A primeira recordação que lhe vinha à mente era de quando tinha apenas dois anos. Não fazia tanta diferença de ser sido em tão tenra idade, pois a cena sempre era a mesma. Sempre seria a mesma.
Fugindo pelo corredor. Sempre e sempre. Seus olhos fitavam as paredes que eram azuis; em outra vez, amarelas; brancas, na seguinte. Vermelhas. Marrons. Cinzas. Não existiam nem cores e nem tons suficientes para todas as vezes. Quanto aprendeu a contar, decidiu não mais reparar nas cores e nem na quantidade de vezes. Não fazia mais diferença.
No colo de sua mãe, no ninar da escapada alucinante. Nos braços de seu pai, jogada no ombro, o cabelo negro já a lhe cair encima dos olhos. Correndo com suas perninhas curtas, as madeixas alcançando o alto de suas costas. A firmeza e equilíbrio no andar rápido, a contrariedade e a compreensão nascentes em seus olhos azuis esverdeados. Os pés fincados no chão por rebeldia, a longa trança escura já atingindo os quadris, sendo carregada à força por seu pai.
Não havia lar; existia abrigo. Em todos os lugares, um esconderijo. Se lá permaneciam por cinco dias-padrão, já era muito. Sentada geralmente no chão gelado a tentar se entreter com os únicos dois brinquedos que tinha, assistia a conversa dos pais, a qual inevitavelmente possuía o mesmo teor.
- Aqui não é seguro, Qazir! Já tenho a rota para irmos. – falava sua mãe, nervosa, os olhos castanhos esverdeados ansiosos a dançar pelo pequeno ambiente, avaliando o que deveria ser levado e o que seria deixado para trás.
- Calma, minha flor... Chegamos ontem. Está tudo bem. – sua voz era de uma paciência infinita – Verifiquei tudo. Não fomos seguidos. Podemos passar um tempo aqui.
- Não, não...! Você não viu aquele grupo de rodianos nos vigiando. Devem ter nos reconhecido. Eu vi... eu senti. – passou rápida e repetidamente a mão pelo cabelo ruivo curto, sentindo falta dos compridos fios que cortara recentemente. Arfava, a cabeça a virar para todos os lados – Temos que planejar sair daqui no máximo amanhã! De noite... sim, de noite. Sempre de noite. A noite nos protege. – as mãos tremiam encima das coxas – A noite vai nos ocultar deles. A noite na qual não podemos ficar.
Qazir Mayttar abraçou Layl com carinho, porém com firmeza, a fim de que a mulher parasse de tremer e de delirar no seu discurso. Os remédios não controlaram os sintomas e ela, em um rompante impetuoso, parara de tomá-los já há tempos, afirmando que agora realmente podia enxergar a realidade e lidar com ela, mesmo que fosse daquele modo alucinado. Não havia como demovê-la e ficavam à mercê de picos de desatino, como aquele que ora se aproximava, chegando a culminar em alucinação a pontos perigosos para a segurança deles.
Os espasmos de tremor não diminuíram. Layl Ghaya se soltou dos braços de seu companheiro abruptamente e foi ter com a filha, pegando-a no rosto, examinando-a de forma sistemática e paranoica. Encarava a criança com angústia e ferocidade, cutucando-a no corpo e na alma.
- Pare, mamãe! – reclamou Lore – Eu estou bem! Você já me viu assim agorinha! Isso dói!
- Não minta para mim, Lore Layl Andhera Ren! – segurando-a pelo braço com força, sacudindo a garota - Você ouviu alguma voz dentro de sua mente? Sentiu vontade de fazer algo estranho? Percebeu alguém a vigiando por dentro?
- Layl, está machucando nossa filha! – Qazir forçou a mulher a soltar a menina, a qual estava mais com raiva do que assustada. – Já lhe disse que vasculhei a mente dela e não há nada do que temer. Não fizeram nada com ela.
- Como pode ter certeza? Você não é um jedi para realmente saber! – olhou-o dos pés à cabeça, um certo desprezo nas palavras – Não passa de um padawan adulto.
Qazir suspirou com a ofensa – padawan adulto – e a verdade constante nela. Sua mestra Aayla Secura, uma twi’lek rutiana, o tomara como aprendiz e não pudera concluir seu treinamento, pois morrera no Grande Expurgo. Ela o recrutara já adulto, oculto do Conselho Jedi, pois não concordava com muitas de suas premissas, beirando à zona cinza da Força. Enxergara nele um potencial que seria certamente desprezado pelo Conselho. Mantivera-o oculto, seu treinamento esporádico e velado. Não houvera muito tempo para ensinar-lhe o suficiente, infelizmente. Contudo, graças a esse anonimato, ele não fora caçado no extermínio jedi e ali se achava agora, um padawan praticamente iniciante sem mestre.
De um escárnio para a época dourada dos jedis, acabava, pois, ser um tipo de elogio estranho ser um padawan já como homem maduro naqueles tempos sombrios imperiais. Mayttar meneou a cabeça, incomodado com aquela situação na qual se encontrava: possuía ciência da Força, porém sem habilidade de lidar com ela e fazer-lhe o uso necessário. Nem um sabre de luz chegara a construir.
Ter algum conhecimento sem habilidade para utilizá-lo mais parecia uma maldição, uma impotência frustrante. Entretanto, sua natureza pacífica o auxiliara a suportar sua condição. E o amor por Layl o ensinara a desenvolver uma paciência sem limites.
Layl encarou os olhos azuis do marido, aquele homem que ela amava mas que a irritava profundamente com sua calma. Qazir não sabia o que ela tinha passado. Ele não tinha como saber. Desejava que ele soubesse... assim compreenderia literalmente sua loucura em vez da eterna complacência em seu olhar.
Retirou-se irritada da pequena sala em direção do microdormitório de três metros por dois, fechando a porta com violência, já que o mecanismo automático desta se achava avariado naquele abrigo pobre.
- Papai – a menina se aproximou dele – Eu não fiz nada. Não tenho nada de errado na cabeça. Até quando mamãe vai fazer tudo isso?
O pai sorriu diante da precocidade da indignação justa da filha e assentiu com a cabeça, agora com um pesar. Ela tinha apenas seis anos e só conhecia essa existência sem sentido e sem destino. Os anos passaram rápido no frenesi das escapadas. Lore havia nascido em um desses abrigos, vivido nesses quartos temporários apenas com ele e Layl, sem contato com outras crianças, adultos ou seres de quaisquer espécies.
