P.o.v. Anamika
Kelsey e Dhiren estavam dormindo de mãos dadas a minha frente. Admirava muito o amor dos dois, mas tive uma imensa vontade de vomitar. Eu não era muito para relacionamentos.
Meu parceiro de viagem foi Anik, e eu insisti para que ele ficasse do lado da janela. Eu ainda não estava pronta para dar esse passo.
Atrás de mim, estavam Kishan e Yesubai. Eu ainda não entendia como uma pessoa tão simpática e amiga como Yesubai poderia gostar de um garoto mimado e infantil como Kishan. Sinceramente, eu já estava farta dele. Nos conhecêramos há pouco tempo e já tínhamos discutido umas quatro ou cinco vezes. E eu simplesmente não fizera nada para que isso começasse. Não sei de onde veio tanta implicância, já que eu os ajudei muito. Birra, talvez. Por Kelsey, eu tentaria não brigar com ele, mas seria praticamente impossível.
Tive algumas vertigens durante o voo. Uma garota da selva iria demorar muito tempo para se adaptar ao mundo moderno, mas, digamos que comer hambúrguer salvou o meu dia. Apesar de quase morrer durante a decolagem, o voo estava sendo bastante normal em si.
Já estava no meio da madrugada e ainda teriam muitas horas de viagem. Eu já tinha dormido, mas acordara e não estava conseguindo cair no sono de novo. Liguei a televisão individual em frente ao meu banco, tentando mexer do jeito que Yesubai tinha me ensinado mais cedo. Pelo jeito, as "aulas" não surtiram efeito algum, pois eu não consegui nem sair da página principal e comecei a ficar nervosa, dando um soco na televisão e atirando os fones ao meu lado. Fiquei constrangida, pensando que poderia ter acordado alguém. Olhei para o lado e Anik estava dormindo, e não ouvi nenhuma movimentação atrás de mim, portanto, o meu pensamento era equivocado.
Bufei de frustração e tédio, então soltei o cinto de segurança e me levantei, andando lentamente até os fundos do avião, em busca do banheiro. Iria ver se havia algum item higiênico com o qual eu poderia passar o tempo. Passei as mãos pelas calças apertadas. Tive de trocar, pois senti frio durante o voo e Kelsey havia me emprestado uma. A blusa também estava justa me fazendo sentir extremamente desconfortável.
Por um momento, questionei se eu era muito grande ou se Kelsey e Yesubai eram minúsculas.
Sim, elas eram extremamente miúdas.
Cheguei até a porta do banheiro e comecei a tentar abrir. Fiz toda a força do mundo, e olha que eu tinha.
-Ah, droga.
Ouvi passos do outro lado e uma voz falou, em um tom baixo:
-Está trancada - Kishan parou ao meu lado, com um sorriso debochado. Se aproximou, apertou um botão e o rodou, destrancando a porta e a abrindo. Olhei em seu olhos, franzindo o cenho. Esperei ele caminhar de volta para o seu lugar de origem e entrei no banheiro.
Como eu não estava com a mínima vontade de usar o banheiro, apenas peguei o sabonete e saí.
Antes que eu pudesse ir embora dos fundos do avião, um braço me prendeu contra a parede, de um jeito que eu só conseguiria sair dali enfiando um soco bem na barriga dessa pessoa. Mas, infelizmente, aquele não era um momento para brigas.
Levantei os olhos lentamente até encontrar os de Kishan. Meu coração ferveu, eu estava louca de vontade de acertar um chute em seu rosto ali mesmo. Ele respirou fundo e abriu a boca para falar alguma coisa. Já comecei a formular uma frase-resposta em minha mente, pronta para a próxima baboseira que sairia daquela boca. Levantei uma sobrancelha e dei um sorriso de canto, me antecipando para a discussão, mas o que el disse fez a minha expressão se transformar.
-Anamika, eu... queria pedir... desculpas... - aquilo parecia sair da garganta dele queimando, como se doesse até a alma.
Fiquei perplexa.
-O que?
-Eu... - ele fechou os olhos. - Não quero ter que ficar brigando com você, eu vou tentar não discutir mais com você. Sabe, Kelsey e Yesubai estão me implorando isso. Então, vou tentar. Por elas. Você... poderia tentar isso também?
Parei e pensei um pouco. Eu não acreditava. Estava quase dando uma resposta quando me lembrei das várias conversas que tive com Kelsey, quando ela me aconselhou a deixar para lá, que faria um bem imenso a todos nós.
-Ahm, pode ser.
Kishan parecia envergonhado.
