Após soltá-lo, já bem mais calma, estendemos a toalha azul e a blusa de Luan nos bancos do carro para não molhá-lo e seguimos para a cidade, a procura da saída para Paulínia. Luan ainda estava quieto e aquilo estava começando a me incomodar um pouco. Será que eu havia feito algo de errado? Já dentro da cidade, ele estacionou o carro em uma rua desconhecida, me deixando intrigada. Pegou a mochila no banco de trás, tirando de lá as sacolas com todas as comidas intocadas do nosso passeio. Ele colocou os óculos e o boné, devolveu a mochila para o banco de trás e abriu a porta, saindo com as sacolas na mão. Não perguntei a onde ele iria, apenas fiquei olhando-o confusa, enquanto ele atravessava a rua em direção a uma igreja que havia ali.
Ele se aproximou de duas pessoas que estavam dormindo no chão sobre jornais, e os cutucou de leve. Os mendigos olharam para Luan confuso e então se sentaram sonolentos, percebi que era um senhor e um garoto que aparentava ter a minha idade. Não ouvi o que conversavam, mas Luan os entregou as sacolas, e eles pareceram contentes. O homem mais velho falou alguma coisa e Luan assentiu lentamente, virando as costas e voltando para o carro.
Toda aquela cena aconteceu bem rápido, mas eu via tudo em câmera lenta. Achei que não fosse possível encontrar mais motivos para admirar Luan, e estava completamente enganada. Luan era um ser humano incrível, não havia palavras para descrevê-lo com perfeição. A única coisa que conseguia pensar era na sorte que tinha e tê-lo ao meu lado naquele momento.
— O que eles disseram? – Perguntei assim que ele entrou no carro.
— Só agradeceram. Infelizmente nem todo mundo tem condições financeiras para viver bem. – Ele comentou tristemente olhando os dois revirar as sacolas entusiasmados.
— Você é incrível Luan! – Disse maravilhada com tal humanidade que possuía aquele garoto.
— Não, não sou. Só faço o meu dever como cidadão. – Afirmou, enquanto o carro voltava a andar. O que havia de errado com Luan? Por que ele simplesmente não sorria tão angelicalmente como sempre e me chamava de boba? Sentia meu coração apertar, ele estava estranho e eu podia sentir, mas queria entender o porquê. Luan não ligou o som do carro e eu também não o fiz, apenas o olhava apreensiva. Assim que saímos da cidade, não aguentei o nó na garganta e o sufoco que aquele silêncio me causava e fiz a pergunta que pairava na minha cabeça, antes que eu tivesse tempo de desistir.
— O que foi Luan?
— Nada, só estou pensando. – Ele disse ainda olhando para a estrada, mas pude notar suas mãos apertando o volante.
— Tem algo de errado com você e eu posso notar. Seria justo que eu ficasse sem entender nada enquanto você simplesmente fica quieto? – Perguntei calmamente, tentando escolher as palavras certas para usar.
— Não, não seria. – Ele respondeu, e seus lábios se estreitaram em uma linha reta. Observei ele estacionar o carro no acostamento, retirar os óculos e debruçar em cima do volante. Senti o desespero correr por todo o meu corpo. O que estava havendo com ele?
— Luan, pelo amor de Deus, me diz o que está acontecendo? – Pedi desesperada, tocando de leve o seu cabelo.
— Me desculpa? – Ele pediu levantando o rosto e me olhando.
— Pelo quê? – Perguntei confusa.
— Por ter sido tão irresponsável. – Ele disse com a expressão de martírio no rosto. – Eu agi por impulso… mesmo sendo na água é arriscado… mas… é claro que eu deveria ter previsto… eu sou um idiota… e não sei como consertar! – Ele começou a falar rápido demais, mas pude entender claramente o que ele queria dizer, e o que estava perturbando-o. Havíamos sido completamente irresponsáveis, e eu mal conseguia calcular as consequências que aquilo poderia ter. Tentei afastar os pensamentos da cabeça por hora, não queria surtar na frente dele e deixá-lo ainda pior.
— Calma Luan, deve ter algum jeito de consertar essa situação. – Tentei confortá-lo.
— Eu não faria isso! – Ele disse me olhando surpreso.
— Isso o que? – Perguntei confusa.
— Eu não deixaria você fazer um aborto Luly.
— Luan, eu não estou grávida! – Disse rindo nervosamente.
— Não estou dizendo que está, só… – Ele não completou a frase, apenas puxou o canto da boca em uma careta, e eu senti que ele iria dizer que não estava, mas poderia estar. Oh céus, não pensaria nisso agora, não pensaria nisso agora… Repetia para mim mesma em pensamento.
— Tudo bem. – Disse respirando fundo. – O que podemos fazer agora?
— Pensei na… pílula do dia seguinte. – Ele falou receoso.
— Então vamos atrás dela.
— Você faria isso?
