Luke permanecia parado no fim do corredor entre as duas fileiras de camas no dormitório dos younglings e padawans. Olhava um a um, pensativo. Cada um deles possuía uma história única de como havia chegado até ali, em Paideia. A maioria eram órfãos de guerra, fosse pela morte de seus parentes, fosse pela aversão por parte da família à estranheza para com eles, em virtude de serem sensíveis à Força. Mesmo com a vitória da Rebelião e o conhecimento de um de seus principais articuladores e heróis de guerra ser um jedi, a maior parte da população da galáxia era corroída pelo medo e o repúdio aos sencientes àquele poder tão estranho e temido e via com maus olhos a pequena academia jedi e seus integrantes.
Herança de centenas de anos de convívio trincado da sociedade com os jedi. Legado esse acentuado do terror do Imperador através da mão de ferro de Vader.
Olhou para a porta no fim do recinto, a que conduzia a outro grande cômodo do qual saíra há pouco, onde os componentes do Corpo de Serviço descansavam. Pessoas abnegadas que ofereceram seus serviços humildemente para subsidiar a academia. Sem eles, muito difícil se tornaria a administração daquela pequena comunidade. E eles nada desejavam, a não ser servir a um bem maior com seus talentos, desde o mais simples ato até ao que requisitava maior complexidade. A roupa limpa, a comida feita, a limpeza, a atenção com os pequenos, a vigilância com os maiores, os cuidados médicos, o plantio e colheita da horta, a administração dos recursos. Cada ação realizada com abnegação e alegria.
Skywalker apreciava o potencial de cada um que ali vivia, suas qualidades, suas deficiências, sua força e fraqueza. Cada qual expressava-se de forma única, suas personalidades, alegrias e conflitos. Aprendera a amá-los como eram e desejava que florescessem em seu melhor. No entanto, não poderia mais acompanhá-los em seu desenvolvimento... por enquanto.
E assim o faria para protegê-los.
Era doloroso tanto quanto previra no momento que tomara a decisão. Suspirou. O apego. O apego leva ao sofrimento, as palavras de Yoda a flutuar em sua mente. E, em efeito domínó, passando pelo medo da perda, raiva e ódio, ao Lado Sombrio. Discordava, porém, de seu mestre nesse quesito, pois encarava a questão dos relacionamentos em todos os níveis como parte da vida, a qual não deveria ser responsabilizada pela queda de quem quer que fosse. O amor de seu pai à Padmé o direcionou para as trevas, mas também o amor por ele, Luke, trouxera Vader para a luz. A cultura do desapego do Templo Jedi promovera mestres e cavaleiros de extraordinária sabedoria e coragem, bem como levara tantos outros a um distanciamento danoso quanto ao próximo, resultando em orgulho e cegueira.
Percebera, desde então, que algumas regras rígidas antigas dos jedi oprimiam as naturezas de cada um de diferentes formas, não obtendo como produto o que se desejava realmente, ou seja, o desenvolvimento de cada ser. Todos deveriam ter a opção de seu caminho servindo à Força, fosse com relacionamentos mais próximos ou não. Cada opção carregava em si suas virtudes e seus perigos, cabendo ao ser que escolhera sua alternativa estar ciente dos percalços da estrada que abraçara. Não existia um rumo sem a sua devida bagagem.
Fixava agora seu olhar em Ben adormecido entre as mantas, a cama mais próxima da porta de saída. Certamente era com o menino seu maior desafio em questão de amor e apego, em tomar decisões e fazer escolhas. Ajeitou-lhe as cobertas, cobrindo seus braços infantis e quedou-se a observá-lo com ternura, preocupação e gravidade. O menino não fazia ideia de seu poder... e de seus perigos. Não revelara para ele toda a vastidão de sua natureza para não sobrecarrega-lo com mais responsabilidades que já detinha... e aterrorizá-lo com a identificação da voz como Snoke e seus planos de seus talentos.
Franziu a testa, balançando afirmativamente para si mesmo e saiu do dormitório, andando pela noite sossegada e silenciosa. Suas botas amassavam a relva úmida em direção à colina, embora lá não fosse o seu destino exato.