-Mas isso não quer dizer que eu vá gostar de você, que você vai gostar de mim ou que seremos amigos, distribuiremos flores no campo de mãos dadas ou algo assim - pediu. - Vou ficar na minha e espero que você não me provoque.
Franzi o cenho.
-Você também não me provoque. É só não aparecer na minha frente.
Ele soltou um pequeno riso.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, daquele jeito, presa por Kishan, fiquei entediada, esperando que ele falasse outra coisa para eu poder ir embora.
-Ahm, Kishan, agora eu peço, não como sua amiga, que você se afaste um pouco. Sabe, preciso voltar ao meu banco.
Kishan arregalou os olhos bruscamente e pareceu acordar de um sonho. Um pouco envergonhado, o que não era de seu feitio, pelo menos não o feitio que eu conhecia, ele retirou o braço e abaixou a cabeça. Eu parti, ainda achando que eu estava sonhando. Sentei novamente em meu assento, coloquei o fone de ouvido, liguei na única coisa que eu sabia mexer - a música, e finalmente caí no sono.
P.o.v. Kishan
Seria muito mais fácil se os olhos dela não brilhassem tanto.
Ah, santa Durga! O que raios está acontecendo comigo?
Também seria mais fácil se ela não tivesse um corpo tão... extravagante.
Caramba, cale a boca!
Ou se não desse tanta vontade de enterrar os dedos em seu cabelo.
Não, não, não!
Anamika, nestes últimos dias, estava me deixando louco. A cada momento em que eu olhava para ela, sentia vontade de fuzilá-la. De onde vinha tanta raiva? Eu não fazia a mínima ideia. Desde o dia em que saímos da base de Lokesh, senti repulsão por aquele seu jeito convencido e aquele olhar de quem achava que poderia me matar e vencer qualquer batalha.
Ela pareceu sentir a mesma coisa. Quando nos olhávamos, canhões explodiam e atiravam fogo. Talvez fosse a impulsividade presente em nós dois. Talvez fosse a falta de alguém para brigar.
Mas ela roubou o meu pão.
Entrou no meu quarto.
Atirou a bola de vôlei na minha cara.
Entre outras coisas.
De patada em patada, virou rotina brigar com Anamika. Chegava a ser divertido ver as suas faces coradas de raiva e sentir essa raiva também. Não demoraria muito para que ela me acertasse um soco ou algo parecido. Seria um ótimo motivo para eu atirá-la de um carro em movimento.
Mas tanto Kelsey quanto Yesubai me pediam muito para fazer as pazes e viver em harmonia. Elas não aguentavam mais ter que nos separar e também não aguentavam mais segurar o riso durante as nossas brigas, então tomei a doce e simpática iniciativa de pedir desculpas para Anamika.
O problema deve ter sido a luz fraca do avião, que fez os seus olhos reluzirem feito duas esmeraldas. Ou pode ter sido aquela roupa, que acentuou as suas curvas exuberantes ainda mais.
Eu já sabia que Anamika era linda. Não pude deixar de remetê-la a uma deusa indiana desde quando a vi pela primeira vez, e inclusive na piscina. Mas, além de o meu santo não bater nem um pouco com o de Anamika, eu tinha Yesubai, a garota que eu amava tanto e que eu viajei um oceano para encontrar. Ela era amável e compreensiva, simpática, amiga, companheira. Era tão linda quanto Anamika. Era incrível. A minha menina.
Sim, Yesubai me lembrava facilmente uma menina. Com estatura pequena, olhos grandes e aquele cabelo enorme, ela ficava um pouco infantil, mas nada que lhe tirasse toda a beleza e tudo o que me fizera apaixonar. Já Anamika, tinha todos os traços físicos de uma mulher adulta. A batalha a fortalecera tanto na mente, quanto em seu corpo, e, eu tinha certeza de que se apostássemos uma luta, eu perderia. Só de olhar, dava para ver que existia muita força naqueles braços e pernas.
Olhar? Não é para olhar!, me repreendi mentalmente. Em meu cérebro uma batalha estava cravada: Eu tentava de toda forma continuar detestando Anamika, o que era fácil. Mas meus olhos sempre me guiavam para o seu cabelo cheio e sedoso, para seus olhos verdes e para o seu belo corpo. Ela era atrativa e tinha uma energia pulsante. Uma energia tão pulsante que me fazia querer fuzilá-la.
Ela estava me tirando do sério!