- Venha cá, minha pequena. – colocou-a em seu colo, enquanto examinava o braço dela que ficara roxo. Alisou-o com carinho e deu um beijo no machucado – Já lhe expliquei a razão de sua mãe agir assim.
Sim, e não apenas uma vez... O pai de sua mãe, seu avô, fizera uma coisa muito, muito, muito ruim com ela... entrara na cabeça dela. Lore ficava a imaginar o avô fazendo isso e sua imaginação não chegava a tanto. Todavia, devia ser algo tão terrível que sua mãe ficara louca e pensava que ela, Lore, também tinha ficado maluca.
Lore alisou os cabelos escuros do pai em agradecimento. Ele procurava sempre estar com ela e tratava-a com respeito e como adulta, tão diferente de sua mãe... que constantemente a vigiava com desconfiança.
- Você sabe quem é o pai de sua mãe? – perguntou delicadamente.
- Oh, sim. O Imperador Palpatine. Mamãe me falou dele um dia. Que ele é ... – franziu a testa – muito mau. Mau mesmo.
- Sim... mas creio que você não sabe realmente quem ele é. – procurou as melhores palavras, embora dificilmente as encontraria para aquele ser – Ele governa toda a galáxia. Ele tem todo o poder sobre as pessoas e deseja que as todos o obedeçam e façam o que ele quer. Ele... ele é capaz de fazer muitas maldades para que suas ordens sejam obedecidas. Maldades terríveis.
Lore arregalou os olhos claros.
- Sim. E ele fez coisas horríveis com sua mãe, minha pequena... quando você estava na barriga de Layl, como já contei antes. – ele a torturou com tanta dor e medo... minha flor quebrou por dentro... Suponha a que Layl fora submetida, embora não conseguisse delinear exatamente o que ocorrera – Ela age assim com você porque teme que o Imperador tenha... feito algo com você também
Lore bateu os punhos no próprio colo, irada.
- Eu odeio o avô! Ele estragou mamãe! – parou um momento e ficou mais furiosa ainda – Ele me estragou também?
Qazir alisou os cabelos negros da filha, pensativo. Ela tinha mais raiva do que medo. Lembrou-se dos clássicos ensinamentos jedis, que o medo promovia a raiva. No entanto, ali em Lore não percebia essa relação. Era ira indignada, advinda de sua discórdia pelo mal provocado a quem amava e a ela mesma.
- Não, meu amor. Eu vi dentro da sua mente. Ele não te fez mal.
Mas você não é um jedi para saber de verdade, pensou a criança com certeza, muito embora não fizesse ideia exatamente do que era um jedi. Alguém muito poderoso, devia ser. E seu pai não o era... não era poderoso. Não era capaz de protegê-las. Sua mãe era, sentia. Entre o amor profundo para com o pai e a ciência de suas deficiências e o amor confuso em relação à mãe e a consciência que ela era muito forte até em sua loucura, a menina sentia-se perdida em conectar os paradoxos.
Observou o pai inspirar profundamente, os olhos cerrados, a expressão suave e dolorida.
- O que foi, papai?
- Está tudo bem. – olhou-a com carinho – Senti o perfume ... de sua mãe, só isso. Lírios. Lírios brancos. – lírios... lírios que enchiam seu coração de ternura.
Lore aspirou profundamente várias vezes, levantando a cabeça, procurando captar o odor que Qazir falara. Só cheirava o mofo do pequenino apartamento.
- Não sinto nada. – desconhecia o odor de um lírio, porém devia ser algo muito bom, disse mentalmente para si, para que seu pai ficasse tão bem.
Mayttar sorriu para a filha, passando a mão por sua enorme trança.
- Apenas quem está apaixonado por uma Andhera pode lhe sentir o perfume. Um dia haverá um homem que gostará tanto de seu perfume, Lore... Fico a imaginar qual será a flor que você exalará para ele.
Layl se encontrava no umbral da porta danificada. Deslizara-a com cuidado, escutando a conversa dos dois. Abria e fechava a mão esquerda ritmicamente, em um tique nervoso. Sua família. Até quando seria capaz de protegê-los do Imperador...? Eram sensíveis demais, puros demais...! Qazir era um caso perdido. O coração dele era bom demais, manso demais... perfeito para um jedi. Um jedi incompleto ali se achava. Não possuía tutano suficiente. Os jedis foram fracos e se deixaram enganar por seu pai. Jedis orgulhosos e displicentes mesmo com todo o poder que um dia possuíram! Os Jedis eram os grandes responsáveis pela noite que Palpatine impusera à Galáxia e à vida deles.
E Anakin Skywalker... Vader. O mais poderoso e débil! Idiota. Mil vezes idiota! Talvez o mais culpado de todos! Sim...! A Força era grande nele. Ele tinha tudo nas mãos, contudo se permitira iludir por seu pai... permitira-se enfraquecer por Padmé. E ela nem da família Andhera fora!
Lore... ela possuía uma chama. Existia chance para ela, a fortaleza para sobreviver a todo aquele horror do Imperador. A raiva nela era de uma natureza especial, não destrutiva. Combustível para ter força e poder suficientes para escapar... se não fosse contaminada pela mansidão e sensibilidade!
Sua mão direita segurava uma faca serrilhada.
A criança e o homem perceberam a presença da mulher e colocaram-se de prontidão face à luz da lâmina. Mayttar posicionou-se diante da filha, protegendo-a, encarando sua esposa firmemente.
- Solte a faca, Layl. – nas palavras um longínquo timbre do controle vocal dos jedis.
- Vou cortar seu cabelo, Lore. – disse, ignorando as palavras dele – Procuram um casal e uma menina. Seremos três homens agora. – passou a mãos em seus próprios cabelos já bem curtos e avaliou o semblante da filha – Você tem as feições já femininas desde agora... ande de cabeça baixa, então. Não deixem que vejam seus olhos.
- Não! Você não vai cortar meu cabelo! – gritou a criança, as lágrimas lhe riscando a face
Qazir se interpôs entre as duas, o alarme do perigo imediato já se esvaindo de seu rosto, um alívio nos gestos agora. Não queria as madeixas negras de sua filha podadas. Todavia, Layl portava uma faca e, em conflito, alguém inevitavelmente sairia ferido... e os cabelos seriam cortados de uma forma ou outra. Melhor diminuir os reveses.