O ruído ritmado de seus passos acabou por formar um tipo de mantra, que o envolveu em mais pensamentos. Há aproximadamente dois meses-padrão tudo mudara... desde que Lore chegara em Paideia, desde que tomara conhecimento sobre os Cavaleiros de Ren, desde que descobrira Snoke. Desde o ataque àquela vila em um pequeno e discreto planeta, Nits’uhi, porém próximo ao sistema de Coruscant. Sim... ataque calculado. Um dróide convenientemente gravou as imagens dos Cavaleiros de Ren destroçando o vilarejo sem piedade e sem motivo aparente. No entanto, até mais do que o assalto cruel, o que mais imputou medo e pânico na Nova República se deveu ao aparecimento de um sabre de luz vermelha, o grupo encapuzado e mascarado em alusão à Vader e a todo o terror imposto durante duas décadas de Império.
O holograma revelou um assassinato em massa. Os Cavaleiros de Ren não pouparam a violência. Nada e ninguém escapou.
Luke estudara com atenção o holograma, juntamente com Lore e Leia. O sabre de luz parecia ser real, muito embora Skywalker percebesse uma sutil diferença na frequência dos feixes luminosos que compunham a lâmina luminosa. O acabamento da luz era polido e, em um olhar rápido, passaria por um sabre sith. Mas, não. Era diferente. E mais ainda estranho na mão do Cavaleiro de Ren. O homem mascarado mostrava uma maestria de espadachim e manejava o sabre com elegância e conhecimento. Entretanto, não existia a ligação íntima do homem com a arma; não havia a fluidez e interação que um jedi possuía conjuntamente com seu sabre, como se fossem um só. O sabre era a extensão de um jedi; o cristal do sabre e coração do jedi pulsando, unos.
Cavaleiros de Ren. A Força não fluía neles como nos jedi, como verificara o mesmo com os três cativos, a mais de um metro de distância, utilizando sua percepção. Como se possuíssem um escudo, sua mente não cruzava aquele campo de proteção. Suas ações também se ocultariam de sua percepção...? Parecia a ele que sim, como um manto, como se ficasse cego por onde eles passassem ou fizessem. E ironicamente, esses usuários incomuns da Força não possuíam a arte de juntar-se a Ela para desenvolver outros poderes, o que foi confirmado por Lore.
Uma encenação sangrenta para toda a galáxia. Funcionara, espalhando o pânico a quem já odiava os jedi e quaisquer outros que fossem sensíveis à Força... pânico esse devidamente estimulado pelas facções que odiavam os jedi no Senado e por grupos econômicos que os apoiavam. A ordem oriunda de uma vigilância jedi exporia as falcatruas, revelaria a opressão aos mais fracos, a exploração de vidas.
Não só o medo se espalhou como também outros grupos ocultos e fanáticos saíram de seu anonimato, promovendo violência, apoiando ou repudiando o ataque dos Cavaleiros de Ren: seguidores de Vader, um grupo enlouquecido e devotado à figura do antigo lorde sith, facção essa que repetiu o massacre em outras vilas; grupos anti-jedi, caçando e matando pretensos sensitivos à Força; grupos paramilitares pró-império, realizando propaganda do retorno do Império e estimulando a revolta de planetas; organizações anti-império, realizando conchavos e instigando uma posição mais extrema do Governo Central para abafar a onda de violência com mais violência, indicando que todos os grupos atuantes deveriam ser exterminados sem julgamento e forçando o fechamento de Paideia e a rendição de Skywalker à Nova República, para investigações sobre seu possível envolvimento nos acontecimentos.
Para os que mantinham a sanidade, a lucidez e a honestidade, claro se mostrava o absurdo de Luke Skywalker ser indicado como possível promotor das ações, nas mais diversas e transloucadas variações como a que o Skywalker erguer a militância jedi e controlar a Nova República; ou que ele tivesse se voltado para o Lado Sombrio e desejava tornar-se um novo Imperador. Essa última hipótese era a mais cotada, pois se espalhara que uma descendente de Palpatine se achava viva e em Paideia.
Luke meneou a cabeça. Essa informação da localização de Lore muito provavelmente partira dos três cativos, os quais haviam sido levados por Leia e Han para uma prisão na Orla Exterior. Mesmo com a precaução de deixá-los longe dos acontecimentos, em algum momento eles devem ter exposto a questão a alguém. Os imperialistas se agitavam em vários cantos da galáxia, incitando o ressurgimento do Império face à existência de Lore... e exigindo a morte de Luke por manter a neta de Palpatine em seu poder.