Eu não sabia ainda o porquê de eu estar nos fundos do avião. Acho que não tinha conseguido dormir, e decidi andar por aí. Resolvi voltar para o meu assento e esperar com toda a paciência do mundo para que o voo pousasse logo. Yesubai estava dormindo, do lado da janela. Olhei em seus olhos fechados e todos os pensamentos em Anamika se dissolveram e se tornaram carinho pela garota que eu lutara para ter de volta. Me sentei, sentindo o cheiro suave do seu cabelo e então adormeci, sem pensar em mais nada além dela.
P.o.v. Kelsey
Acordei com uma luz branca batendo no meu rosto.
Abri os olhos e vi, pela janela, o sol raiando em um sol sem nuvens. Olhei para fora e soltei um suspiro ao perceber que já estávamos nos Estados Unidos. Me virei para o lado e Ren ainda dormia. Essa seria a primeira vez em muito tempo que eu o acordava.
-Ren - cutuquei-o. - Estamos chegando.
Ele abriu os olhos à medida que abria um sorriso.
-Bom dia, sundari.
-Bom dia.
Ele sorriu e me deu um beijo rápido, logo depois acariciando o meu cabelo e sorrindo.
-Estou com fome - admiti. - Vamos comer alguma coisa.
Ren assentiu e se levantou, me ajudando a fazer o mesmo. Sorri em agradecimento, segurando em sua mão e logo indo para a mesa do café da manhã.
O sr. Kadam e Anamika já estavam lá, comendo. Nos sentamos e logo depois chegaram Kishan e Yesubai. Nos cumprimentamos com "bom dias" felizes e desfrutamos de um café da manhã totalmente americano.
Quase desmaiei ao ver as grossas fatias de bacon frito e os ovos mexidos. De agora em diante eu poderia fazer isto sempre, mas era um deleite sentir o gosto daquilo.
-Quanto tempo falta para pousarmos? - perguntou Anamika.
-Vinte minutos - Kishan respondeu.
-Obrigada.
Arregalei os olhos e olhei para Yesubai, totalmente intrigada por eles não estarem se dando coices.
Yesubai se virou para nós e disse, em silêncio, um "caramba!"
Ren olhou incrédulo para Kishan, que deu de ombros.
Ficamos todos quietos apenas olhando para Kishan e Anamika, que não estavam brigando. Era como se víssemos um cachorro quente gigante.
-Ahm, sr. Kadam, como vai ser? - perguntei, tentando sair daquele clima de interrogação que pairou sobre nós. - Digo, vamos chegar e ir direto para casa, arrumar as coisas, ou...
-Vocês não precisarão arrumar as coisas, já está tudo pronto. Vamos chegar, vocês irão conhecer as suas casas e o condomínio. Depois estão livres para fazer o que quiserem. Srta. Kelsey, pode ir ver seus pais adotivos se quiser.
-Ah, claro. Obrigada.
Anamika parou de comer e perguntou, em tom baixo:
-Anik, quando vamos ver Sunil?
-Ah, quase me esqueci. Marquei de irmos na casa dele amanhã. Entrei em contato com Sunil e semana que vem ele estará vindo morar no condomínio.
-Sério? - perguntou ela, feliz.
-Sim. Será muito melhor para vocês se puderem se ver todos os dias. São muitos anos sem contato.
Ela sorriu genuinamente, com todos os dentes à mostra.
-Obrigada!
Depois de terminarmos de comer, peguei um livro e fiquei lendo durante o resto da curta viagem. Pousamos calmamente, sem nenhum imprevisto, no aeroporto do Oregon. Peguei duas das minhas malas e Ren me ajudou com o resto. Ao sair do avião, inspirei fundo aquele ar frio e vento gelado.
-Ah, o Oregon - Ren suspirou.
-É tão diferente! - Anamika estava boquiaberta. - É muito frio!
Retirei minha jaqueta larga de uma das bolsas e lhe entreguei. Ela, que estava de roupas curtas, logo se envolveu com a peça e se protegeu do frio. Kishan e Yesubai observavam o ambiente com um sorriso no rosto. Eu, com tantas saudades da minha terra natal, suspirei e abri um sorriso.
-Vamos? - chamou o sr. Kadam, indicando uma van grande em que caberiam todos nós e as minhas malas.
Entramos todos no veículo. Quando ele começou a andar, sorri e suspirei, percebendo o tamanho da falta que eu estava sentindo do Oregon.
Anamika estava na janela, observando a cidade com curiosidade. Fiz planos para hoje mesmo levá-la em algum shoping para comprar roupas. Quem sabe ajudá-la a se encaixar novamente no mundo moderno.