- Seu cabelo crescerá, pequena. – falou ele, abaixando-se na altura da garota – Sua mãe tem razão em nos fazer passar por um trio masculino.
Lore encarou o pai num misto de raiva e decepção. Teria que enfrentar a mãe sozinha? Faria, se fosse necessário, mesmo com medo de Layl. Entretanto, a súplica no pedido do pai a conteve. Mesmo ressentida com ele, não havia como magoá-lo. Com a cara emburrada e molhada pelo choro, ofereceu-se à mãe, a ira nos soluços contidos na garganta.
Layl abaixou-se e pegou com força a longa trança, enfiando a faca nos fios no começo do penteado.
- Não quero lágrimas, está me entendendo? – disse a mulher rispidamente – Nunca mais quero ver lágrimas em seu rosto! Fraqueza elas são. Elas a entregam para o inimigo, põe uma vantagem deles sobre você. Nunca mais chore. Deve ser forte. Deve sobreviver. Deve fazer qualquer coisa para sobreviver, sem lamentar! – a lâmina transpassou por todo o cabelo e a trança negra solta agora era segura em sua mão – Seja forte!
A menina engoliu o choro, a revolta fazendo seus olhos azuis esverdeados cintilarem.
- Eu odeio você! – falou roucamente, enquanto passava as pequenas mãos no rosto para secar as lágrimas.
Layl franziu a testa por um minuto, sentindo a raiva da filha e magoando-se. Entretanto, rapidamente retornou à expressão dura e os olhos castanhos se estreitaram.
- Acha que me importo se me odeia? Odeie-me. Mas me odeie ficando viva! – voltou-se para Qazir – Arrume as coisas. Partiremos em breve.
Mayttar balançou a cabeça, triste.
- Para onde iremos?
Layl jogou a trança comprida da filha no pequeno incinerador perto do microdormitório e observou os cabelos serem queimados. Sem pistas deixadas para trás.
- Tatooine.
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Não havia uma gota de umidade no ar, a areia a entrar por todos os poros expostos e a irritar seus olhos. A luminosidade dos dois sóis refletia na areia e quase a cegava por completo. Muita gente – se se podia chamar aqueles seres de gente. Todas as espécies, altos, baixos, das mais diversas cores soterradas pela cremosidade arenosa. A sujeira e ganância, porém, os unia em único bloco de gênero.
O mundo era visto por Lore de baixo para cima, com raras exceções de seres anões. Todos pareciam gigantes para ela – e alguns o eram realmente. Tumulto no vai e vem daquelas criaturas pelas ruas, ou melhor, pelo chão de areia dura. Conchavos. Negociatas. Olhares estranhos. Um mundo desconhecido e perigoso.
E ela estava adorando Tatooine!
Haviam chegado em uma nave velha como clandestinos. O calor era insuportável e mais ainda naquelas roupas que lhe cobriam o diminuto corpo, inclusive com um capuz a esconder-lhe o rosto besuntado de graxa e com areia grudada para melhor disfarçar suas feições femininas, porém não se importava. Tudo era melhor do que ficar trancada em pequenos quartos. Qualquer coisa. E ela se via obrigada a aproveitar cada segundo de liberdade, saborear cada experiência, guardar na memória até o fedor ali reinante. Sentia-se sempre presa entre a compreensão e fraqueza do pai e a agressividade e fortaleza da mãe. Um mundo muito pequeno e ela ansiava por mais... e por fazer mais.
Muito barulho. Os pais se encontravam negociando com um ser estranho, flutuando com suas pequenas asas, como uma mosca azul e nariz que mais se assemelhava a uma tromba. Queriam um quarto. Queriam mais um abrigo. Mais uma prisão.
Ela torcia que a negociação demorasse por todo o dia, se fosse possível. Durasse para sempre.
Em frente, a uns cinquenta metros, existia uma construção acinzentada, de onde entravam e saíam muitos seres trôpegos, falando de forma embolada e caindo no chão, sendo pisados por outros tão quão reticentes no andar.
Entretanto, de repente, saiu um grupo de quatro indivíduos que chamou a atenção de Lore por caminharem corretamente e conversarem normalmente: uma enorme criatura peluda marrom, apenas usando um cinto branco e preto transpassando seu tórax; um homem da altura de seu pai, cabelos castanhos, blusa comprida clara, um colete e calças marrons, bem como as botas; um outro humano, um velho de barba e cabelos brancos se vestindo com um casaco diferente amarronzado, com ar digno; e um rapaz de túnica branca amarrada na cintura, cabelos compridos louros, o andar meio curvado e tímido, a cabeça baixa.
O rapaz louro. Ela nunca havia visto um... um humano tão bonito! Parecia a Lore que ele também se achava sob as ordens do velho, como ela em relação aos seus pais. Viveria ele também preso como ela...? O velho seria seu pai ou seu avô?
Virou-se e deparou-se com seus pais ainda conversando com aquela criatura voadora inacreditável, sua mãe e seu pai a vigiando de minuto a minuto com um virar de cabeça. Percebeu que existia um micro momento no qual ela poderia escapar. Não pôde conter o sorriso de satisfação e expectativa. Iria atrás daqueles desconhecidos, custe o que custasse. Provavelmente seu castigo, quando fosse pega por seus progenitores, seria terrível, porém não se importava. Tinha que ver o rapaz de perto, ouvir sua voz.
Cronometrou seu tempo longe das vistas de seus pais e arremeteu-se na rua o mais rápido que pôde, quase tropeçando nos incontáveis transeuntes, veículos planadores de todos os tamanhos, animais de carga, num zig-zag alucinante. Ao longe escutou os gritos de sua mãe e o chamamento de seu pai e acelerou ainda mais a corrida. Por sorte, surgiram dois enormes veículos e uma matilha de banthas , enormes seres que serviam de carga, tração e transporte na rua, acontecimento esse que bloqueou momentaneamente a passagem de qualquer um que quisesse seguir em frente face aos obstáculos e à discussão dos motoristas e dos condutores de banthas.
Lore parou por um instante e virou-se, vendo a confusão armada atrás de si e sorriu mais abertamente ainda. Retornou ao seu foco e disparou na direção daquele grupo – daquele rapaz de cabelos claros.
Eles se pararam por um momento na rua em virtude das discussões deixadas naquela confusão atrás e a criança prontamente procurou se ocultar atrás de um monte de caixotes com produtos envoltos em uma lona desbotada e poeirenta, perto o suficiente deles para ouvi-los e vê-los através de uma estreita fresta entre as caixas.