— Qualquer coisa. – Disse sinceramente. Ele sorriu tristemente, pegando uma das minhas mãos e beijando de leve. Luan fez o contorno com o carro, e voltamos para a cidade enquanto eu tentava controlar meus pensamentos. Em pouco tempo conseguimos achar uma pequena farmácia, e ele estacionou há alguns passos.
— Me espera aqui, tudo bem? – Ele pediu enquanto colocava os óculos de volta e saia do carro. Eu assenti, percebendo que já estava roendo a quarta unha, enquanto fazia um esforço incalculável para manter a minha cabeça vazia. Precisava ser forte por Luan. Resolvi então não observá-lo na farmácia e me concentrar nas minhas unhas, era uma enorme fonte de distração. Quando olhei para o outro lado da calçada, avistei Luan saindo de dentro da sorveteria. O que ele estava fazendo na sorveteria? Então ele abriu a porta, me passando as sacolas ao entrar. O carro voltou a andar, enquanto as abri para olhar seu conteúdo, era uma caixinha branca e vermelha e uma garrafa de água.
Abri a caixa, percebendo que havia dois comprimidos na cartela. É claro que já tinha ouvido falar da pílula do dia seguinte, mas era totalmente inexperiente e não sabia o que teria que fazer. Notei que o carro estava andando rápido demais e em pouco tempo já estávamos de volta no acostamento. Luan pegou a caixinha do meu colo enquanto eu tentava ler a bula atrás de alguma informação. Ele destacou um comprido da cartela, entregando-o na minha mão.
— Você vai precisar tomar um agora e o outro daqui há doze horas. – Assenti, abrindo a garrafa de água, tomando o remédio, e guardando a caixinha no bolso do casaco. Abri o porta luvas, pegando meu celular, fiz as contas de que horas deveria tomar o outro comprimido e o programei para despertar. Fitei Luan, ele ainda me encarava com a mesma expressão de dor em seu rosto, e eu tentei sorrir para animá-lo, mas saiu menos convincente do que gostaria. Então Luan me abraçou repentinamente, quase me esmagando em seus braços. – Me desculpa por isso, por favor? Eu fui um irresponsável… foi um erro… eu não devia… – Ele começou a falar desesperadamente. Eu não conseguia dizer absolutamente nada, era como se estivesse em um transe profundo.
As palavras “foi um erro” começaram a se repetir na minha mente, me causando uma enorme vontade de chorar. Havia sido um erro para ele, ele estava arrependido. Será que esse seria o nosso fim? O final de um eclipse que mal havia começado? Luan me soltou e eu apenas assenti para ele, tentando afastar os pensamentos da minha cabeça, pois uma dor imensurável ameaçava tomar conta de mim.
Assim que o carro voltou a andar eu continuei a ler a bula tentando me distrair. Mas os pensamentos que antes eu tentava reprimir, vieram à tona em cada palavra que lia daquele papel. Poderia eu mesmo estar grávida? Não, pelo conhecimento que tinha de Biologia sabia que ainda era cedo demais. Mas eu poderia ficar, não poderia? Não, não e não. Me recusava a aceitar essa hipótese. Eu não tinha condições de cuidar de uma criança, quando eu não conseguia cuidar nem de mim mesma! Mesmo sendo um pedacinho de Luan, um fruto de um amor tão bonito… Não podia, não agora. Como contaria algo assim para meus pais? Eles me matariam, sem dúvidas. Já podia até ver a cara de reprovação deles para mim. E a escola? Teria que parar de estudar? Oh céus, isso não poderia acontecer, não poderia.
Então meus pensamentos foram invadidos pelas consequências que aquilo poderia causar na vida de Luan. Ele era jovem, tinha uma carreira brilhante, eu não tinha o direito de estragar tudo aquilo. Luan se mantinha calado, apenas olhando para a pista, e as palavras de que havia sido um erro voltaram a dançar na minha mente. Ele iria me deixar? Eu não poderia ficar sem Luan, eu me despedaçaria sem ele.
— Não vamos mais nos ver? – Perguntei sem me importa com a infantilidade na minha voz.
— Por que diz isso? – Ele pareceu confuso.
— Você disse que ficar comigo foi um erro. – Disse sentindo as lágrimas escorrerem contra a minha vontade. Luan me olhou por alguns segundos e então parou o carro imediatamente no acostamento. Ele se virou para mim e segurou meu rosto entre suas mãos.
— Luly, nunca mais repita isso, ok? – Ele disse olhando dentro dos meus olhos. – Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, eu nunca me arrependeria de ter ficado com você.
— Mas você disse… – Não consegui terminar a frase, pois meu coração apertara no peito.
— Que foi um erro. Mas não foi isso que quis dizer. Foi um erro eu ter sido tão irresponsável.
— Você está bravo comigo. – Não havia sido uma pergunta. Então ele sorriu tristemente.
— Eu nunca fico bravo com você Luly. Só estou bravo comigo mesmo por ter sido um cafajeste com você. – Ele ainda segurava meu rosto para que eu o encarasse.
