"Não é que você seja diferente, mas é que ninguém consegue ser igual a você."
(William Shakespeare)
— O tio Yashamaru veio trazer alguns documentos importantes para o papai. Não sei do que se tratam, ele nunca me explica isso direito...
Foi o que Gaara respondeu quando Temari e Kankuro perguntaram o que ele estava fazendo ali.
A noite era agradável, o ar estava frio, mas era aquele friozinho que mais parecia um toque delicado... O céu estava vestindo um manto azul escuro, com estrelas prateadas, piscando aqui e ali. E os três irmãos da Areia estavam sentados nos degraus da escada, na entrada da Mansão Kazekage.
Temari já tinha o ursinho do irmão mais novo em suas mãos e brincava com ele, enquanto Kankuro se levantava e começava a correr pelo jardim.
— Como é o nome dele? – Perguntou a menina, a respeito do urso que segurava e abraçava vez ou outra.
— Ele se chama Buba-sama.
E Temari teve que sorrir com aquilo, fazendo Gaara sorrir de volta.
— Que nome engraçado!
— Você acha?
Sua nee-san fez que sim e depois os dois ficaram em silêncio, observando Kankuro brincar no meio das plantas do jardim. Mais uma vez, foi Temari que voltou a dialogar com Gaara:
— Papai disse que Yashamaru é quem cuida de você.
— É sim, ele cuida muito bem de mim, nee-san. Conta histórias e faz um monte de comidas gostosas para eu comer. Ah, e desenha comigo também, quando não está muito cansado do trabalho no hospital.
Temari concordou, sorrindo para Gaara e para Buba. E depois disso, voltou à atenção de irmã mais velha para seu outro otouto.
— Kankuro! – Ela o chamou em voz alta. — Otou-sama já disse para você não ficar correndo pelo jardim, nem destruindo as flores como da última vez!
Com isso, o garoto que acabara de completar oito anos de idade voltou a se juntar aos irmãos.
Kankuro fechou a cara.
— Eu não estou destruindo nada! – Argumentou, irritado, sentando-se ao lado da menina loira.
Os três ficaram calados, o que permitiu a Gaara olhar Kankuro um pouco mais e estudar seu rosto: notou mais precisamente aqueles traços roxos na face do irmão, desenhados tanto na horizontal quanto na vertical. Constatou que Kankuro também poderia se encaixar na categoria que Gaara estava inserido: ele também era diferente.
— Por que você tem listras roxas na cara, nii-san? — Gaara perguntou, sem nenhum pudor.
E sem hesitar também, Kankuro respondeu com a voz cheia de convicção e orgulho:
— Ora, eu nasci assim!
— Mentira! – Temari retrucou. — Ele desenha essas coisas no rosto, todo o santo dia!
— Não desenho, nada!
— Desenha, sim!
— Não desenho!
O ruivinho sorria, enquanto assistia seus irmãos mais velhos discutindo.
E foi nessa hora que Yashamaru reapareceu ao lado do Quarto kazekage. Imediatamente, os três irmãos pararam tudo o que estavam fazendo e se colocaram de pé. Foi o tio quem começou a falar.
— Já estamos indo, Gaara. Despeça-se de Temari e Kankuro para voltarmos para casa.
Mas o menino não fez outra coisa, senão olhar a figura do pai e sorrir para ele. Meio sem jeito, o pai sorriu de volta.
— Como você tem passado, Gaara? – Rasa perguntou.
— Estou bem, otou-sama.
E essa foi a conversa do pai e do filho, depois de se reencontrarem após o período de quase três meses.
Yashamaru despediu-se do kazekage com uma reverência formal, abraçou os dois sobrinhos mais velhos com bastante carinho e em seguida, pegou Gaara pela mão, deixando a propriedade do líder supremo da Areia.
Enquanto rumavam de volta para casa, pelas ruas silenciosas de Suna, Yashamaru sentia-se agradecido por mais um relatório entregue a respeito do jinchuuriki do qual ele era tutor; sentia-se satisfeito em saber que, assim como no texto anterior, esse também era igualmente satisfatório em relação à saúde física do menino e o fato de não haver nenhum relato sobre incidentes de Gaara. Ele estava há quase cinco meses sem atacar ninguém “por acidente”. Isso deixava Yashamaru mais aliviado e com certeza, muito feliz.
Igualmente perdido em pensamentos, Gaara recapitulava o breve momento que esteve ao lado de seus irmãos mais velhos; pensava mais precisamente em Kankuro e aquelas linhas coloridas em seu rosto pálido.
E foi sobre isso que o menino questionou.
— Kankuro também desenha no próprio rosto, você viu? – Yashamaru fez que sim e Gaara continuou: — Ele me disse que nasceu daquele jeito.
O tio teve que rir alto, nessa hora.
— Ah, mas isso não é verdade, de jeito nenhum!
— Eu sei, a Temari disse que ele desenha aqueles traços no rosto todo o santo dia!
— Viu só, itoshii? Todo mundo é diferente. Kankuro faz aquilo porque gosta muito de teatro de marionetes e é assim que os atores de teatro que usam fantoches se pintam.
Gaara sorriu e continuou caminhando, agora mais animadamente.