- Espero que vocês não tenham nada a ver com aquela confusão. – disse o homem de colete e calças marrons – Não estão me pegando o suficiente para encobri-los nisso também.
- O pagamento é mais do que o suficiente. – disse impetuosamente o jovem - Você é que gosta de chamar a atenção. O que fez na cantina...
O ser enorme e peludo grunhiu e encaminhou-se para o moço ameaçadoramente, sendo impedido pelo velho, que levantou as duas mãos à altura do peito, as palmas voltadas para fora, em sinal de reconciliação.
- Não queremos chamar a atenção. Tudo passou de um mal entendido. – sua voz era tranquila, porém firme, acabando por acalmar o grandalhão. Voltou-se para o rapaz, a testa levemente franzida – Luke, serene-se. Lembre-se do que conversamos antes.
Luke.
Lore mal se continha de excitação. Luke. O nome dele era Luke. Jamais esqueceria esse nome.
- Está tudo bem, Chewie. – o homem de colete bateu no braço do amigo peludo em atitude falsamente complacente – Acabaremos por cobrar uma taxa extra pela afronta desse garoto.
- O quê? – Luke ficou indignado – O preço do meu planador já é demais para a viagem. Você está nos extorquindo! E meu nome não é garoto.
- Talvez, digo talvez, parasse de chamá-lo de garoto se soubesse seu nome completo. – ironizou o piloto, levantando uma das sobrancelhas.
- Meu nome é Luke Skywalker e não admito... – parou de falar, como se houvesse se congelado ao sentir a mão do ancião em seu ombro, advertindo-o. Sentiu a reprimenda além do toque dos dedos do outro e baixou a cabeça arrependido por sua própria irritabilidade ao olhar a reprovação do mais velho.
Luke Skywalker. Skywalker. O sorriso da menina desfaleceu. Meneou a cabeça para o lado, encolhendo-se em si mesma, como se uma corda desafinada ressoasse em seu cérebro. Bateu na testa com a mão direita de leve e várias vezes, como se quisesse que um ruído dentro de sua mente parasse de ecoar.
- Como espera que eu lhe ensine se você não se controla diante de uma simples provocação? – murmurou o velho para Luke.
- Perdoe-me, Ben. – assentiu o jovem, constrangido.
- Capitão Solo – iniciou Ben, contemporizador, mas não subserviente – Não queremos chamar a atenção e permanecemos tempo demais aqui expostos. Iremos vender o planador para arrecadar o dinheiro para a viagem e nos encontraremos no espaçoporto para embarcarmos.
- Concordo. – esticou os lábios em um sorriso torto e charmoso – Mas não me esqueci da taxa extra que cobrarei pela impertinência do garoto. - fez referência com os olhos para Luke, instigando o jovem, que, dessa vez, nada respondeu – Devia aprender com os mais velhos, garoto, a ter classe, não é, Chewie?
Chewbacca grunhiu alto.
- Vamos, Luke. – apressou Ben – Ainda temos que buscar os dróides após a venda do seu planador.
Lore procurou concentrar-se em Luke, que acompanhou Ben ao planador flutuando ali perto. O barulho na sua cabeça havia se suavizado, quase que desaparecendo e ela podia pensar com mais clareza agora. O que faria? Seu impulso inicial era segui-los até onde pudesse... e não havia mais como. Já estavam se acomodando no veículo flutuante.
Se existisse possibilidade... partiria com eles? Fugiria de seus pais? Uma parte de si gritou que sim! Longe dos quartos-prisão, distante da fúria insana da mãe e da conivência do pai... Seria excitante iniciar uma nova vida cheia de aventuras, novos lugares, gente desconhecida... e ao lado de Luke. Não, não queria pensar no sobrenome dele... agora. Luke, apenas. Sim, Luke. Definitivamente gostara dele.
A outra metade de si, porém, já batera o martelo mesmo enquanto fantasiava uma nova existência: não abandonaria seus pais; amava-os verdadeiramente. Todavia era estranho amar a quem a acorrentava em uma eterna fuga, à vida de gaiola que ela odiava.
Duas sombras pairaram sobre ela, aplacando momentaneamente o calor insuportável dos sóis de Tatooine. A liberdade acabara. Seus pais a haviam encontrado. Suspirou, resignada.
- Lore Layl ... – rosnou Layl, furiosa – Espere só quando estivermos fora dos olhos desse povo. Como ousa nos colocar a todos em perigo?!
A menina se pôs em pé, desafiadora. O que sua mãe poderia fazer com ela? Já lhe cortara os longos cabelos. Bateria nela...? Seu pai não permitiria. No entanto, se até nisso ele fechasse os olhos, não tinha importância. Não existia dor suficiente que a fizesse se arrepender de seu ato. E mais... pensou consigo mesma. Esse fora apenas a primeira de muitas vezes. Em qualquer oportunidade, respiraria liberdade em pequenas escapulidas.
Qazir chegara para falar com a criança, todavia nem emitiu uma palavra. Endireitou o corpo, cerrou os olhos. Algo mudara no ar, uma sutileza, um tremular de energia, uma onda invisível que o atingiu naquele lugar de seu espírito conectado na Força. Existia uma luz na escuridão... uma centelha brilhante, uma chispa dourada pulsante no universo regado de pontos pequenos e pouco cintilantes do oceano das almas não despertas na Força, juntamente com duas estrelas enevoadas em tons róseos, que sabia serem sua mulher e filha. Uma centelha brilhante, poderosa, benéfica. A bondade e a virtude daquela alma consciente se faziam tão densas que eram quase palpáveis. Emocionou-se.
Um jedi.
Abriu os olhos, alarmado. Onde, onde? Olhou por todos os lados, procurando captar onde estava o jedi, de onde era emitida aquela irradiação e acabou por identificar um senhor de cabelos brancos, de barba também alva, a sotaina marrom, sentado em um planador dirigido por um rapaz, passando na sua frente e distanciando-se rapidamente.
Não. Não!
Uma nuvem de areia cobriu o veículo, desaparecendo de suas vistas.
Mayttar começou a correr desesperado por entre aquela nuvem, tossindo, não conseguindo enxergar nada. Começou a gritar “volte, volte!”, tendo pelo menos a consciência de não falar “mestre”. Não, não vá! Um jedi vivo! Um mestre! Um caminho para ele!
Um caminho que se desfez nas areias de Tatooine.
