Capítulo 08: A escolha
O resquício do vapor paira no ar, nublando a visão. O vestiário ficou vazio e eu fui o último sobrando, com a toalha em cima de meus cabelos escuros, já vestido com minhas roupas, guardando meu uniforme suado dentro da mochila.
Onde estava Abel?
Eu queria falar com ele sobre o ataque que sonhei na parte Oeste, saber se ele queria me acompanhar até a cena do crime, fazer umas perguntas… Não sei, investigar. Ou quem sabe, usar a desculpa de investigar só para ficar um pouco mais com ele e fingir que eu não tinha medo de ir sozinho para casa.
O último chuveiro aberto fecha. Escuto o barulho da porta do box abrindo e Daxton sai do corredor dos boxes, passando para o seu armário, do outro lado do vestiário. Meu coração dá um salto quando o vejo, mas ele passa por mim sem dizer nada, apenas de toalha na cintura e a água escorrendo dos cabelos para o corpo musculoso.
Vejo uma marca em suas costas, grande o suficiente para eu saber que provavelmente foram os lobos naquele jogo de dominação.
-- Isso é… - O próprio som da minha voz corta o silêncio do vestiário, eu preciso respirar um pouco, com a sensação de que um grande sino bateu contra minha cabeça e me deixou tonto, sibilando. -- Isso é uma ferida nova?
-- Hm, então reparou? - Daxton olha para mim por cima do ombro, os olhos sérios, as sobrancelhas avermelhadas calmas e um sorriso curvo para cima. Meu coração dá um salto com aquela pergunta, pois parece que ele está insinuando algo. -- Eu já te disse, é uma questão da Matilha.
-- Por que você deixa eles fazerem isso com você? - Pergunto.
-- Por que você deixa eles fazerem isso com você? - Daxton revida.
Abaixo a cabeça encarando meus pés, por entre as bordas da toalha branca em cima da minha cabeça. Eu não tenho uma resposta, acredito.
-- Pelo menos, de nós dois, você tem a chance de mudar essa qualificação. - Coloco as mãos para frente, abaixo mais a cabeça e deixo a toalha escorregar.
-- Acho que sim. - Daxton vira-se para o armário abrindo a porta.
Coloco a toalha úmida dentro da mochila e puxo pela alça, apoiando no ombro. Fecho a porta do armário, tranco e me sento no banco para calçar as meias e sapatos, coloco primeiro as meias, depois, o Converse e amarro em um laço simples.
-- É interessante. - Daxton está na minha frente agora e sou obrigado a erguer a cabeça para olhar, os óculos escorregam para a ponta do nariz e eu tenho uma visão (quase) plena de seu corpo musculoso e cheio de cicatrizes. Reparto os lábios. -- Você não quer viver em uma sociedade como essa, mas também, não quer fazer nada para mudá-la.
-- Eu não posso mudar.
-- A conformação é contagiosa… - Daxton solta um suspiro e coça a orelha com uma das mãos, balançando os cabelos úmidos que respingam água em mim.
-- Ah, obrigado. - Puxo minha mochila ea bolsa-carteiro, passando ambas as alças para o ombro e fico em pé. -- Eu quase não ouvi ninguém dizer que sou um completo fracasso. - Ironizo.
-- Não, espere. - Ele bloqueia a minha passagem dando um passo para o lado. Ajeito os óculos e cruzo os braços, inspirando fundo. -- Devo ter me expressado mal. - Daxton ergue as mãos para frente. -- Eu só… Bem, eu sou muito conformado eu mesmo, entende? Fiquei pensando no que conversamos ontem, sobre ter que aceitar o lugar que é nosso e não sei se concordo com isso. Quero dizer… Será que está tudo bem para você que eu te acompanhe até sua casa hoje?
-- Vo-Você quer me levar para casa?
-- Nossa, quando você fala assim, parece até que estou acompanhando uma garota depois de um encontro. - Daxton ergue as sobrancelhas e abre os olhos. Droga, pior que eu disse com esse tom mesmo. Mordo a boca. -- Por causa dos gêmeos.
-- Ah. Bem, eles me seguiram ontem, mas depois que gritei com eles foram embora. - Dou de ombros como se não fosse nada. -- Mas é que, bem, eu não estou indo para casa.
-- Não? Tudo bem, eu te acompanho para onde você for e depois te deixo em casa. Além do mais, depois do que o professor fez hoje, uma carona não vai matar você, pode até ajudar. Onde vamos?
-- Eu… Estou indo para o local em que houve o assassinato hoje cedo. Aquela mulher, na parte oeste.