***
Já em casa, depois de fazerem uma breve refeição juntos, Yashamaru colocava Gaara na cama outra vez, para o menino recomeçar a rotina de esperar e esperar até a manhã seguinte surgir de novo.
Antes de sair do quarto do sobrinho, o tio sentou-se ao seu lado na cama e o explicou um pouco mais sobre o motivo de ele ser tão único do jeito que era.
— Então quer dizer que é por causa do Espírito da Areia que eu sou assim?
— Isso mesmo, Gaara. Por causa dele, você ganhou traços únicos quando nasceu e é por isso que te faltam sobrancelhas e seus olhinhos parecem como os de um guaxinim!
O menino observava o rosto do tio, pensando em como Yashamaru era bonito aos seus olhos, em como todos os traços de seu rosto pareciam adequar-se perfeitamente bem. Mas, como ele já havia aprendido naquele dia, Gaara era único por ser quem era. E isso não era algo ruim de acordo com as palavras de seu oji-san.
— Vou tirar um tempo para conversar com sua professora a respeito do que aconteceu hoje na escola. Mas quero que você não se sinta mais triste por não ser como as outras crianças, certo?
— Hai. Eu não vou mais ligar para isso, Yashamaru.
— Ótimo! – O jovem médico deu um beijo de boa noite na testa do sobrinho.
Levantou-se e antes de apagar a luz, voltou mais uma vez os olhos violetas para Gaara.
— Descanse um pouco. A gente se vê amanhã!
O menino fez que sim, e em seguida, cobriu um pouco mais o corpo com os lençóis da cama. Sorriu e viu Yashamaru apagar a luz.
***
Duas horas da manhã.
Como não podia dormir, Gaara se levantou da cama e saiu do quarto. Tentava não fazer nenhum barulho para não acordar Yashamaru, acidentalmente.
Ele desceu as escadas e colocou-se frente à estante de livros que ficava em uma das paredes da sala de estar.
Por um segundo, percorreu com os olhos aquele monte de títulos de livros e encontrou o que estava procurando. Era um livro de poesias. Abriu o objeto e encontrou um capítulo já demarcado. Cogitou que seu tio já havia lido aquilo, talvez. O nome do texto chamou sua atenção logo de cara: “Ser diferente”.
Antes de qualquer coisa, Gaara observou aquela página amarelada, as palavras corridas num escrito longo e centralizado; passou os dedinhos pelas letras do texto, desenhadas em alto relevo, quase imperceptível.
Começou a leitura, mentalmente:
"O diferente é quem foi dotado de alguns mais e de alguns menos em hora, momento e lugar errados para os outros que riem de inveja de não serem assim. O diferente nunca é um chato. Mas é sempre confundido por pessoas menos sensíveis e avisadas. Supondo encontrar um chato onde está um diferente, talentos são rechaçados; vitórias são adiadas... E esperanças são mortas.
Um diferente medroso, este sim, acaba transformando-se num chato. Chato é um diferente que não vingou. Os diferentes muito inteligentes percebem porque os outros não os entendem.
Diferente que se preza entende o porquê de quem o agride.
O diferente paga sempre o preço de estar - mesmo sem querer - alterando algo, ameaçando rebanhos, carneiros e pastores. O diferente suporta e digere a ira do irremediavelmente igual, a inveja do comum, o ódio do mediano.
O diferente começa a sofrer cedo, já no primário, onde os demais, de mãos dadas, e até mesmo alguns adultos, por omissão, se unem para transformar o que é potencial em caricatura. O que é percepção aguçada em: "puxa, fulano, como você é estranho”.
O diferente carrega desde cedo apelidos que acaba incorporando. Só os diferentes mais fortes do que o mundo se transformaram em grandes modificadores.
Diferente é o que se emociona enquanto todos em torno agridem e gargalham. É o que chora onde outros xingam; estuda onde outros burram; quer onde outros cansam; espera de onde já não vem; sonha entre realistas; concretiza entre sonhadores; fala de leite em reunião de bêbados; cria onde o hábito rotiniza.
Sofre onde os outros ganham.
Diferente é o que fica doendo onde a alegria impera. Fala de amor no meio da guerra. Deixa o adversário fazer o gol, porque gosta mais de jogar do que de ganhar.
Os diferentes aí estão: enfermos, paralíticos, machucados, inteligentes em excesso, narigudos, barrigudos, joelhudos, de pé grande, de roupas erradas, pálidos demais, cheios de espinhas...
A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os pouco capazes de sentir e entender. E nessas moradas estão tesouros da ternura humana... De que só os diferentes são capazes.
Gaara terminou a leitura, fechou o livro e abriu um sorriso solitário no rosto.
A madrugada estava fria e ele estava cansado. Então, resolveu guardar o livro e voltar para o quarto, para quem sabe, pelo menos naquela noite, tentar pegar no sono, nem que fosse só um pouquinho. Deitou-se na cama e antes de fechar os olhos azuis esverdeados, sussurrou para si mesmo:
— ...E nessas moradas estão tesouros da ternura humana... De que só os diferentes são capazes.
Sorriu outra vez; conseguiu pegar no sono.
E esse foi o fim de mais um dia na vida daquela criança de cinco anos que era, de fato, única.
A dor passou...
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.