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História Dissidentes - Perder o controle


Escrita por: police

Notas do Autor


Olá, como estão? Acredito que querendo me matar, mas infelizmente a demora foi inevitável porque eu não estou conseguindo escrever. As coisas não estão saindo do jeito que eu gostaria e isso me deixa muito triste, frustrada e incrivelmente desanimada com tudo. Enfim, me desculpem por isso, mas a demora não vai mais poder ser evitada.
Espero que entendam e não me matem. Realmente estou mega desanimada não só com a fanfic, estou com uns problemas pessoais ruins e isso acaba influenciando na minha escrita e aí tudo bloqueia e não consigo escrever.
Quero pedir com o maior carinho do mundo para que vcs não me abandonem, certo? Eu vou continuar tentando escrever e fazer uma história boa pra vocês. Só preciso de tempo e do apoio de vocês.
Espero que gostem desse capítulo e me digam, por favor, o que estão achando.
Boa leitura <3

Capítulo 11 - Perder o controle


As doenças mais perigosas são aquelas que nos fazem acreditar que estamos bem.

— Manual de Obediência, Segurança e Felicidade, página 17.

 

Eu assisti a Miranda Graymark jogar água num formigueiro no quarto ano uma vez. Megan e eu estávamos nos pátio da Academia Preparatória para Garotas St. Jude, curtindo o momento do recreio com alegria como toda criança de nove anos faz, quando Miranda teve a ideia. Eu me lembro de assistir a tudo, enquanto ela derramava sua garrafa de água aos poucos, sua expressão de alegria e satisfação ao ver o desespero das pequenas criaturas, o jeito que ela gargalhava a cada gota derramada. As formigas corriam destrambelhadas, sem direção, lembro-me de quase conseguir ouvir gritos suplicantes de pavor vindos delas; o pânico se instaurando rapidamente enquanto os seres minúsculos corriam sem rumo em busca de salvação.

Somente hoje eu entendo como é a sensação.

Justin e eu ainda estamos correndo, sua mão grudada à minha como se fossem moldadas para estarem desse jeito. A adrenalina é tanta que nem me importo com o fato de estar de mãos dadas com um garoto — com um Selvagem. Meu pensamento está anuviado, correndo fraco como um tecido vibrante que foi desbotado pelo tempo. A sensação que tenho é semelhante a de estar escalando uma montanha íngreme, onde você inspira fundo várias vezes, mas não consegue tomar fôlego. Justin, por outro lado, não esboça qualquer sinal de medo, apenas uma expressão contínua de concentração e seriedade. Ouso olhar para ele algumas vezes, enquanto corpos se chocam violentamente contra o meu, em fuga; ou quando precisamos desviar de pessoas desacordadas sobre o chão duro de madeira.

De algum jeito, conseguimos atravessar a multidão em pânico, estamos correndo pela varanda da casa, a lua crescente piscando zombeteira para nós enquanto nossos passos duros e apavorados ecoam sobre o piso desgastado. Justin parece ter um destino em mente, mas há mais reguladores ao lado de fora, como se esperando para abater qualquer um que ouse conseguir escapar de dentro da bolha quente de pavor e suor que é o número 211 da Rua Riverdrive.

Meu estômago está embrulhado, minhas pernas tremem tanto que sinto que poderei cair a qualquer instante, mas parar de correr está fora de cogitação. Sigo em frente, continuo me deixando guiar para onde quer que Justin queira nos levar. O som de caos continua retumbando alto sobre meus ouvidos, a cena horripilante se estende também do lado de fora ao meu redor, como partes isoladas de um filme de terror ruim. E tudo que consigo desejar neste momento, a única coisa que vem à minha cabeça em forma de súplica, é uma palavra: silêncio. Eu só quero poder ouvir minha própria respiração, meus próprios pensamentos, e é enquanto estou pensando nisso, que a voz raivosa e autoritária soa bem atrás de nós.

 — Parados!

Estou tão apavorada que quase tropeço num menino moreno agachado em posição fetal no chão da varanda. Olho para Justin, completamente em pânico e o vejo, pela primeira vez desde que iniciamos nossa fuga desembestada, esboçar uma reação: ele parece duramente apreensivo. O regulador explode atrás de nós, sinto suas botas pesadas em nosso encalço, mais perto do que eu gostaria. E é quando o latido raivoso explode em nossos calcanhares que percebo que nunca iremos conseguir.