— Você não foi um cafajeste.
— Fui sim, eu não devia ter te forçado, não devia te feito isso com você. – Senti a dor transparecer seus olhos, e então algo dentro de mim se restabeleceu, eu não podia deixá-lo sofrer. Não importava o quão fraca eu estivesse, eu sempre me tornaria forte o suficiente para tentar protegê-lo. Peguei as mãos dele no meu rosto e falei olhando dentro dos seus olhos.
— Luan, você não fez nada do que eu não quisesse, e eu queria mais do que tudo na vida. Portanto essa culpa é tão minha quanto sua.
— Não quero estragar a sua vida. – Ele disse abaixando os olhos.
— Você não estragaria nem se quisesse. – Ele me olhou novamente, pousando uma das mãos mais uma vez no meu rosto carinhosamente.
— Vai ficar tudo bem. – Ele disse como se fosse uma promessa.
— Eu tenho certeza disso. – Ele sorriu fracamente, me puxando para seus braços. Respirei fundo, compreendendo mais do que nunca que não importava quantos obstáculos eu tivesse que superar, contando que pudesse ter o seu abraço no final, eu passaria por tudo novamente, quantas vezes fosse preciso.
Assim que Luan voltou a dar partida no carro, eu abri o vidro da janela, sentindo o vento no meu rosto e deixando que ele levasse todos os pensamentos ruins embora. O clima parecia bem mais leve, estávamos confiantes de que daria tudo certo e Luan até voltou a ligar o rádio. Dessa vez eu não cantei, deixei apenas a voz de Luan me entorpecer, enquanto eu olhava o céu pela janela. Estava pintado de um azul claro, todo salpicado de nuvens que mais pareciam pequenos pedaços de algodão. Quando eu era pequena meu pai me dizia que as nuvens eram feitas de algodão doce, e quando o céu estava cheio delas significava que os anjos estavam festejando. Um dia perguntei a ele por que eles nunca faziam festa a noite, pois não conseguia ver nenhuma nuvem, e ele me respondeu que eles estavam ocupados protegendo os nossos anjos aqui na Terra.
Por muito tempo procurei esses anjos, achava que eles andavam escondidos dos humanos por serem facilmente reconhecidos. Até que encontrei o meu anjo e soube que era ele desde o primeiro momento. Não por ostentar uma aureola e mantos esvoaçantes, mas sim por irradiar luz. Descobri que eles andavam disfarçados de humanos e carregavam a missão de proteger e iluminar as pessoas ao seu redor. Eles distribuíam amor, ocasionavam felicidade e transformavam vidas.
O meu anjo havia me ensinado a enxergar a vida de uma maneira melhor, me mostrou a face mais linda do amor. Me ensinou a acreditar no impossível e a voar em busca dos meus sonhos sem medo de cair. Meu anjo me ensinou a ser feliz, pois a felicidade estava dentro de mim, morando no meu coração. Mas principalmente ele me ensinou que anjos existem, e o meu tinha nome e sobrenome; Luan Rafael Domingos Santana, o meu anjo da guarda e dono do meu coração.
— Sempre quando viajo para algum lugar gosto de ficar encontrando desenho nas nuvens. – Comentei ainda olhando para o céu.
— Também fazia muito isso. – Luan disse abaixando o volume do rádio.
— Dizem que só as crianças são capazes de ver desenho em nuvens, pois são puros de coração.
— Ou essa tese está errada ou ainda somos crianças. – Ele disse se divertindo.
— Acho que ainda somos crianças. – Disse num suspiro, ele abriu um sorriso encantador, quase me tirando o ar.
— E o que você está vendo agora?
— Está vendo aquelas nuvens ali? – Apontei para o norte. – Bem em cima da copa das árvores.
— Acho que sim.
— Eu vejo uma menina segurando uma boneca.
— Eu estou vendo um leão.
— Um leão? – Perguntei surpresa.
— Sim. E ele está com os dentes de fora. – Ele enfatizou, me fazendo rir.
— Dizem que vimos refletido nas nuvens aquilo que está dentro de nós.
— Então quer dizer que tenho um leão dentro de mim? – Ele perguntou sorrindo.
— Talvez signifique você tenha a coragem e a força de um leão.
— E você a inocência e a delicadeza de uma criança brincando de boneca. – Eu corei levemente e desviei o olhar, mal conseguindo controlar meu coração, que dava saltos dentro do meu peito. Passamos parte da viagem tentando achar desenhos nas nuvens e encontrar a explicação para vê-los ali. Vimos desde cachorros e borboletas a pessoas e objetos, e achamos as explicações mais mirabolantes possíveis. Estava feliz por vê-lo sorrir e fazer brincadeiras tão particulares. Luan levou sua mão até a minha e as entrelaçou. Eu sabia que momentos conturbados viriam a partir daquele momento, mas enquanto tivesse Luan para segurar a minha mão, tudo estaria bem.
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