Passamos pela empresa Rajaram e chegamos na frente de um condomínio grande com casas gigantes.
-Uau! - exclamei. - É lindo!
-E você vai morar aí - disse Ren em meu ouvido.
Me virei com um salto e olhei em seus olhos, a típica expressão interrogativa e surpresa.
-Você sabe que não precisava de tudo isso.
-É claro que precisava! Por favor, deixe...
-Tudo bem, tudo bem. Entendo.
Depois do curto diálogo me virei para a janela e já estávamos adentrando no condomínio. Haviam diversos tamanhos de casas, maiores, menores, médias, mas todas eram bem grandes. Dirigimos até uma grande praça no centro de uma rua toda cercada de casas.
-Vamos parar na casa dos meninos primeiro - disse o sr. Kadam. - Depois vou levar as senhoritas até suas casas.
Assentimos e então o sr. Kadam parou em frente a uma casa muito grande, uma mansão. Não chegava a ser do tamanho da casa na Índia, mas mesmo assim era enorme para o que eu estava acostumada.
Kishan saiu primeiro e segurou a porta para nós passarmos. Apenas levei meu telefone, já que logo estaríamos em nossas novas casas. Parei em frente a residência dos Rajaram e fiquei esperando em quanto Ren batia à porta.
De lá, saiu uma mulher com mais ou menos o meu tamanho, cheia de gentis traços orientais e olhos azuis como os de Ren. Ela tinha os cabelos presos em um coque e usava roupas que lembravam a Ásia. Na hora, simpatizei com ela.
Ren e Kishan correram para abraçá-la, e assim ficaram por um bom tempo. Trocaram palavras cuja linguagem eu não conhecia e trocaram também sorrisos. Depois de se afastarem dela, o sr. Kadam a cumprimentou, então Anamika e depois Yesubai, lhe dando um abraço apertado.
Ren segurou em minha mão e me puxou para perto dela, que sorriu genuinamente.
-Mamãe, esta é Kelsey. A minha noiva.
Ela riu carinhosamente e abriu os braços em um gesto maternal, vindo ao meu encontro e me dando um abraço apertado.
-Então você é Kelsey! - disse ela, com um sotaque muito característico. - Dhiren me falou de você durante horas!
Observei o rubor subir às faces de Ren. Sorri, muito animada por finalmente conhecer a minha sogra.
-É um prazer conhecê-la, Sra. Rajaram...
-Que isso! Para você eu sou somente Deschen. É um prazer maior ainda poder te conhecer, Kelsey. Não querem entrar para um café? Vocês não sabem o quanto senti a sua falta e o quão animada estou para conhecer melhor Kelsey e Anamika.
-Tenho certeza de que elas gostariam, mamãe - disse Kishan. - Mas as meninas precisam ir arrumar a casa delas. Têm muito a descobrir.
-Ah, é claro. Mas quero que vocês venham quando puderem até aqui. Venham para o almoço! Ainda está cedo e tenho certeza de que vocês irão gostar da minha comida - ela deu uma piscadela. - Garanto que vão amar este lugar. É maravilhoso, e ainda mais quando estamos todos juntos. Até mais tarde, então.
-Até mais tarde, Deschen - eu disse.
-Muito obrigada! - Anamika completou.
Yesubai segurou suas mãos com força, e depois soltou, sorrindo. As duas se conheciam há tempos e pareciam ter passado muito tempo sem se ver.
Voltamos para a van e começamos a andar novamente. Seguimos em frente e demos a volta na grande praça, chegando ao outro lado, na parte mais alta. Era quase no canto de cima da praça, ficando um pouco longe da casa dos meninos. As nossas eram menores, porém continuavam sendo maiores do que a casa de Sarah e Mike.
-Estas três casas são as de vocês - disse o sr. Kadam. - A primeira é a de Kelsey, a segunda de Anamika e a terceira de Yesubai.
Ele parou em frente às três casas grandes, abrindo a porta e me ajudando a descer com as malas.
-A casa de Yesubai está com as suas roupas que ficavam na outra moradia, já a de Anamika, ainda não tem vestimentas... hoje à tarde, srta. Kelsey, pode ir comprar roupas com Anamika?
-Claro. Vai ser bem divertido - eu disse, olhando para Anamika e sorrindo.
O sr. Kadam levou três das minhas malas até a porta da casa e então voltou para o carro.
-Aqui está a chave de vocês. Façam bom proveito! Nos vemos mais tarde.
Então foi embora.
Paramos as três em frente às nossas casas, nos olhamos, sorrimos, e dissemos, em coro:
-Façam bom proveito.
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