— Estamos quase lá — murmura um Justin ofegante, a voz incrivelmente tensa, quase suplicante. — Mais rápido, Louise, estamos quase lá!

Mas não consigo ir mais rápido, pois neste momento uma dor aguda explode em minha panturrilha. Desabo no chão enquanto o cão continua mastigando parte da minha perna como um lanchinho saudável de fim de noite. Imediatamente minha mão se solta da de Justin e nada mais passa por minha cabeça além da inacreditável queimação na parte direita do meu membro inferior.

Ouço murmúrios do regulador que nos perseguia, consigo pegar um lance de seus movimentos ao tentar bater no cachorro com a perna livre, gritando desesperada; ele está com sua arma de choque, pronto para usá-la em mim e está sorrindo — como Miranda Graymark sorria ao inundar as formigas, anos atrás. Céus, ele realmente está gostando disso. Quase consigo sentir a agonia dos volts penetrando minha pele, a eletricidade atravessando meu corpo de fora para dentro como milhares de pequenos golpes seguidos de espada sobre cada pedacinho de mim. De olhos fechados, espero o choque, mas ele não vem.

Após um barulho indistinguível e uma lamúria dolorosa, sinto o peso das dezenas de dentes sobre minha perna desaparecer. Tudo acontece em questão de segundos. Ao abrir meus olhos, vejo Justin parado em frente a mim, ofegante com um pedaço grosso de madeira, sujo com um líquido vermelho, mantendo o cão afastado; o Regulador que segundos atrás estava nos perseguindo, distribuindo ondas de terror pelo meu corpo, está estirado no chão — e um ferimento aberto, completamente exposto e sangrento na cabeça. Justin me olha com urgência, o ardor em minha perna compromete meus pensamentos, mas consigo ouvir o ruído de botas, então noto a boca de Justin se mexendo enquanto me levanta do chão de grama seca.

— Mais deles estão vindo, temos que ir agora — diz ele enquanto passa um dos braços por minha cintura e joga o pedaço de madeira no chão. — Consegue caminhar?

Nego com a cabeça.

É verdade, não conseguiria andar, não sozinha. E, ao mal acabar de concluir o pensamento, Justin já se encontra de pé ao meu lado, me guiando; meu corpo completamente apoiado no dele, seus braços ao meu redor, meio me carregando pelo quintal dos fundos escuro e estranhamente assustador.  Tenho total consciência de estar atrasando-o, se não fosse por mim ele conseguiria fugir, porém em momento algum ele me solta.

Mais passos ecoam atrás de nós, mais vozes desconexas e estridentes gritando coisas aleatórias, violentas e ameaçadoras. Cada vez que minha perna direita toca o chão, é como se estivesse submersa num vulcão escaldante, as lavas corroendo minha pele, derretendo meus músculos, queimando meus ossos.

Mal presto atenção no caminho, mas é perceptível que já não estamos mais no quintal da casa onde aconteceu a festa, pegamos um caminho sinuoso, indo cada vez mais para o fundo até que várias árvores começam a nos rodear; galhos e folhas por todo lugar até onde minha visão consegue alcançar. O barulho de passos diminui, de vez em quando escuto maldições lançadas pelos reguladores enquanto batem em alguma árvore ou tropeçam em galhos na quase completa escuridão. Justin, por outro lado, parece saber exatamente onde pisar, em qual direção ir e quando deve desviar. Parece que ele conhece cada centímetro desse lugar, mas é impossível! Ninguém vive aqui há anos, os reguladores saberiam; o governo saberia.

Justin é veloz, ele corre agilmente entre galhos baixos, troncos largos e buracos no solo. Reconheço o lugar como o Portland East Park, abandonado depois de Riverdrive ser apontada como lar de doentes e Simpatizantes. Com delicadeza, Justin me pousa encostada sobre o tronco de uma árvore e parece cavar o chão à frente, como um cachorro procurando por seu osso outrora enterrado.

— O que você está fazendo? ― Consigo dizer, mas as palavras saem como sussurro. Não obtive resposta.