Não, não podia desistir tão fácil. Pegaria um veículo, sairia correndo atrás do jedi. Passou a mão na sua frente, procurando dissipar a areia que flutuava densa à sua frente quando sentiu uma mão agarrar seu antebraço em meio àquela névoa arenosa.
- Você está louco? – era Layl, zangada, segurando Lore com a outra mão, enquanto quase se engasgava com a areia – Está chamando atenção! Aquele ser detestável azul disse que há stormtroopers na cidade! Temos que sair daqui! – murmurou irritada consigo mesma - Como poderia imaginar que uma tropa imperial estaria nesse buraco esquecido da galáxia?
- Devem estar atrás do jedi. – falou, o coração partido, ainda tentando ver no ar granulado a sombra do planador. Tarde demais. Ele se fora.
- Jedi? – perguntou no meio de uma tosse.
A mulher se impacientou e arrastou pai e filha para fora da rua, para perto dos prédios, buscando um lugar onde não houvesse ninguém. Encontraram um canto, no fim de bloco de casas sujas, uma sombra, que dava em uma esquina. Tentaram se limpar da areia no rosto, que entrava por todos os poros, pela boca, pelos ouvidos e pelo nariz.
- Você falou jedi? – disse em voz baixa Layl, fazendo uma careta, sentindo grãos de areia na língua – Não existem mais jedis. Meu pai – a careta era agora para a lembrança maligna do Imperador – os caçou por todos os cantos.
- Não! – Mayttar se obrigou a se acalmar. Encontrava-se ainda alegre pela existência de pelo menos um jedi vivo e triste por ter perdido a oportunidade de falar com ele – Eu sei, tenho certeza. Eu o senti! – respirou fundo – Não tenho dúvidas... um jedi! Era um senhor de cabelos brancos que estava naquele planador com um rapaz. Passou pela nossa frente. – enterrou momentaneamente as mãos nos cabelos curtos e escuros, novamente entusiasmado – Vamos procurá-los. Acho que ainda há chance. Talvez o sinta novamente e encontre o rumo que tomaram. Posso aprender com ele. Posso ser seu padawan! Posso me tornar um jedi!
Lore abriu a boca, surpresa, sua mente infantil processando as informações. Se o velho chamado Ben era um jedi, Luke devia ser seu aprendiz! Luke se tornaria poderoso!
- Um jedi, aquele velho? – a mulher baixou seu capuz, uma chuva de grãos caindo em suas costas, a expressão incrédula – Mesmo que seja verdade, o que duvido, o Império realmente está atrás dele... e você quer que nos juntemos a um procurado desse naipe? Enlouqueceu? Quer nos colocar a todos em um pacote de presente para o Imperador? Nunca, Qazir, entendeu? Nunca!
- Não!
A criança arregalou os olhos. Nunca vira seu pai levantar a voz e enfrentar sua mãe. O grito de Mayttar fez vários habitantes e viajantes se virarem para o homem.
- Pare com isso – disse Layl Ghaya entre os dentes – Veja o que está fazendo!
- Desta vez, não! – firmou ele num tom mais baixo, procurando se controlar, – Faremos o que falei. – passou a mão pelo rosto, como a que retirar toda exaltação de si. - É a saída desta vida horrível que impusemos a nós e à nossa filha. Ficar perto de um jedi é o mais seguro. E quando eu me tornar também um, serei mais capaz de proteger você e Lore... – pegou as mãos dela entre as suas – Minha flor, pense...! Um jedi pode ajudá-la... Pode consertar o que seu pai fez com você. Pode parar de ter tanto medo. – puxou-a para si, encostando sua testa na dela – Quero você de volta... para mim, meu amor.
Layl sentiu a sua agitação interna diminuir, como um vendaval que ameniza por um segundo sob a súplica e a possibilidade lhe apresentadas. Voltar ao que era...? Como gostaria! Como gostaria de não ter sido violada em sua mente, em não ter conhecido o terror imposto por seu próprio pai, o horror entrando em seus nervos, em sua alma, em sua filha ainda um feto em formação...
Seu corpo começou a estremecer sob a égide das lembranças terríveis, a tormenta congelada momentaneamente explodindo furiosamente, o medo a dominá-la mesclada com a ira reagente, a atribulação mental misturando seus pensamentos, os músculos tensos para a fuga, para a fuga, para a fuga...
- Não!!! – gritou a mulher, já em surto, empurrando seu marido para longe e dando passos para trás, no meio do sol e calor – Não há chance, nenhuma chance de tudo ficar bem! – balançava a cabeça, desnorteada, a risada do Imperador escarnecendo de seu temor a ocupar todos os recantos de sua mente.
- Layl! Layl!
- Mamãe!
Pai e filha correram atrás de mulher, que por fim caíra de joelhos no meio da rua, tornando-se alvo fácil de atropelamento por um planador, animais de cargas e veículos flutuantes. Chegaram a ela, impondo sua presença para protegê-la no meio da areia que saltitava no ar e do calor calcicante.
Qazir se ajoelhou junto a Layl e envolveu-a fortemente num abraço.
- Calma. Calma. Entenda, amor... ele não pode mais lhe fazer mal. O Imperador está longe. Vamos sair daqui. Cuidarei de você.
Pegou-a no colo, as mãos dela envolvendo o pescoço dele. Procurou sua filha e encontrou-a a olhar fixamente para frente.
O som de blasters sendo acionados se fez ouvir.
Foram capturados.
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Os cinco stormtroopers apontavam suas armas para eles.
Mayttar fez sinal para Lore ficar grudada nele. A menina encostou na perna do pai, sem tirar os olhos das armas. Nunca vira uma blaster ou qualquer outra arma ser direcionada para ela em toda a sua vida, embora intuísse o mal que havia nela.
O vento aumentou naquela hora do dia, trazendo a areia quente entre os soldados imperiais e os três humanos. Uma multidão se aglomerou aos arredores, curiosa. Alguns riam, outros se encolhiam de medo e mais outrem só observavam, aguardando uma oportunidade de tirar proveito da situação.
Os soldados gritaram ordem de comando para a urbe se dispersar. Eram poucos integrantes do Império, porém impuseram o poder que representavam. Nenhum transeunte desejava problemas com o Império e a multidão foi se diluindo, cada ser para um canto, até que a rua ficou totalmente deserta.
Um dos soldados se adiantou, a blaster na mão engatilhada.
