Quando acordei, tudo aquilo parecia ter sido um sonho. Esfreguei os olhos tentando acordar duma vez, me espreguiçando vagarosamente. Olhei no celular: 10h45. Faziam anos que eu não dormia tanto tempo assim. Olhei pro lado, a cama ainda desarrumada, mas ninguém lá, então fui até a varanda, como todas as manhãs. E lá estava.
Os cabelos completamente desarrumados, o rosto amassado por tanto dormir, uma expressão de sono, o corpo banhado em preguiça, as mãos fortes segurando um cigarro. Ele olhou e sorriu. Os olhos negros me espelharam e eu pude ver minha própria expressão de felicidade.
- Eu não sabia que você fuma.
- Existem muitas coisas que você ainda vai saber sobre mim. E eu não sabia que você acordava antes do meio dia.
- Existem muitas coisas que você ainda vai saber sobre mim. - ele riu de canto de boca. - Vamos tomar café?
- Eu já preparei tudo. Espera só eu terminar de fumar.
- Tudo bem. Quer ficar sozinho?
- Não, gosto da sua companhia.
- E eu gosto de cheiro de cigarro.
Ele terminou o cilindro vicioso cheio de nicotina e passou as mãos pelo rosto e pelo cabelo. Parecia aflito ou preocupado com algo. Descemos as escadas cantarolando alguma música, que provavelmente não era a mesma pra nós dois. Na cozinha, havia pães de queijo ainda quentinhos, chá e frutas, e algumas flores num vaso.
- Foi você que fez tudo isso?
- Foi poxa. Achei que você fosse gostar. Não sei como você gosta do chá, então fiz matte mesmo. Mas já deve estar gelado...
- Muito obrigada Ed - eu o abracei - tá perfeito. Fazem anos que eu não tomo um café da manhã igual esse, sem pressa. Você tem me feito muito bem.
- Você não tem medo de dizer essas coisas? - ele perguntou enquanto eu pegava limões pra pôr no chá e requeijão pros pães de queijo.
- Não, - eu me virei pra ele - é a verdade. Porque eu teria medo de falar a verdade? É libertadora.
- Mas não te deixa constrangida ou algo do tipo?
- Não, eu me sinto confortável com você. Eu só espero que você esteja sendo sincero também.
- Estou sendo mais do que eu posso.
Nos sentamos um do lado do outro, e comemos apreciando todos os sabores. O dia estava bem cinza, mas estava mais bonito do que nunca. Ele estava mais bonito do que nunca também, naquela camiseta larga de pijama cinza.
- Meu Deus Morgana, porque você fica me olhando?
- Eu já disse: porque te acho bonito. Inclusive, você tá bonito agora, com essa blusa cinza. Não tem porquê ficar constrangido.
- Você também fica bonita com cara de sono. - ele disse acanhado - Seu pai não ficou bravo por eu estar aqui?
- Não. Meu pai quer que eu aproveite a vida, depois de tudo que aconteceu. Ele é amigo de todos os meus amigos. Quando ele chegar, você vai ver. - eu ri com saudade - Ele é uma pessoa maravilhosa.
- Quero conhecer ele. Espero que ele goste de mim.
- Ele vai gostar, com certeza.
Quando terminamos o café, já era quase meio dia, e estávamos cheios.
- O que você quer fazer agora?
- Não sei. Quer ficar no quarto ouvindo música ou quer dar uma volta?
- Hmmm... Acho que preciso te levar num lugar. Vamos?
- Que lugar?
- É surpresa. Anda, se troca. Eu vou arrumar a cozinha e já subo.
Eu subi as escadas imaginando qual seria a surpresa. Não me passou nada pela cabeça, e eu queria muito adivinhar o que era. Coloquei uma calça jeans, uma blusa de frio azul por cima do pijama mesmo, e calcei meus allstar. Aí fui pentear o cabelo e todo o resto. Ele ficou pronto antes de mim, e riu disso.
No carro, com o rádio ligado, como sempre, fizemos algumas teorias sobre séries e o que a gente queria que acontecesse. Foi legal. Mas estava demorando demais pra chegar... Depois de um breve minuto de silêncio, eu perguntei:
- Já estamos chegando?
- Quase. Mais dois minutos.
Estávamos no meio de uma estrada de terra, que mais parecia só de poeira. Era uma terra estranha - muito branca pros padrões de terra - com plantas dos dois lados, praticamente nos cercando. E então, do nada, surge o imenso. O mar bravo e pálido chacoalhando suas águas contra as pedras, o vento calmo e um pouco gelado, a areia fina, tudo era lindo.
- Aqui é meu lugar preferido no mundo. Valeu a pena a espera?
- Valeu muito. Porque aqui é seu lugar preferido?
- Uma vez, meu padrinho me trouxe aqui, quando eu era pequeno. Eu fiquei maravilhado com tudo o que tinha. Com o horizonte, as plantas, a água, tudo. Aí eu comecei a vir sozinho de bicicleta. Vinha pra tudo: pra ler, ouvir música, pensar, qualquer coisa. Mas nunca trouxe ninguém aqui, nem minha ex namorada, então se sinta especial.
Eu o abracei. Realmente estava me sentindo especial. Estava feliz por estar ali, e naquele momento tinha esquecido de tudo. Dos meus pais, todos eles, do Stevie, da ansiedade, da saudade. Estava em paz, pela primeira vez em anos.
- Obrigada, Ed. Você é maravilhoso.
Deitamos na areia e conversamos sobre coisas banais por horas. Descobrimos muito sobre o outro. Por exemplo, ele tem uma irmã mais nova, que ano que vem entrará pra nossa escola; a mãe dele disse que quer me conhecer e a comida preferida dele é pizza. A cor é azul, a estação é inverno, a banda é Bring Me The Horizon. Ele ficou pasmo quando descobriu sobre meus pais, me abraçou forte. Somos muito parecidos. Quando saímos de lá, fomos pra uma pizzaria comer, e depois andamos sem rumo pela cidade.
- É melhor a gente ir pra casa. Vai chover daqui a pouco.
- Tudo bem, vamos.
Chegamos e nos revezamos pra tomar banho. Já deitados, com City and Colour tocando baixinho no fundo, começou a chover, como nunca choveu antes. As janelas grandes do meu quarto deixavam a gente ver os raios lá fora, iluminando o escuro do céu e a água que caía com força.
- Ed?
- Que foi?
- Eu tô com medo. Muito medo. Você pode deitar aqui comigo?
- Posso.
Ele veio e se encaixou do meu lado. Eu deitei no peito dele, mesmo que isso o deixasse desconfortável - eu precisava daquilo naquele momento. Ele pareceu feliz. Deu um beijo na minha testa e eu logo peguei no sono. Tive o mesmo sonho de sempre, com o cara que eu sonhava desde criança, mas pela primeira vez eu pude ver o rosto. Era ele.
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