A dor pulsante em minha panturrilha está pior agora, sinto o mundo girar enquanto noto Justin afastando as pedras e folhas do chão, com pressa, e uma porta pequena com passagem estreita e escadas precárias surgir. E é então que percebo: é um esconderijo. Nota-se que a esta altura os reguladores já ficaram para trás, mas com certeza estão avançando pelo emaranhado de árvores, desajeitadamente no escuro e com sangue nos olhos, procurando por nós.

— Por aqui — Justin diz com aquele tom tenso e controlado e então braços firmes estão sobre mim novamente, me guiando por degraus oscilantes de concreto.

Não sei bem como aconteceu, não é possível enxergar nada além de negritude que se estende por todo o lugar, mas no segundo seguinte estou sentada sobre um chão frio e duro. A luz da lua fraca ilumina momentaneamente o lugar, noto ser uma saleta subterrânea, um espaço minúsculo cimentado e completamente fedorento. A luz se vai no momento em que Justin encobre os rastros, escondendo a entrada novamente.

E então estamos sozinhos, mergulhados em uma completa escuridão.

O silêncio é louvável, quase como um coro de aleluia entoado por anjos. Estou quase aliviada, aproveitando o deleite que é estar longe da carnificina; longe do quebrar de ossos e do som de mandíbulas caninas se fechando sobre carne humana. O alívio durou menos do que esperava, pois assim que fecho os olhos, numa tentativa de comtemplar a calmaria, imagens dos últimos minutos, sangrentas s e tumultuadas, surgem por debaixo de minhas pálpebras, assombrando minha mente como espíritos de tormento.

Justin está sentado de frente para mim, vejo com dificuldade sua silhueta através do breu que nos engole. Eu quero dizer alguma coisa, quero agradecê-lo por me salvar, mas então percebo o quão contraditória é a situação: Justin, um Selvagem, me salvando daqueles que deveriam me proteger de pessoas como ele. Em outro contexto, poderia até ser cômico, mas é trágico. Eu sou tomada por uma raiva incontrolável daqueles lá fora, dos monstros vestidos de preto que sorriem ao torturar alguém; de pessoas como Miranda Graymark que assistem ao caos com os lábios esticados e expressões de satisfação.

De repente estou presa numa jaula, num recipiente invisível lotado de raiva e amargura. Reguladores são monstros, penso de forma dolorosa, todos lá fora são.

Uma luz fraca é acesa de repente, noto vir de um lampião muito, muito antigo; e então o rosto de Justin surge em meio ao vazio. Ele está olhando seriamente para mim, a expressão ilegível, peito subindo e descendo com dificuldade enquanto o garoto, aos poucos, recupera seu fôlego perdido na longa corrida até aqui.

A camada de raiva que me encobre dá lugar à dor lancinante que me consome de uma só vez, por um momento pura resignação e ódio, havia me esquecido do ferimento. Sinto o tecido de minha calça completamente encharcado, empapado pelo que imagino ser sangue. Meu sangue.

— Eu posso dar uma olhada na sua perna? — Pergunta Justin, como se lesse meus pensamentos.

Ele está com uma expressão cautelosa, como se estivesse lidando com um animalzinho irritadiço e arisco, o qual poderia atacá-lo ou sair correndo caso o tom de voz errado fosse utilizado. Sua fala é suave, um sussurro tão baixo que parece fazer cócegas em meus ouvidos. Assinto rapidamente. No momento não há nada em mim além da vontade de me livrar dessa queimação contínua que sobe de minha panturrilha até meu cérebro. Eu só quero fazer a dor parar.

Sem tirar os olhos de mim, Justin, com cuidado e leveza impressionantes, levanta minha perna direita e a pousa em seu colo. O local onde estamos é tão pequeno que mal cabemos nós dois sentados, suas costas estão escoradas sobre uma extremidade do cubículo de cimento e as minhas, na outra. Ele se remexe um pouco e alcança uma caixa ao seu lado, sem ao menos sair do lugar ou desencostar da parede.  Penso que seja lá quem criou este lugar, não tinha conforto como um dos objetivos.

Justin retira da caixa uma tesoura e rasga o jeans do tornozelo até o joelho e, com uma delicadeza impressionante, vira minha perna para poder enxergar melhor o ferimento. Eu não ouso desviar meus olhos dele, parece errado de alguma forma que não conheço perder cada detalhe de seus movimentos. E, enquanto estou com minha visão grudada sobre ele, noto quando sua face se contorce numa careta ao olhar para minha perna. Não tenho coragem suficiente para olhar para baixo, não sei se aguentaria ver o estrago que aquele cão deixou em mim.