No Senado, Leia corria e desdobrava para defender seu irmão das injúrias e acalmar as facções e a população da galáxia, relembrando a eles a atuação heróica do jedi na luta contra a opressão imperial, sem muito sucesso. A própria posição dela no governo se tornava cada vez mais delicada e Han já pedira que eles fugissem, antes de algo pior acontecesse. Leia, porém, afirmara que, caso sumisse, seria encarado como uma confissão de culpabilidade dos atos levantados contra ela e contra seu irmão, que essa alternativa seria a derradeira, se as coisas atingissem um nível insuportável.
Em contrapartida, a princesa advertira que Luke não comparecesse em Coruscant para se defender, pois provavelmente existiram ataques mortais a ele. Era uma cilada o convite do Senado ao jedi para que explicasse pessoalmente a situação. Então foi remetida uma mensagem de Skywalker em holograma para o governo, expondo a verdade, o que mais prejudicou do que ajudou no conflito.
Face à situação crítica e a pressão encima de Leia e Han para dizerem a localização de Paideia, Skywalker mandou outra mensagem holográfica, afirmando que fecharia a academia jedi, com a finalidade de apaziguar um pouco os ânimos. Também pouco bem fez, embora tenha poupado um mal maior. E no dia seguinte, os integrantes de Paideia partiriam nas duas das quatro naves que se encontravam guardadas em Paideia.
Luke sempre teve um plano de contingência: as naves, os destinos dos aprendizes e do Corpo de Serviço. Ainda existiam amigos espalhados pelos sistemas e também seguidores da Força que se prontificaram, há anos, a acolherem os integrantes da academia caso houvesse uma emergência. Os membros de Paideia seriam espalhados pela galáxia em duplas, nenhuma tendo conhecimento do destino das demais parcerias. Um dia, quando houvesse possibilidade de reunir a todos e reiniciar o aprendizado, Luke, único detentor da informação, as agruparia mais uma vez.
Também já guardava em sua mente um outro planeta para se refugiar, na hipótese dos acontecimentos ainda piorarem mais. Desse novo lugar, nem Leia e Han teriam ciência ou contato.
Tudo eclodiu pelo aparecimento do sabre de luz vermelha. No entanto, todo o cenário já se encontrava armado meticulosamente, construído por anos por Snoke à espera de um catalisador, também ministrado por ele. Sim, sentia as mãos dele tecendo todas as tramas nas sombras, aproveitando-se das situações pré-existentes, articulando um planejamento gigantesco com paciência e cuidado. Esse plano se achava em andamento, apenas mais uma fase concluída...
E Ben era peça importante nesse sórdido esquema.
Esse exílio auto-imposto lhe doía ainda mais, pois acabara por repetir o que Yoda e Obi-Wan haviam feito anteriormente. Era o prenúncio de tempos sombrios. Afastou de imediato os pensamentos lúgubres. Tempos sombrios também se faziam véspera de tempos luminosos. E o segredo, como seus antigos mestres bem realizaram, era aproveitar esse interstício obscuro para preparar o retorno da luz, com serenidade, foco e determinação.
Agora se dedicaria exclusivamente a Ben, como único padawan. Talvez até esse período, nos mistérios dos caminhos da Força, fosse justamente para esse fim. Inspirou profundamente. Não se arrependia de ter edificado a academia jedi com vários aprendizes. Fora uma oportunidade possível à época... e havia chance de retorno, muito embora as linhas do futuro ficassem cada vez mais nebulosas. Contudo, ele não descartara reunir novamente Paideia. Ainda havia uma chance. E, enquanto houvesse um mínimo de possibilidade, ele não abriria mão dessa ideia.
Desacelerou seus passos. Estava a chegar ao seu destino. Ao mesmo tempo que a proximidade lhe trazia um contentamento, também se encontrava acoplado um peso e uma tristeza.
À sua esquerda, a colina a uns cento e cinquenta metros. À sua direita, ao longe, o penhasco, que se sobrepunha a um imenso lago, prateado pela luz das três luas. E lá, uma figura de preto a executar exercícios de luta com um longo bastão de duas pontas em uma dança harmoniosa.