-- É por causa dos seus pais? - Daxton pergunta. Eu abro a boca para responder, mas ele se adianta novamente erguendo as mãos. -- Você disse que foi um ataque de lobo e agora teve mais um, eu juntei os pontos.
-- Sim, é por causa de meus pais. - É tão estranho confessar isso para alguém, mas acho que é mais fácil dizer para um estranho do que para quem te conhece. -- Eu tive um pesadelo noite passada e quando vi a notícia, bem, foi com o que sonhei. Não sei qual o motivo de ter sonhado com um ataque, mas foi tão real e eu senti tão real, que foi como se eu estivesse na cena, vendo o lobo fazer tudo aquilo, eu só quero me certificar de que não significa nada, entende?
-- Bem, más notícias para você, Sevan. Com certeza, significa algo. - Daxton fica sério. Ele coloca as mãos na cintura e depois, coça a barba, pensando. -- Você foi marcado pelo lobo que te atacou.
-- Sim, eu fui. Não é segredo...
-- Não é? E ninguém falou disso com você? - Daxton parece surpreso.
-- Por que alguém falaria comigo?
-- Não. Nada… - Ele disfarça, desviando os olhos de mim.
Percebo que ele está escondendo alguma coisa. Que todos estão escondendo alguma coisa. Sinto uma palpitação estranha no meu coração, como se ele ficasse mais pesado e cheio de sangue de repente.
-- Você sabe de algo, Daxton? Ande, me diga! - Exijo.
Daxton dá um passo para trás e eu tento segurá-lo. Ele é rápido, mas alcanço a toalha, puxo para impedí-lo e Daxton gira, fazendo com que a toalha fique na minha mão. Ele fica parado, inteiramente nu na minha frente, com cara de espanto.
Sinto minhas bochechas pegarem fogo, mas não encaro o momento como uma distração.
-- Diga logo! - Grito.
-- Uau, um homem todo nu na sua frente e tudo o que você pensa é nesse logo que te atacou.
-- Cale a boca! - Atiro a toalha na cara de Daxton. -- Não é como se eu nunca tivesse visto.
Daxton dá risada se divertindo e tira a toalha do rosto, com um sorriso. Ele nem se importa em se vestir e joga a toalha para o banco.
-- Muito bem. Eu te digo o que é.
-- Ai, será que dá para você se cobrir. - Tampo o rosto com as mãos, fazendo uma concha por causa dos óculos.
-- Você é como um garota. - Ele debocha e se afasta de mim. -- Ser marcado por um lobo alfa cria laços com o lobo que marcou você. - Daxton explica. Eu escuto apenas o barulho do cinto, acredito que ele esteja colocando as calças. -- É assim que funciona a Matilha, você está ligado a ele de alguma forma…
-- Como sabe que o lobo que me atacou era um alfa?
-- Apenas alfas podem marcar alguém. - Daxton explica.
-- Então… Eu ter esse sonho, é mesmo algo relacionado com o que houve com meus pais?
-- Provavelmente o lobo que te marcou seja o mesmo lobo que atacou essa mulher, você está ligado a ele e tem essas visões quando está inconsciente, mas… Ei! - Escuto passos dele se aproximando. -- Você não pensa em investigar isso e encontrar o lobo, não é? Pode ser muito perigoso! - Daxton alerta. -- E também, ninguém garante que seja o mesmo lobo, quer dizer, você é um corvo, corvos tem visões do futuro e você é um…
-- Mau-Presságio. - Tiro as mãos dos óculos liberando a visão e exalo ar pela boca após afirmar. Daxton está na minha frente apenas de calça jeans. -- É. Tem razão. Uma característica de ser um Mau-Presságio é a capacidade de poder prever a morte das pessoas, mas essa é a primeira vez que me acontece. Por que eu vi a morte dela, de todo mundo? Eu nem a conheço. Deve ter ligação com o lobo. E se for o mesmo lobo que atacou meus pais?
-- E se não for? - Daxton me encara firme, dentro dos meus olhos.
-- Eu apenas preciso saber… Olha, você não precisa se envolver, isso não é problema seu. - Tento novamente passar por Daxton, mas ele bloqueia novamente, dessa vez, com o braço. Um longo, forte e cheio de músculos braço. -- É sério, Daxton.
-- Muito sério, Sevan. - Ele fala em uma voz vibrante e firme que imediatamente me arrepia. Dessa distância, quase consigo sentir o cheiro de sabonete de sua barba. -- Eu te dou uma carona, não precisa ser tão orgulhoso, você nem está em condições disso.
-- Obrigado por me lembrar. - Respondo. Ele estreita os olhos azuis revoltado. Inspiro e exalo ar, vencido. -- Tá, tudo bem. É melhor que esperar o ônibus de qualquer forma.