— Está muito ruim? — Pergunto num sussurro.

— Fique parada — sussurra de volta, seus olhos concentrados e perdidos sobre os ferimentos. Eu sei que está feio, sinto o sangue escorrendo como uma cascata, mas sinto-me grata por ele não dizer isso.

A dor não cessa.

Justin remexe a caixa com agilidade e pressa, tirando de lá uma garrafa de plástico pequena que não tento identificar. Ele hesita.

— Isso vai doer, é álcool esterilizante — sussurra. Não consigo deixar de notar que gosto do jeito que sua voz soa para mim nesse tom. Faz com que ele pareça incrivelmente delicado, como uma pétala de flor de um jardim qualquer. O pensamento é estranho para mim, mas não se atreve a ir embora. Concluo que a dor está influenciando meu modo de pensar, só pode ser isso. — O álcool vai impedir qualquer tipo de infecção. Vai queimar, mas você não pode gritar, deve haver reguladores pelas redondezas.

Eu apenas balanço a cabeça e me preparo para a dor e, desta vez, ela vem. É como se chamas estivessem sendo jogadas em mim, como se eu estivesse mergulhando metade da perna num rio de lava. Preciso morder minha mão para não gritar, meu corpo inteiro está tenso e trêmulo. É horrível.

— Merda — ele diz após mais uma olhada em minha perna. — Você está sangrando pra valer.

Penso em dizer a ele que não está doendo tanto assim, mesmo sendo uma completa mentira. Algo sobre a segurança e a calma que Justin transmite me faz querer demonstrar um pouco de força também, quero de algum jeito mostrar para ele que consigo aguentar a dor. Mesmo isso não sendo totalmente verdade.

Nunca em toda minha vida conheci alguém tão calmo ou tão controlado como Justin. Ele continua encarando minha ferida, como se decidindo o que fazer com ela. Sua expressão é concentrada, penso que ele está distante de algum jeito, como se, mesmo estando em frente a mim e me tocando, eu nunca conseguiria alcançá-lo. Ele parece longe, perdido em seu próprio mundo e eu me pergunto se tal sensação é causada pela dor em minha perna e o cansaço que me engole de repente. Parece que estou capturando seus movimentos mecânicos com pouca nitidez, é como assistir um filme sem cor.

E então ele começa a tirar a camisa.

Se alguns segundos atrás ele parecia distante, agora não poderia estar mais perto. Sinto sua presença lotar o lugar, me imprensando cada vez mais num espaço minúsculo imaginário. Quero gritar com ele, perguntar o que está fazendo, mas então ele começa a rasgar o tecido em tiras longas com cuidado para não fazer muito barulho. Eu nunca havia visto um garoto sem camisa antes, exceto na praia e quando era criança, mesmo assim eu nunca ficava encarando. Mas agora, como se um ímã estivesse puxando minha visão, não consigo parar de olhar.

A luz fraca alcança suas omoplatas e quase consigo imaginar asas ali, batendo forte e nos erguendo do chão. É algo atordoante e estranhamente novo. Justin é magro, mas musculoso também; seu abdômen parece ser desenhado minunciosamente, as linhas traçadas uma a uma com uma precisão assustadoramente incrível. E por um momento imagino as paredes se inclinando, movendo-nos consequentemente um para mais perto do outro até não sobrar mais espaço. O pensamento me assusta, mas ao mesmo tempo me alegra. De repente começa a fazer calor, como se uma lareira invisível ardesse em brasas em cima de mim e não tenho certeza se isso é por causa do sangramento. Tenho uma ligeira impressão de que não é.

Justin amarra com cuidado uma tira grossa do que antes fora sua camisa em minha panturrilha e, espantosamente, a dor aguda e constante é substituída com uma pressão pouco incômoda e forte.

Eu, por outro lado, continuo encarando sua pele e músculos, como se de alguma maneira quisesse memorizar cada pedaço de sua epiderme lisa e nua em minha mente. Por um estranho momento débil e inconsciente, imagino-me tocando-o; minhas mãos passeando tranquilas por seus braços, peito... Com um susto, finalmente me dou conta do que estou pensando e me sinto envergonhada e horrorizada em todos os sentidos. Você só pode ter perdido o juízo! Grita uma voz em minha cabeça. E, por um instante, penso ser verdade; penso que minha sanidade está se esvaindo aos poucos, sendo rasgada ao meio como o tecido da camisa de Justin.