Ela parou os movimentos, de frente para o penhasco e de costas para o jedi.
Luke podia sentir a alegria dela, à sua espera.
Como em todas as noites.
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Mal terminava suas tarefas, já noite adentro, Lore se dirigia ao penhasco com seu bastão elétrico de duas pontas e iniciava seu ritual solitário. As técnicas de luta a que se dedicava no momento era makashi e soresu. Não desenvolvera um preparo físico e na Força para praticar com segurança ataru e nem shien/djen so.
Luke a direcionara para o trabalho no corpo agrícola e também no médico, face à sua habilidade com a Força quanto aos vínculos. Ela descobriu um viés em seu poder, excelente em ajudar no crescimento das plantas na horta, bem como no domínio do aumento da eficiência e reprodução de células nos seres com consciência, abrangendo inclusive a cura. Não foram necessários muito tempo e nem tantos ensinamentos para que ela se visse à vontade em ambas habilidades e até superar alguns dos integrantes do Corpo de Serviço nesses setores.
Sentira uma certa decepção, admitia para si mesma. A necessidade de algo mais vigoroso, mais físico a atraía. Contudo, existia um impasse nessa questão. Para se aprofundar na luta com todo o aparato necessário, a escolha tendia para um treinamento jedi clássico e Lore não se enxergava com a brandura necessária para compreender e aceitar muitos preceitos jedi. Ela mesma reconhecia que, pelo menos por enquanto, não era seu caminho. Luke concordara com sua postura. No entanto, em um acordo entre os dois, ele não interferiria nas horas vagas dela, no que ela desejava fazer... e ela muito queria aprender a lutar, mesmo que apenas aprendesse apenas alguns golpes sem todo o envolvimento com a Força e muito menos com um sabre de luz.
Ela assistia às aulas das técnicas, absorvia tudo com o olhar e procurava adaptar os movimentos à posse do bastão, que media quase a sua altura e o peso bem maior do que um sabre de luz. Encontrou, por si mesma, um equilíbrio com a arma e as técnicas de luta e isso a fazia feliz. Lore ansiava por se defender sozinha, caso fosse preciso, tal como auxiliar os outros. A independência nela gritava e, apesar de se encontrar em um ambiente jedi, bem sabia que jamais deveria desprezar a autossuficiência em termos de segurança.
Iniciava seu dia duas horas antes de todos, acordando para se exercitar. O tempo na prisão e também no castelo foram perdidos quanto à sua condição física. Precisava educar seus músculos e adquirir resistência. Logo que amanhecia, integrava-se às atividades de Paideia, focando na horta e na enfermaria e no que fosse preciso auxílio. As horas corriam rápidas com tantas responsabilidades. Internamente, ansiava pela noite, onde poderia entreter-se na dança de luta e... estar com Luke.
Durante a manhã e a tarde, mal se encontravam, pois se dedicavam aos seus afazeres, esbarrando-se de vez em quando durante as atividades e vendo-se nas refeições. Quando o dia terminava, era a sua hora, ela e o bastão. Luke demorava para chegar, pois ainda existiam outros compromissos que o chamavam, o tempo exato para ela realizar seu treino pessoal. Por vezes, sua demora era tamanha que a madrugava se fazia presente, mas ele não deixava de se encontrar com Lore uma noite sequer.
Ele vinha sempre com um sorriso, a sua mansidão e carinho no olhar. Conversavam sobre vários assuntos, desde a administração de Paideia, a filosofia jedi, os eventos sombrios que ocorriam na galáxia, sobre Snoke e principalmente sobre Ben. Divergiam em vários aspectos a tudo, muito embora fosse com o menino onde mais havia embate entre os dois. Ela não cansava em insistir com Skywalker sobre falar toda a verdade para Ben e ele não desistia de sua postura em poupar o sobrinho para que ele se fortalecesse.
Lore descobriu uma veia teimosa em Luke, que muito lembrava a de Leia, embora fosse expressa de modo mais tranquilo, mesmo que firme. Também confirmou o que já pressentia diante do estudo de vida que fizera dele no palácio e da sua observação in loco: a reserva de Luke quanto a se expor para os outros, contrastando com a profunda preocupação e envolvimento com os problemas dos demais. Não era orgulho ou superioridade e sim uma noção de dever e responsabilidade tão grandes que ele se via só nessa função, já que era o último jedi. Não havia ninguém como ele para recorrer ou dividir os problemas que talvez só Luke pudesse realmente entender.
