Camas, Sevilla. Dezembro 2017
O dia parecia ter amanhecido mais cedo que o normal, talvez pelo fato de Julia tão pouco ter conseguido dormir a noite. A ideia de Sophie estar sonhando com o pai, a deixava amedrontada e ao mesmo tempo, coagida a se sentir culpada. Uma culpa que aceitara carregar desde aquela fatídica noite em Madri.
Não eram precisos mais que alguns minutos de conversa para que qualquer um percebesse que Julia fora a mais machucada da história. Além de jurar guardar segredo por anos, ainda teve a terrível sensação de estar solitária em uma batalha impossível. Era assim que a menina se sentia quando o turbilhão de problemas e provações a impedia de prosseguir em frente.
Mas toda aquela insegurança, medo e desânimo se foram. Como uma chuva passageira de verão, assustadora, mas passageira. Naquele 23 de junho, quando pôde finalmente segurar as mãos, tão pequenas, daquela que por meses ouviu seus desabafos e choros. Sophie era tão pequena, quase como um grão. Chorava como se estivesse vivendo um martírio e Julia chorava junto, pois sabia que teria que tirar do além, as forças que não tivera há meses.
Mas não foi preciso meses, nem semanas, para que aquele sentimento materno desabrochasse de seu íntimo. Julia não parecia mais aquela jovem de 22 anos, que por vezes pensou em desistir dos problemas e não enfrentá-los. Seus olhos esbanjavam orgulho toda vez que tinha aquele pequeno ser em seu braço.
Sabia o quanto seria difícil encarar tudo a partir daquele dia, principalmente pelo fato de estar cursando Medicina, o seu tão aclamado sonho. Mas jurava que daria conta, nem que para isso necessitasse estudar pelas madrugadas. De fato, não fora tão diferente, mesmo com ajuda dos pais: Olga cuidava da pequena pelas manhãs e tardes, enquanto Júlio, o avô coruja se encarregava de levar a bebê no Campus para que pudesse ser amamentada, Julia não se aguentava, sempre dava suas escapadas para saber como a filha estava.
Seu zelo e cuidado, hoje, não era diferente. Poderiam passar os anos e Julia ainda manteria aquela velha preocupação quanto a vida da filha. Foram muitas noites mal dormidas, assim como essa. Quando Sophie se machucava; ou se adoentava. Quando Julia precisasse viajar por conta do estágio, plantões ou congressos. Sempre haveria algo que a tirasse o sono.
Mas o fato da filha ter notado a ausência do pai, ao ponto de acabar por sonhar com ele, a tirou completamente o chão, um sentimento totalmente diferente dos que já viera sentir. Talvez por nunca ter tido uma conversa franca com a filha, já que nunca houve necessidade de lhe explicar a ausência da figura paterna.
Sophie parecia não se preocupar com o fato de não ter a quem chamar de pai, mesmo quando havia apresentações escolares. Estas, a mãe sempre estava presente e todos no colégio sabiam se tratar de um caso delicado, a ponto de nunca pressionarem ou deixarem a pequena constrangida. Sophie sabia que tinha a mãe, o tio e os avós e isso lhe parecia suficiente. E de fato era.
Julia se quer compreendia de onde havia surgido a ideia em sua cabeça, sendo que em família, nunca tocavam nesse assunto tão delicado para ela. Mas o que talvez a destruísse ainda mais, era saber que a culpa, somente ela carregava. A cruz era pesada e o caminho para o calvário só pertencia a um, a ela.
Mas era Natal, a época que eles mais adoravam. E Julia estava disposta a tentar esquecer essas velhas lembranças que estavam ressurgindo e se concentrar em preparar a melhor ceia que já tiveram em anos. Haveria como em todos os anos, o reencontro dos amigos no dia 23 e a ceia em família no dia 24 e a menina estava disposta em melhorar seus ânimos.
__ Caiu da cama foi? __ Julia depositou um beijo no topo da cabeça do irmão, que sentado a cadeira, aguardava a cafeteira indicar que o café estava pronto.
__ Clássicos. __ Concluiu, vendo a luz da cafeteira ser apagada.
__Claro, quem mais despertaria Alberto Di Santto tão cedo se não fosse o Real Madrid? __ Falou irônica, bocejando em seguida.
__ Você também era uma ótima torcedora, Ju. Não sei por que você está falando isso. __ Beto colocava o café na caneca, enquanto observava a irmã se incomodar com o comentário.
Beto sabia que qualquer lembrança daquela época incomodava a irmã. Mas nada que não fosse meramente verídico. Julia acompanhava a todos os jogos de Sergio Ramos, até aqueles que por mais supérfluos, ela estava em frente a TV assistindo. Foram poucas vezes que esteve no próprio Estádio, Santiago Bernabéu. Apenas duas para ser mais preciso, a primeira acompanhada de quase toda a família do jogador e a segunda em seu 19° aniversário.
__ Passado. __ Falou tão baixo, como se estivesse soando para si mesma, mas o irmão pôde ouvir e gargalhar alto.
(...)
Julia estava decidida a terminar mais uma de suas pesquisas. Dessa vez era algo que poderia lhe gerar ótimos fundos, o que a instigava ainda mais a realiza-la. Mas estava tão enganada de que haveria, mesmo que remota, a possibilidade de se concentrar nos estudos. Havia apenas uma mesa e essa se encontrava entre a cozinha e a sala de estar. O que se tornava um empecilho, levando em conta de que seu irmão estava vidrado na TV e Sophie ao seu lado, implorando para ver desenho.
