior parte das pessoas que sofreu ou presenciou algum tipo de violência (como assaltos, agressões, furtos ou coisas de maior gravidade) chegou, talvez no momento seguinte ao ter passado ou presenciado tal violência, a desejar a morte do agressor. Nesses contextos, não me parece algo tão hediondo, concorda? Ao contrário, me parece algo completamente compreensível em tais circunstâncias.

Logo, gostaria de deixar claro que não é esse o meu comportamental alvo aqui. Sou perfeitamente capaz de entender que pensamentos como esse passem pela cabeça até da mais desconstruída das mentes em um momento de elevado estresse.

 

O problema, a meu ver, é quando esse pensamento persiste e se generaliza.

Quando esse pensamento transcende as fronteiras das situações de violência e começa a ser considerado como solução efetiva para evitar tais situações.

Quando esse pensamento se torna um discurso compartilhado por milhões de pessoas insatisfeitas com a segurança pública, pessoas que nunca se perguntaram:

 

Quem é esse bandido que eu quero ver morto?

 

É o estuprador?

É a mãe que roubou ovos de chocolate para os filhos?

É o político que desvia milhões do dinheiro público?

É o ruralista que massacra índios?

 

A cada novo episódio em que "bandidos" saem impunes ou com alguma punição branda demais para o senso comum geral, uma nova histeria coletiva aparece fazendo com que uma parte significativa da população comece a bradar a plenos pulmões clamando por pena de morte ou para fazer justiça com as próprias mãos. Uma sede por "justiça" acende uma chama em seus corpos e mentes que parece queimar qualquer possibilidade de pensar sobre a pergunta que fiz anteriormente e que repito agora:

 

Quem é esse tal bandido?

 

Seria ele um mostro?

Seria ele um animal?

Seria ele um alienígena?

Possuído por algum ser sobrenatural representante do mal?

Ou...

Talvez...

Será possível ele ser apenas humano...?

 

Já pensou nisso?

 

Sim, acredito que ele seja um ser humano. Alguém como eu, alguém como você, caro leitor. Entendo que talvez você esteja chocado agora e imagino que ficará ainda mais com o que direi a seguir: ele é um ser humano e possui os mesmos direitos que eu e você. Direitos comuns a toda a espécie humana. Direitos Universais.

Direitos proclamados no dia 10 de Dezembro de 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas. Considerados como inalienáveis e fundamentais na garantia da liberdade e dignidade humana. Direitos esses que pessoas que se valem da lógica que busco desconstruir nesse texto, chamam de "direitos de bandidos", acreditando que deveriam ser válidos apenas aos autoproclamados "cidadãos de bem".

 

Mas afinal de contas quem seria esse cidadão de bem?

 

O cidadão de bem, caro leitor, é aquele que se julga exemplo do que todos no meio social devem ser. Aquele que se vê acima do bem e do mal, capaz de definir o comportamento do outro se baseando apenas no seu próprio. O cidadão de bem somos nós, eu e você, que nunca matamos ninguém, nunca roubamos nada, nunca jogamos papel no chão nem sonegamos impostos. Ou ao menos é o que gostamos de pensar para conseguir dormir a noite. Mas o jornalista Caco Barcellos parece pensar diferente, segundo ele nós, cidadãos pagadores de impostos e senhores de nossos deveres somos os grandes vilões da sociedade, somos os assassinos: "O matador brasileiro está em todas as classes sociais. O 'cidadão de bem' responde por 80% das mortes. Os matadores somos nós, mas o dedo sempre é apontado para o delinquente pobre".

Esse trecho, extraído de uma palestra realizada por ele em Franca, São Paulo, no ano de 2015, responde bem as duas perguntas que fiz até agora:

 

Quem é o bandido?

Quem é o cidadão de bem?

 

Vale pensar também que esse anseio do cidadão de bem por violência como solução não é algo injustificado, não é apenas um desejo, um capricho. Não, essa lógica de se usar de violência para lidar com violência encontra sua justificativa em uma sociedade frustrada com a impotência de seu estado em lhe garantir um nível aceitável de segurança, resultando nessa insatisfação advinda de situações de violência cotidianas, levando ao desejo de que se lide com o sujeito causador de maneira rápida e permanente. Aspecto muito bem descrito por Hannah Arendt algumas décadas atrás: "O recurso da violência advém das situações e espaços onde o poder deixou de ocupar com legitimidade e eficácia".

Deixando-nos guiar por essas insatisfações e inseguranças cotidianas, fica fácil entender porque nos esquecemos de que aquele outro (que definimos como infrator, criminoso, bandido, monstro, animal...) também é um ser humano. Quando começamos a desumanizar o sujeito com predicados fica ainda mais fácil pedir pelo fim de sua vida.

Pois estamos simplesmente nos desfazendo de algo que nos incomoda, algo descartável que não tem qualquer importância social. O bandido que querermos ver morto quando assumimos esse tipo de discurso é o bandido pobre, negro e marginalizado. Um discurso que fomenta a criminalização da pobreza presente em nosso cotidiano, um sentimento internalizado que se liga ao racismo em uma relação simbiótica, doentia e sintomática.

Uma relação que se torna mais nítida quando pensamos os direitos humanos como um pressuposto de igualdade de tratamento entre os povos. Quando começamos a entender que ao negarmos a um ser humano algum dos seus direitos fundamentais universais (como o direito a vida, moradia e educação), estamos perpetuando um discurso segregador e opressor. Um discurso de classe que mata milhares de jovens negros anualmente em nosso país.

 

Concluindo, a pena de morte já existe nas comunidades pobres e favelas as margens das grandes capitais brasileiras.

Estamos matando pobres, negros e marginalizados todos os dias.

Estamos matando covardemente seres humanos sem voz.

 

O bandido em questão só é bom morto quando atende aos critérios definidos pela classe dominante.



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