Em nível pessoal, ele também se mostrava muito reservado, provavelmente por consequência de não ter alguém para conversar sobre suas responsabilidades. Porém, com ela, uma vez por outra, ele divagava sobre sua vida em Tatooine, como se fosse um tempo tão distante e pertencente à outra pessoa; lembrava-se de Obi-Wan, de Yoda, da época de seu aprendizado; em outras oportunidades, mais raras, falava sobre seu pai e sua queda para o Lado Sombrio, talvez querendo que ela compreendesse e perdoasse Vader. Ela permanecia calada, deixando-o falar sobre si e do que o cercava intimamente, algo tão difícil para ele. Sentia-se feliz por ele poder desabafar e por confiar nela.
Em algumas ocasiões, eles nada ou quase nada discutiam. Luke estendia seu manto na relva e os dois permaneciam deitados, em silêncio, escutando a noite. Por vezes, acabavam por adormecer juntos por algumas horas ou até pela noite toda. Luke a trazia para perto de si e a envolvia com parte de seu manto, aquecendo-a do frio da madrugada; ela pousava a cabeça em peito dele, sentindo seu cheiro agora tão familiar. Não se tocavam de outra forma mais íntima ou voltavam a falar do beijo e do que acontecera na colina. Não que inexistisse a vontade, ela sabia. A mão humana dele por vezes tremia em seu braço quando a enlaçava naquelas ocasiões e sua respiração se mostrava mais marcada ao sentir-lhe o perfume dos cabelos negros. Todavia, Luke nada fazia a mais. Ele aguardava algo, pensava Lore. Fosse o que fosse, ela o esperaria.
Naquela noite, enquanto fazia seu treino com o bastão, sentiu novamente a presença de Luke ao longe. Sorriu e ficou estática, de costas a ele, esperando-o chegar mais uma vez.
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Ben esperou Luke sair do dormitório para poder se mexer e aguardou mais algum tempo, a fim de que o jedi se afastasse o suficiente para que pudesse sair sem ser visto. Havia se ocultado na Força para que seu tio não percebesse que ele se encontrava desperto.
Como toda a noite, há quase dois meses, o menino se dirigiu furtivamente para a casa de Skywalker, uma pequena construção afastada do dormitório, o ambiente frugal de um jedi, com poucos móveis e cores claras. Sabia exatamente o que procurava, onde era guardado e poderia entrar e sair da casa de seu tio rapidamente, embora não assim ele agia. Sentia-se culpado toda vez que invadia os aposentos de Luke e demorava algum tempo para se convencer mais uma vez que fazia o certo.
Seus atos eram errados... porém certos. Como o errado poderia ser certo...? Enganar seu tio para protegê-lo. Ou deveria agir corretamente, obedecendo-lhe as ordens e deixando o mestre desprotegido, como assim o fez, quando permaneceu no alto da colina enquanto Luke e Lore subiam o morro sozinhos?
As lembranças daquela noite lhe assolaram mais uma vez a mente.
Ben pressentira que algo muito ruim aconteceria se não estivesse ao lado de Skywalker naquele momento, naquela noite na colina. Contrariado, obedecera ao comando de seu mestre e aguardado no perto do abrigo, agoniado, andando de um lado para o outro sob a escuridão da céu nublado. Um frio se aproximava de sua alma, permeando todo o seu corpo e coração. Dirigiu-se para a trilha, a fim de descê-la e encontrar seu tio, mas a ordem lhe dada por seu mestre em permanecer fora do que acontecia o deteve. Não devia infringir uma ordem de seu mestre... um padawan jamais deveria ousar a desobedecer seu mestre! Buscou, então, alguma imagem ou pensamento de Luke, mas este havia se ocultado na Força e o menino não obteve êxito em quebrar o poder do jedi.
A muralha de proteção que o envolvia, a camada do fluxo da Força oriundo de Luke, formigava e pulsava. Ben já havia se acostumado a ela desde que seu tio a descera sobre ele, já há dois anos. Entretanto, naquele instante, gradativamente, aquela malha etérea que o resguardava se transformava, deixando sua natureza leve, radiante, mansa e forte em algo diferente, viscoso, escuro, frio. Antes ela irradiava para fora, um farol a iluminar as trevas ao seu redor e agora se voltava para o menino, contra ele, tornando seu corpo gelado, pressionando sua mente, sufocando-lhe a respiração como mãos a lhe esmagar o peito.