- Você chamou a mulher de Layl. – a voz saiu abafada e com tons robóticos. Sacudiu a arma na direção da humana, como em referência - Ela é a Layl Ghaya Ren?
Qazir não conseguia ler pensamentos e muito menos influenciá-los, muito embora possuísse a capacidade de captar as ondas de contentamento oriundas de todos os soldados imperiais, os sorrisos por debaixo dos capacetes brancos. Prender a filha do imperador foragida há mais de seis anos seria mais do que uma promoção e reconhecimento, quando havia sido apenas um terrível golpe de sorte.
- Não, senhor – o padawan simulou uma voz de respeito para com seu algoz – Layla. O nome dela é Layla. Ela tem problemas mentais e entrou em surto... eu e minha filha fomos buscá-la. Somos apenas viajantes.
- Documentos!!
- Estamos sem os documentos. Nós...
- Fui eu. A culpa toda é minha. Eu perdi os documentos! – avançou Lore dois passos em direção do soldado, encarando-o de baixo. Ela media um pouco mais de um metro de altura e olhava sem piscar para o gigante de um metro de oitenta. Seu coração batia tão violentamente que quase saía pela boca, mas ela se mantinha firme – Brinquei com os documentos e não sei onde deixei... Meus pais estão furiosos comigo.
Seu rosto ardia, vermelho. Não sabia mentir. E, mesmo assim, subitamente inspirada, prosseguiu na farsa.
- Minha mãe é doente. Por favor, soldado, precisamos cuidar dela. Deixe a gente ir embora.
O stormtropeer encarou a menina por um minuto. Era uma garota suja, talvez sete anos, o rosto todo manchado de graxa e areia, o cabeço curto e mal cortado revelado pelo capuz meio caído. Entretanto aqueles olhos... aqueles olhos eram os mais incríveis que ele já vira...! E não eram apenas os olhos que o encantavam... aquela voz infantil era macia, a postura dela... Balançou a cabeça, atordoado. Praguejou silenciosamente consigo mesmo. O que é isso?
Mayttar observava a filha atentamente. Sentiu seus pelos se eriçarem. O mesmo poder da mãe... ainda não em sua plenitude, claro; iniciando-se agora, revelando-se em uma dobra e sem nenhum domínio ou treinamento. E, mesmo tão ínfimo e recém-desperto, havia arranhado o soldado.
Mas não o suficiente.
Percebeu a rigidez de Layl em seu colo, o tremor assentando-se em uma tensão concreta. Sentiu a mudança de postura interna dela, como um animal que se prepara para caçar e para proteger sua prole.
Abaixando discretamente a cabeça, sussurrou no ouvido de Layl.
- Precisamos de você.
Um dos quatro soldados que se achavam recuados consultava o audiocomunicador em sua braçadeira branca.
- Senhor! – falou outro tom abafado e mecânico - Consultei a central sobre a procurada e foram repassadas as informações que Layl Ghaya Ren provavelmente esteja acompanhada por um homem no fim dos trinta anos e por uma criança. A capitã Syanne está se encaminhando para cá. Quer trazer o holopad pessoalmente e verificar in loco a identificação da foragida.
O soldado-líder do pelotão agarrou o braço da criança.
- Sua pequena mentirosa...! Sua mãe ensinou você a fingir? Quase me enganou. – falou alto para que todos ouvissem. E para Lore, sussurrou – O que estava fazendo comigo, seu monstrinho?
Uma sombra cobriu o soldado e ele se pôs ereto, ainda segurando a menina pelo braço e levou um choque, como que arrebatado. Os quatro imperiais atrás de si também se colocarem em posição de sentido, rígidos, tensos.
O soldado que detinha Lore agradeceu intimamente por se encontrar com o rosto oculto pela máscara padrão para que seus subordinados não vissem o espanto gravado em seu semblante. Era uma mulher magra, alta, os cabelos ruivos curtos, trinta e poucos anos. Suas roupas masculinizadas, velhas e cobertas de areia não conseguiam impedir que o imperial imaginasse suas curvas femininas.
Maldição!, pensou ele.
- Soldado. – disse Layl, o olhar intenso, o verde cintilando no castanho dos olhos – Não somos ninguém... ninguém. – a voz se modulava em ondas macias, quentes – Não perca seu tempo conosco.
O imperial apertou a blaster.
- Veremos. – a palavra abafada saiu com um tom mínimo de hesitação.
Qazir também se enrijecera, mas não pelo mesmos motivos que os outros homens. Estava atento, focado, observando todos os detalhes, analisando as possibilidades. Layl não usava o tom certo, o pano de fundo adequado... Deveria ter se feito de frágil, doente, envolvido o imperial em um cenário de vulnerabilidade feminina. Seria mais eficaz, haja visto que ele já fora tocado por Lore. Explorar o senso de superioridade masculina e seu poder de decisão, exaltar sua compaixão... Infelizmente sua mulher encontrava-se ainda alterada pelo recente surto e a raiva intensa de aquele militar ter maltratado sua filha. O caminho ali seguido, de imposição de sua feminilidade, de seu encanto talvez não atingisse o efeito desejado. Entretanto, agora começado, a trilha deveria ser seguida e Layl iria até o fim naquele viés.
- Imagine – a mulher deu mais um passo à frente, a cabeça meio de lado, a mão direita pousada suavemente próximo de seu próprio ombro esquerdo – que não seria bom nos entregarmos no lugar de quem estão procurando.
O soldado recuou um milímetro, disfarçando seu ato como se posicionasse melhor o peso do corpo.
- Logo teremos o holograma de Layl Ghaya Ren e saberemos se você é ou não ela. – a voz titubeou, nervosa.
- E quem é essa? – outro passo adiante, agora os braços caindo suavemente em torno de sua silhueta – Quem é essa tão procurada, que mobiliza uma tropa do Império neste planeta perdido?
- A filha do Imperador. – gaguejou o soldado – Uma traidora.
- A filha do Imperador? Uma princesa? – arqueou levemente as sobrancelhas e sorriu, sedutora – Você vê em mim uma princesa? Eu, uma ninguém...?
O soldado sentiu o sangue correr mais rápido em suas veias.
- Preciso... preciso conferir essa possibilidade.
- Não... – sussurrou ela – Não faça isso. Verão que você se enganou, pois obviamente não sou uma princesa. E não desejo – disse bem lentamente, realçando cada palavra, a voz moldada – que seja punido por ser tão meticuloso em seu trabalho.