Beto literalmente estava irritado, seu time estava avacalhando como em algumas vezes. Era um clássico, um jogo feito ainda mais para acirrar as disputas e rivalidades e, não seria fácil ver sua equipe perder. Julia observou a feição irritada do irmão pela centésima vez, mas foi quando bufou e pronunciou um: la concha de tu madre, Ramos, que seus olhos foram de imediato a tela da televisão. Há anos a menina não o via jogar. Mentiria se dissesse que não o viu em algumas fotos em todos esses anos, mas não era algo que cogitava com frequência.
Julia desviou o olhar imediatamente quando a câmera focou em sua feição. Ramos estava irritado e ela bem sabia das vezes que ele se sentia assim em campo, algo não iria acabar bem.
Madrid, Espanha. Dezembro de 2008
Estava estupefato diante de mais uma derrota, dessa vez para nosso concorrente de Madri, o Atlético. Fora mais uma partida na qual vi minha equipe ser superada em um tórrido 3x1 e um grande campeonato escorregar por nossas mãos. Me sentia culpado por não poder me dar 100%, a ponto de carregar minha equipe, mas não havia um jeito de fazer tudo sozinho.
Estava a ponto de explodir em campo e de fato fora o que eu fiz, só me dei conta da gravidade do ato, quando vi o camisa 9 a sangrar pelo campo. Recebi o cartão vermelho direto e sem mais conversas, fui mandado para o vestiário por Pellegrini. Ele me irritava todas as vezes que me cobrava algo mais, mesmo sabendo que me doava por inteiro pela equipe.
Aquela expulsão cairia como uma luva para a imprensa que, esperava como um predador para caçar sua presa. E, de fato, eu seria a presa da vez. Teria mais uma vez meu nome manchado e minha atuação esquecida. Se não fosse meu episódio, certamente as manchetes seriam: “Merengues veem o maior rival, Barcelona, despencar na liderança”, mas agora todas elas estariam direcionadas a mim e ao meu mau comportamento.
Eu queria socar qualquer coisa que me viesse pela frente. Agradeci aos céus quando percebi que estava sozinho naquele local, não havia ninguém para me olhar nos olhos e apontar os meus erros, que não bastasse os olhares tortos de meus companheiros de equipe. Não lhes tirava a razão, a minha expulsão acirrou ainda mais os ares da disputa, mas diferente deles, nunca soube lidar com o bombardeio de emoções e sentimentos, principalmente quando estes, envolviam raiva e incapacidade.
Vi meu celular vibrar em minha bolsa, estaria prestes a joga-lo pelas paredes. Maldita hora para alguém me ligar. Mas era ela. Julia e eu sabia o quanto precisava ouvir a sua voz.
“Quer conversar?” Fora a primeira coisa que dissera.
“Como sabe que eu estaria apto a conversar?” Perguntei.
“O vi caminhar para o vestiário, aguardei os 15 segundos de ira, até que você socasse algo e resolvi ligar para saber como você está.” Falou tão calma como sempre.
Sua voz era tão serena.
“Pelo visto você viu o meu fim.” Conclui bufando derrotado.
“Não interprete essa partida como se fosse o fim da linha, Sergi.” Agora fora a própria que havia bufado, talvez também estivesse decepcionada.
“Não estou levando, só estou encarando a realidade. Estou prestes a chutar o balde e eu só queria você aqui.” Poderia imaginar a cena do revirar de olhos de Julia ao ouvir minhas lamentações.
“Você é o melhor e só os melhores chegam até onde você chegou.” Falou, talvez pelo fato de não ter muito o que dizer diante da derrota.
Era claro que eu havia falhado. O Real havia falhado e a culpa era inteiramente nossa.
“Os melhores não caem, Jane.” Falei, dando por vencido de que havia falhado.
“Eles se reerguem, Tarzan.” Conclui me chamando pelo apelido, já que eu também havia a chamado assim.
“Não se se estarei disposto a me reerguer depois de ouvir as críticas.” E eu realmente não estavas disposto.
“Só eu e a sua família sabemos o quanto você batalhou e batalha para estar a nível alto. Não deixe que ninguém te julgue sem se quer reconhecer o seu esforço. Não vai e nem pode ser apenas algumas críticas dessa imprensa corrupta que ditará o seu futuro. Você tem o direito de estar decepcionado com o seu desempenho, mas o seu dever é superá-lo no próximo jogo. Então erga a cabeça e se orgulhe de ser o Sergio Ramos, a Joia de Pizjuán e o orgulho de Camas. E pegue logo esse voo, porque estamos com saudade.”
“Eu te amo, cariño. Obrigada por tudo.” Eu, literalmente, não tinha palavras pra descrever o quanto ela era importante para mim.
“Também te amo, campeón.”
Camas, Sevilla. Dezembro 2017
Julia se recordava tão bem das vezes que Sergio falhava em campo. Quantas vezes o viu bufar irritado depois de uma falha em campo. E por mais que tentasse afastar tantas lembranças, sabia que estas nunca deixariam de existir. Julia era a principal mediadora de todos os conflitos internos do capitão. Era aquela tirava o tapete, mas sabia a hora certa de pô-lo novamente.
Sempre disposta a abrir o coração e dizer tudo o que havia pensado há tempos. As palavras, por mais que duras, soavam sinceras e confortavam quem as precisasse ouvir. Sergio por tantas noites a ligava irritado, esperando as palavras duras da namorada, mas o que ouvia eram conselhos. Aquela verdadeira forma de recuperar a autoestima. Era por essas e outras vezes que sempre recorria ao bom telefone e ouvir a voz da amada, quando algo não lhe caía bem, ou quando não a tinha a seu lado.
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