Tombou ao chão, estarrecido, arfante, sem forças. Arrastou as mãos na relva, procurando apoio para se levantar, mas lhe era impossível. O céu nublado e negro caía sobre Ben, o ar oleoso, pegajoso, as trevas se tornando físicas, palpáveis, grudentas, mortais. Envolvido naquele éter negro, viu-se preso, vulnerável e impotente. A escuridão o enlaçava com uma tonalidade ao fundo que lhe era familiar, conhecida... e amada.
Não... não! Não era possível... Seu tio não lhe faria mal conscientemente. Ele devia estar sofrendo também, igualmente imerso naquele escuro. Precisava sair dali, precisava ir ao encontro de seu mestre e salvá-lo daquilo. Mas como? Como? Não lhe fora ensinado nada, nenhuma técnica jedi mais avançada, nenhum conhecimento sobre... o que realmente era importante.
Ben parou de se debater. Seu mestre não lhe ensinara nada para aquilo... ou para algo similar tão sombrio. Ele deveria ter feito... também não passara nada desse teor para os outros padawans, porém Ben era seu sobrinho... um Skywalker e obviamente mais forte do que os outros aprendizes. E havia a ameaça daquela voz a rondá-lo por detrás do campo energético de proteção. Então por quê? Por que seu mestre não o havia preparado para algo daquele tipo?
Apertou os olhos, expulsando aquela desconfiança. Não pensaria naquilo, não podia. Não tinha o direito de duvidar de seu mestre.
Impôs sua vontade a arrumar uma maneira de se levantar e encontrar-se com seu tio para auxiliá-lo.
Nunca soube por quanto tempo lutou para afastar, sem sucesso, as trevas que ainda o protegiam daquela voz exterior e que, ao mesmo tempo, o mantinham em um cativeiro. No entanto, foi capaz de perceber as fissuras naquela teia negra antes tão brilhosa, as frestas que existiam antes na luz e ele não as vira por se misturarem com a luminosidade... frestas que permitiam uma brisa do externo, um ar estranho a entrar suavemente, quase imperceptível dentre aquele céu viscoso. Há tempo não sentia aquela vibração, aquela peculiaridade...
Então, de repente, a teia negra que o envolvia foi se clareando paulatinamente, a viscosidade se derretendo, a escuridão se dissolvendo e a luz conhecida, cintilante, quente, protetora, forte tomando-lhe o lugar. A pressão em sua mente se diluiu e o menino voltou a respirar normalmente, a vida correndo sem obstáculos dentro de si.
Começara a chover e Ben conseguira por fim se mover, sentando-se no chão, tomando fôlego, sua mente raciocinando. Seu tio estava vivo. Seu tio estava se recuperando, como ele também recobrava as forças. O que quer que acontecera, havia acabado. O fluxo da Força que emanava de seu tio era luminoso mais uma vez, alimentando a muralha de proteção apenas com luz.
Os acontecimentos depois foram rápidos, embora nem menos surpreendentes para Ben. Logo Lore aparecera no fim da trilha, trazendo seu mestre apoiado em seus ombros. Assustara-se com a devassidão que enxergara no semblante de seu tio, um homem se recuperando, mas trazendo consigo toda a batalha travada. Jamais presenciara seu mestre tão debilitado e isso o impressionou profundamente. Seu mestre... seu tio... tão... vulnerável.
Ele era apenas humano.
A imagem que fazia antes de Skywalker era de um ser poderoso, sábio, quase sobre-humano, intocável às trevas depois que se tornara um jedi. Como alguém tão uno com a Força fora atingido daquela forma? E, naquele momento, percebera que Luke era alguém passível de falhas... e de morrer por essas falhas. Ou algo pior. O menino empalidecera, imaginando perder seu tio.
E ele, Ben, era motivo dessas falhas. O mestre redirecionava parte do fluxo da Força para construir a malha etérea de proteção pois ele não sabia se defender e seu tio se expunha ao perigo, tornando-se mais fraco.
Por que seu mestre não o ensinava a se defender sozinho?