-- Para um manco, você é tão arrogante. - Daxton tira o braço da minha frente, sorrindo vitorioso.
-- E para um ômega você é tão… tão… - Eu nem sei o que vou dizer, só queria retrucar, mas agora que não tenho palavras fica até ridículo. -- Tão…
-- Dominante? - Ele sorri malicioso.
-- Eu ia dizer outra coisa, mas dominante serve. - Digo. Aquele sorriso continua no rosto dele, mas agora parece ser de diversão. -- Vou esperar você terminar de se trocar lá fora.
-- Certo. - Ele confirma e me deixa finalmente passar.
Atravesso para o lado de fora enquanto ele vai até o armário terminar de se vestir e quando saio pela porta, dou de cara com Abel, segurando a alça de sua mochila, com o ombro encostado na parede e a cabeça baixa.
-- Abel? O que você está fazendo aqui? - Eu arrumo a mochila no ombro e me aproximo dele, acertando os óculos no rosto.
-- Estava te esperando. - Ele dá um sorriso mínimo e olha para trás de mim. -- Demorou tanto, aconteceu alguma coisa?
-- Não, é que…
-- Ótimo, então vamos? - Abel se desencosta da parede, pronto para começar a andar.
-- Você não precisava ter esperado.
-- Tá brincando? Tenho certeza que você está morrendo de medo de ir para casa sozinho, achando que um lobo vai pular em cima de você a qualquer momento. - Divertindo-se, ele coloca o indicador na minha testa.
-- É verdade, mas…
-- Viu? Você é igual uma criança! - Ele ri e dá um empurrãozinho na minha cabeça, brincando. Abel coloca a mão na cintura. -- Mas fique tranquilo, acharam um coiote nos arredores da vila e acreditam que ele foi responsável pelo assassinato.
-- Um coiote?
-- É, um animal, coiote.
-- Não, mas... E o sonho?
-- Você só está impressionado. - Abel balança a cabeça, chacoalhando os cabelos dourados e sorrindo, ele segura no meu ombro. -- Não foi nada… Vamos embora.
-- Nada? - Dou uma rangida de dentes. -- Quando você ia me dizer sobre a ligação com o lobo alfa?
-- Quem te disse isso? - Abel abre bem os olhos, espantado.
-- Não importa, o que importa é que você escondeu isso de mim! - Eu sinto como se um buraco nascesse dentro de mim.
-- Não seja ridículo. - Abel me puxa.
-- Me solta! - Eu tento me soltar dele, dando um passo na direção contrária, para trás.
-- Sevan? - A voz de Daxton soa atrás de mim. Abel ergue a cabeça, encarando-o e Daxton se aproxima de nós, segurando sua mochila marrom de tecido. -- Tudo bem? Esse cara está te incomodando?
-- Não! Está tudo bem… - Eu giro.
-- Se está tudo bem… Vamos? - Daxton passa por nós, tomando a frente.
-- O quê? - Abel se retesa, estreitando os olhos azuis irritado.
-- Minha moto está no estacionamento. - Daxton já colocou a camiseta e a jaqueta de couro, fechando o zíper por completo, mas quando vê que não me movi, ele para, olhando para mim. -- O que está fazendo parado aí, Sevan, vamos?
Eu dou um passo na direção dele.
-- Não precisa se preocupar, não. Eu vou levar Sevan para casa. - Abel segura no meu braço, me impedindo, como se tivesse me disputando. -- Certo, Sevan? - Ele me olha sério.
Mordo a boca, em silêncio. É bem simples aqui. Posso ir para casa com Abel e fingir que nada disso aconteceu, que eu não sonhei nada importante e que foi um coiote que atacou aquela moça… Ou eu posso seguir a pista de que eu estou de alguma forma conectado com aquele lobo alfa que atacou a minha família, destruiu a minha vida e que está de volta a cidade fazendo mais vítimas.
-- Eu sinto muito. - Afasto-me de Abel e vou para o lado de Daxton.
Daxton dá um sorriso leve e me guia em direção à sua moto que está parada ali na frente. Ele se senta na moto, coloca o capacete na cabeça e me estende o capacete que vi sua irmã usando. Eu coloco o capacete, sento na garupa da moto colocando a mochila e a bolsa para trás do corpo, enquanto que Daxton segura sua mochila para frente e dá partida na moto, arrancando.
A última visão que tenho de meu melhor amigo, Abel está parado no mesmo local que eu o abandonei, nos observando com as sobrancelhas contraídas em incompreensão.
(Continua)
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