O homem dentro do uniforme branco levantou a cabeça um pouco para cima, como se pensasse, como se visualizasse a cena de vergonha e a possível sanção que receberia por ter se desviado de sua missão principal em Tatooine, que era procurar um droide. Aquela mulher... aquela mulher não poderia ser a filha do Imperador fugida há anos... não. Não, que ideia! Como levantara essa hipótese?
Layl aguardava, seu semblante com um leve sorriso, enquanto por dentro toda a raiva borbulhava e a urgência de saírem dali a ameaçava perder o controle. Calma. Paciência. Ele estava quase cedendo... quase lá.
Contudo, não chegou a completar o pensamento. Uma onda elétrica e dolorosa percorreu todos os nervos de seu corpo e caiu desmaiada na areia.
Lore conseguiu se soltar do soldado, que afrouxara a mão durante a conversa com Layl.
- Mamãe! – chamou a criança, já agachada ao lado da mulher sem sentidos, pegando o rosto da mulher entre as mãos – Mamãe, acorde!
Os quatro soldados, como libertos de um congelamento, rapidamente se dirigiram para Qazir e o seguraram antes que ele tivesse a chance de qualquer movimento.
A Capitã Syanne guardou a pistola no coldre em seu cinto, alguma eletricidade ainda a piscar junto com a areia flutuante, a estática a piscar os elétrons naquele ar tão seco. Seu cabelo preso em um coque na nuca, coberto pelo quepe, mostrava várias madeixas brancas no cabelo castanho claro e as rugas da maturidade se realçaram diante da contrariedade expressa em seu rosto.
Sua comitiva – três mulheres mais jovens vestidas de uniformes azuis escuros – se mantinha às suas costas. A um sinal silencioso seu, uma das guardas pegou Lore e a afastou da mulher jogada no solo. Lore começou a se rebelar mas sentiu o olhar do pai e ficou quieta, permitindo-se ser presa pela moça uniformizada.
Empurrou o corpo de Layl com o pé envolto em botas, revirando a outra, para que o rosto desta se mostrasse. Ligou o holopad e um holograma de uma moça ruiva, cabelos longos, bem vestida, na casa do final dos vinte anos surgiu. Comparou o holograma com a mulher no chão e desligou rapidamente o mecanismo.
- É ela. – sua voz se arranhava com a secura do ar, mas a satisfação em seu tom era mais do que evidente. Seu rosto se fechou e voltou-se para o soldado-líder – Idiota! Não leu todo o relatório sobre essa fugitiva?
- Capitã – empertigou-se em posição de sentido. Suava debaixo da armadura branca, nervoso – Eu a interrogava.
- Não, imbecil! Estava sendo enfeitiçado por essa Bruxa Ren! Se não fosse tão incompetente, você e toda a sua tropa ridícula, saberia que o procedimento inicial ao encontrá-la era deixá-la inconsciente. – o desprezo escorregava em seu discurso - Sua imprudência e ineficácia serão devidamente anotadas em seu prontuário, soldado.
Ele engoliu em seco.
- Sim, Capitã.
A Capitã se virou para sua guarda pessoal.
- Levem-na e mantenham-na inconsciente até a levarmos para Lorde Vader. Mesmo essa bruxa não tendo poder sobre vocês, não quero nenhuma brecha de erro, de ela poder escapar. – para os soldados que seguravam Mayttar – Um de vocês, agora, carregue a filha do Imperador e acompanhe minha guarda. E cuidado! Ela deve ser entregue incólume. A menina deve ficar.
Suas ordens foram prontamente obedecidas. Lore agora era segura por um dos soldados de branco.
Qazir empalideceu enquanto via Layl sendo levada e encarou a filha. Fique quieta.
- Lorde Vader..? – perguntou o soldado-líder ainda mais agitado.
- Oh, sim... Ele se encontra em um destroier em uma missão. Adorará agregar mais um prêmio ao que já está com ele. – respondeu a Capitã com um sorriso cruel – Os prisioneiros devem ser conduzidos a Lorde Vader. – encarou a criança – Tão nova... ainda não tem seus encantos. Leve-a com esse – riu jocosamente ao olhar Qazir – com esse companheiro da Ren.
O soldado tremia por dentro. Não iria revelar que havia sido quase influenciado por uma menina. Já bastavam as punições que sofreria por sua inabilidade. Não desejava ser alvo de pilhéria de seus companheiros.
A Capitã Syanne espanou a insistente areia de seu uniforme impecável e enxugou o suor em seu rosto advindo daquele calor insuportável. Valera acompanhar a tropa nesse buraco da galáxia. Não encontrara o droide procurado, mas achara um troféu desejado há mais de seis anos, que a levaria para outros patamares de sua carreira militar.
Homens. Não passavam de animais babando por uma mulher cheia de feromônios.
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Pela primeira vez, Lore experimentava um verdadeiro medo.
O ambiente era amplo e escuro. Um ambiente de carga. Várias caixas empilhadas se encontravam espalhadas no recinto, a luz azul pálida piscava intermitentemente nos vários pequenos holofotes defeituosos. À sua direita, ao longe, um portal, de onde se enxergava pequenas naves estacionadas. Um espaçoporto dentro do destroier, de onde acabavam de sair.
Sua mãe agora se achava acordada. Uma mordaça a impedia de falar, porém seus olhos castanhos diziam tudo. Não chore. As mãos, algemadas à frente de seu abdômen, tremiam. Muita raiva ali... e temor. Seu pai também com as mãos presas, ao lado da mãe, vigiava alternadamente a ela e à sua mãe, muito amor naqueles olhos azuis... preocupação, receio e resignação digna.
A guarda feminina e a Capitã Syanne os guardavam a alguns passos atrás, o orgulho, ambição e expectativa contrastando com o medo que envolvia sua família.
O barulho do espaçoporto se perdia e mais se assemelhava com vozes murmurando em um coral, um fundo funesto de som, a anunciar a chegada de quem tanto esperavam. A temperatura parecia ter esfriado, o ar denso.
Passos.
Uma respiração grossa e ritmada.
Lore pôs suas mãos amarradas ao peito.
Das sombras surgiu um ser alto, imponente, as roupas parecendo serem do mesmo material da escuridão de onde imergiu. Sua armadura negra cintilava sombriamente, o rosto oculto atrás de uma máscara semelhante a uma caveira, o manto igualmente escuro a flutuar junto com seu caminhar.