Essa pergunta novamente. Afastou-a para longe, impaciente.
Os dias seguintes àquela noite trouxeram ainda mais questões. Os Cavaleiros de Ren. Seu pai não permitira que ele visse o holograma por completo, tirando-o de perto das imagens mas não a tempo de deixar de escutar os gritos dos inocentes morrendo. Outros ataques de grupos diversos, tão horríveis quanto aquele. Seu tio pressionado a fechar Paideia. Sua mãe defendendo o jedi no senado. Seu pai cruzando a galáxia atrás de uma kaminoana. A presença de Lore no dia a dia e suas conversas com ele, a única, além de Luke, a conviver intimamente com ele, Ben. Ela era franca nas repostas às questões que fazia a ela. Ela era forte; admirava-a. A independência dela o inspirava.
E ela fazia seu tio feliz.
Ben percebera em pequenos detalhes, na disposição do mestre e em seu olhar discreto para ela, no pequeno sorriso que dirigia à moça. Descobriu que os dois se encontravam todas as noites e os observava conversando, escondido, algumas vezes. Quando chegava perto do penhasco mais cedo, assistia Lore a se exercitar sozinha com o bastão nos estilos de luta de sabre. Ninguém a ensinava, ninguém a controlava realmente. Ela aprendia tudo sozinha.
Ela aprendia sozinha.
E isso lhe deu a ideia.
Os holocrons.
Luke falara deles em suas aulas: eram caixas que continham informações sobre a história jedi, as técnicas e treinos, a filosofia, profecias, as guerras jedi-sith, as lendas dos primeiros usuários conscientes da Força. Receptáculos que o mestre colhera em suas viagens antes de inaugurar Paideia, lacrados por seus criadores através da manipulação da Força.
Remoeu-se durante bastante tempo antes de se decidir a fazer o errado para alcançar o certo. Seu tio precisava de ajuda; ele precisava de todo o seu poder nessa situação tão delicada que Paideia se encontrava; e ele necessitava ser mais uma vez pleno para não falhar e expor-se ao perigo que passara naquela noite, na colina. O mestre requereria um padawan que o auxiliasse, um outro Skywalker que teria poder igual para enfrentar a ameaça dos Cavaleiros de Ren.
Ele precisava também ser protegido.
Ele precisava saber que seu sobrinho se protegeria sozinho daquela voz, que era capaz.
Por que seu tio não o ensinava? Por quê?
Balançou vigorosamente a cabeça, não querendo ouvir novamente aquela indagação.
Todas as noites, Ben, ocultando-se na Força, vigiava Skywalker e aguardava que ele se encaminhasse ao penhasco. Quando acreditava estar seguro, corria para a casa isolada de seu mestre. Não fora difícil encontrar os holocrons dentro dos guardados do jedi, pois aquelas caixas emanavam a Força, pulsando, como se o chamassem. O problema não era encontrar os holocrons e sim abri-los. Aquelas caixas obedeciam a jedi e não a padawans, muito menos crianças. Eles se revelariam para Ben?
Qual não foi sua surpresa, na primeira vez, com aqueles receptáculos... Ao colocar um na palma de sua mão, aquele cubo pôs-se a flutuar diante dele, uma luz anil a brilhar no ambiente escuro, desmembrando-se em segmentos triangulares dançantes, fixando um centro quadrado, de onde surgiu um pequeno holograma, a figura de um jedi humano. Aquela imagem fitou o menino, sem emoção como um autômato e inclinou-se, referenciando um Ben estarrecido. O holograma o reconheceu como um Skywalker, interagindo com o menino e pondo-se à sua disposição para as informações que desejasse.
Ali estavam os ensinamentos que tanto o pequeno Solo desejava aprender e que seu mestre se eximia de lhe ministrar, sendo que alguns ele mesmo já os sentia, mas sem grande manejo: a atração e repulsão da Força, o controle da mente em outros seres – o qual poderia implicar na invasão em mentes mais resistentes -, a meditação da batalha, o curato salva (autocura), a arte do pequeno ( que principalmente implicava na cura de outros), o doppleganger (projeção de uma réplica de si mesmo), a hibernação jedi, a combustão. Existiam também outras técnicas mais sombrias: a insanidade da Força, visão mortal, relâmpago da força, como o agarrão da Força, sendo que este ele já o fizera, sufocando Key...
Apertou os olhos, querendo esquecer. Não. Aquilo, não.
Também conheceu a história jedi e sith e de alguns membros de ambas facções, em especial de seu avô, Anakin Skywalker. Percebeu que os dados haviam sido atualizados apenas até a época das Guerras Clônicas. Visualizou os dados de Anakin, sua trajetória, sua evolução excepcional e as críticas de seu mestre Obi-Wan Kenobi quanto à sua impaciência e arrogância. Entretanto, pôde captar também os poderes extraordinários que seu avô possuía e quão pouco explorados e estimulados pelo mestre dele.
Como acontecia com ele também.
Essa ideia veio carregada de um indício de indignação, que Ben logo abafou.
A história de Anakin era fascinante e triste. Desde sua infância e seu nascimento – como ele podia não ter um pai? – sua vida como escravo mas já com a Força a borbulhar dentro dele, escapando em ações involuntárias e até naturais, até seus feitos heroicos nas Guerras Clônicas. Ousado. Irreverente. Corajoso. Altruísta.
Como Anakin Skywalker fora seduzido pelo Lado Sombrio?
Não tinha ideia de quanto tempo dispunha a cada noite, pois seu tio poderia retornar a qualquer instante, ficando atento à energia tão conhecida de seu mestre, como uma identidade única da Força. Organizara-se para estudar o que mais lhe interessava. Porém, entre as técnicas que encontrou, algo o atraiu de forma estranha: briseadh an anam, a quebra da alma. Era horripilante... para um fim tão drástico. Fechou os punhos, um arrepio passando por sua espinha. Sentia-se estranho frente a essa técnica, como se ela já estivesse – ou estaria - dentro dele de alguma forma, um presságio, uma sensação de fatalidade.
Virou o rosto para aquelas informações, um gosto amargo na boca.
Concentrara-se no que era o foco maior: a construção do mundo interno, uma fermenta que facilitava as aplicações das demais técnicas. A melhor maneira de conduzir a Força, de dar-lhe a utilidade e funcionalidade que desejava a cada momento era a capacidade de imaginar, concretamente, a energia em formas compreensíveis. Poder-se-ia desenvolver as habilidades sem a edificação desse universo interno? Sim. A maioria dos jedi, conforme lhe passara os dados dos holocrons, assim conduzia; porém, com o mundo interno, essa realidade mental, a eficácia e aprofundamento nos poderes adquiriram um víes mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais amplo. Os poderes transcendiam na compreensão.
Uma sombra passou pelo semblante do menino: aquela voz teria um rosto.
Respirou fundo. A muralha de proteção levantada por seu tio lhe seria mais entendível. Pretendia compreendê-la a tal ponto que se tornaria capaz de levantar sua própria malha de proteção, liberando seu mestre desse encargo e ele, finalmente, ter todo o seu poder em plenitude mais uma vez.
Deixaria de ser um peso para seu tio. Deixaria de ser uma preocupação. Deixaria de ser... um problema... para todos. E tornar-se-ia um jedi para estar ao lado de seu mestre.
Quanto mais estudava as várias técnicas, percebia que tinha capacidade e habilidade para elas, inclusive para a construção do mundo interno. Por que, então, seu mestre não lhe ensinava tudo aquilo? Por quê? Por quê? Uma raiva nascia dentro dele, uma raiva indignada toldada de mágoa por permanecer na ignorância. E logo a culpa esfriava seu ânimo, pois amava seu tio e sabia que o mestre o protegia.
Confuso. Muito confuso. Amor, mágoa, raiva, indignação.
Abafava todo esse pandemônio de perguntas, de sentimentos, de dúvidas, de desconfianças. Sua motivação inicial era tornar-se um jedi para auxiliar seu mestre... e proteger seu tio.
Preparara-se com afinco para construir seu mundo interno. Não era fácil e até arriscado fazê-lo sem supervisão, mas não se intimidou. Seguira todos os passos antecessores da aplicação da edificação com cuidado e esmero.
O melhor local para se concentrar e ampliar seu potencial era no topo da colina. E para lá iria hoje.
Naquela noite, sua vida tomaria um novo rumo.
O que Ben não tinha conhecimento é que seria um caminho sem retorno.
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