Escoltado por dois stormtroopers, Darth Vader estacou e seus guardas, a um sinal de mão dele, recuaram alguns passos. A outro gesto para a Capitã Syanne, ela e a guarda feminina também se afastaram alguns metros.
Vader se aproximou dos três prisioneiros. Com um menear discreto de sua mão direita, as algemas que os seguravam se abriram por mágica, o som metálico das correntes caindo no chão ressoando naquele silêncio.
Layl empertigou-se. Com as mãos livres, retirou a mordaça e encarou com impertinência aquele ser escuro, embora sentisse o corpo estremecer ao vê-lo.
- Anakin Skylwalker. – disse desdenhosamente a filha do Imperador, enquanto alisava os pulsos doloridos.
Qazir se chegou à filha abraçando-a pelos ombros e Lore levou as mãos livres à boca, calando um grito de espanto. Skywalker. O mesmo sobrenome de Luke!
- Esse nome pertence a uma vida que não existe mais.
O tom grave, robótico, a respiração artificial constante deixara a menina petrificada.
- É claro que que Anakin não existe mais. – prosseguiu Layl, seca – Ele foi tolo o bastante para se deixar enganar por meu pai! E se transformou... nisso. – o desprezo era cuspido em cada palavra – Tentei avisá-lo e você nunca escutou.
- Não. – contrapôs Vader – Você desejava me seduzir. Mas nunca teve qualquer poder sobre mim, Layl.
- Foi ele quem me mandou conquistá-lo! Seu amado Imperador... meu pai só desejava subjulgá-lo. – um sorriso ácido rasgou o rosto dela – Padmé, porém, foi mais rápida, não?
Uma luz em um holofote perto estourou, as faíscas vermelhas e laranjas chovendo perto dos dois.
- Isso, Vader. – incitou a mulher – Exponha sua raiva. Mas nada encobrirá o quanto você foi fraco e acabou matando sua mulher e filho há dezenove anos!
Lore arregalou os olhos claros. Filho. Filho. Luke. Luke Skywalker era filho daquele ser, claro!! Luke parecia essa idade. Luke, padawan daquele jedi de barbas alvas. Luke seria poderoso, talvez até como aquele... Vader. Sabia... sentia! O filho de Vader, de Anakin Skywalker estava vivo e inexplicavelmente aquele ser poderoso não sabia... E rapidamente guardou sua descoberta dentro de si para proteger Luke, abafando o que sabia sob o medo que a fazia tremer.
Apertou-se ao corpo de seu pai com mais força.
O silêncio baixou seu manto após as palavras da princesa. Layl, então, sentiu uma sufocação na garganta, uma falta de ar, sua traqueia se fechando, o ar sumindo de seus pulmões, os pés saindo do chão, o corpo flutuando à altura de dois metros, ficando face a face com Vader.
Qazir e Lore olhavam estarrecidos Layl pairar no ar, as mãos à sua garganta, engasgando, seu rosto se tornando roxo, a mão de Vader esticada, como um maestro naquele solo mortal.
O medo se transmutou em raiva justa dentro da criança e toda sua postura se transformou, a coragem ignorando todos os possíveis perigos. Impulsionou-se a correr para aquele.. aquele monstro e salvar sua mãe, mas seu pai a segurou com força, enterrando as unhas em seus braços.
- Largue minha mãe! – berrou – Largue agora!
Darth Vader virou o rosto para a garota enquanto a mulher estava prestes a desmaiar enquanto pairava no ar. O ser sombrio baixou a mão e Layl caiu ruidosamente no solo.
Lore presenciou aquele homem dentro da armadura de trevas se aproximar. O medo ameaçou voltar a reinar, porém a menina fechou a expressão em raiva desafiadora, enquanto Vader a avaliava, interessado, por alguns segundos. Depois pousou rapidamente o olhar em Mayttar e deu-lhe as costas, voltando para perto de Layl.
- Um marido fraco, Layl, muito fraco. A Força só o rodeia de leve... – falou Vader – Não vale o esforço de levá-lo para o Lado Sombrio. Mas a filha... a filha seria uma aprendiz interessante.
- Não ouse! – conseguiu falar Gayal, no chão a se sentir fraca, a garganta ainda fechada.
- Infelizmente não poderei ousar. – respondeu Vader, uma satisfação sombria – O Imperador tem outros planos para ela. – a um sinal, tanto a guarda feminina quanto os stormtroopers rapidamente caminharam ao seu encontro - Levem a mulher e o homem para a nave Sombra e os conduzam para o Imperador em seu refúgio. Ele os espera ansiosamente. E não se esqueçam de manter a mulher inconsciente, amordaçada e amarrada até chegar ao seu destino. – virou-se par Layl e, com um torcer na mão, fez que ela perdesse a consciência.
Pai e filha se abraçaram mais ainda enquanto os guardas os separavam.
- Não, não! – gritava Lore
- Tudo ficará bem. – respondeu Qazir, a voz trêmula acusando o contrário – Tenha coragem, filha! Tenha coragem! Eu amo você.
Os guardas arrastavam Mayttar e carregavam Layl inconsciente para o angar. A imagem de seus pais foi se distanciando, sumindo e a menina pressentia que nunca mais os veria. Lore, segura uma guarda feminina, sentiu as lágrimas encherem seus olhos, o coração vazio, a vontade de gritar, mas a voz de sua mãe soava em sua mente: não chore.
- Agora você – falou Vader, apontando para a garota. Sentia-lhe a raiva, o potencial, a capacidade para as trilhas da Força. Descobriu-se tentado - Gostaria de lhe mostrar todo o poder do Lado Sombrio, torná-la minha aprendiz, mantê-la ao meu lado. – parou por um momento, como se considerasse realmente aquela possibilidade, pesando as alternativas. Por fim, continuou - Mas o Imperador lhe determinou outro destino. Assim o Imperador deseja e assim o será.
A guarda feminina a arrastou para outra nave e Lore ficou a olhar com raiva para aquele monstro negro, a dor pela perda inevitável dos pais e a escondida alegria de ter conseguido ocultar de todos a existência de Luke.
E, embora todo um oceano de lágrimas insistisse em bater em sua garganta e olhos, Lore se manteve firme. Não decepcionaria seu pai: teria coragem. Não trairia sua mãe: não choraria... nunca mais. E não entregaria o rapaz louro, propondo-se em até esquecer sua lembrança para mantê-lo a salvo.
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