— Você está bem? — Pergunta ele para mim após notar minha expressão, a voz nada mais que um sussurro suave. Concordo com a cabeça.

A noite volta a ser silenciosa. Se me esforçar, consigo ouvir o cricrilar dos grilos como uma música de fundo suave e, de certa, forma relaxante. Os reguladores devem ter ido embora e, apesar de isso me encher de alívio por um lado, por outro não consigo deixar de pensar sobre Megan e se ela conseguiu escapar. Faço uma oração em minha mente para que sim.

Após terminar o curativo improvisado, Justin pousa minha perna com um cuidado surpreendente no chão gelado de cimento e se arrasta para meu lado. Eu nunca vou entender o que acontece toda vez que ele está tão perto de mim, é como se um zumbido de eletricidade passasse por entre o espaço ou uma chama raivosa descesse de repente sobre mim. Eu só sei que nossos ombros quase se tocam, e enquanto isso acontece a minha capacidade de raciocínio se esvai e me sinto quente; a única coisa que quero saber é por quê.

— Obrigada.

Minha voz é fraca, apenas um filete lançado contra o ar, quase inaudível. Pelo canto do olho vejo que Justin me observa, no entanto não me atrevo a encará-lo de volta. Eu me lembro do dia em que dançamos juntos da festa em Deering Highlands, do jeito suave que deslizamos sobre a grama. Não consigo deixar de pensar sobre sua expressão, a forma que seus olhos ficavam prateados banhados pela luz brilhante da lua cheia. E então estou pensando se realmente devo temê-lo. Se Justin é um doente, alguém que vive sem regulamentação e, portanto, um ser humano com defeito, por que ele salvou minha vida?

— Pelo que está me agradecendo exatamente?

— Por me salvar — digo e aponto com a cabeça para minha perna agora enrolada num curativo improvisado. — E por isto também.

Ainda não o olho, mas sinto sua respiração batendo contra meu pescoço cada vez que diz alguma coisa, provocando uma espécie desconhecida e agradável de arrepio. Tudo nele é desconhecido, novo, completamente imprevisível e por um momento me pergunto: estar aqui com ele é de fato algo tão grave, tão ruim, a ponto de ser um crime? Ao meu lado, sinto-o sorrir brevemente.

— Louise — ele chama. — Sobre o que aconteceu aquele dia no Oarek, me desculpe. Não quis mentir, eu só não...

— Está tudo bem — interrompo ansiosa. — Você não precisa se explicar.

— Mas eu quero explicar, quero que você saiba que eu só não contei antes porque não queria te assustar.

Eu quero murmurar algo sobre como a parte de “não queria te assustar” não funcionou muito bem, mesmo tendo contado depois, mas me calo. As palavras não vêm e simplesmente começo a pensar sobre as formas que as doenças trabalham; o jeito que os sintomas são sutis, fazendo-o realmente crer que o que está fazendo é o certo. As doenças mais perigosas são aquelas que nos fazem acreditar que estamos bem, lembro-me da frase mais importante do Manual de OSF. E quando dou por mim, estou me afogando num mar profundo de dúvidas.

— Eu não contarei sobre você a ninguém — digo de forma automática. — Não precisa se preocupar.

— Não é bem com isso que estou preocupado — diz ele. Por um momento tenho certeza de que se aproximou mais de mim, pois posso jurar que as cócegas em meu pescoço aumentaram e o zumbido também. Ele faz uma longa pausa. — Estou bem mais preocupado com a possibilidade de você me odiar.

As paredes parecem se mover, encolhendo ainda mais o espaço minúsculo que nos encontramos. Para onde quer que eu olhe, vejo mais dele, como se sua presença e cheiro estivessem impregnados pelas paredes geladas de cimento. Algo em meu estômago oscila ao ouvir sua voz tão calma e tão de perto. Ainda me recuso a olhá-lo, tenho medo de que se o fizer, acabarei de vez com minhas chances de permanecer sã. Há coisa demais acontecendo, informações demais para serem processadas, sensações demais para serem sentidas e eu só consigo me sentir confusa diante de tantas coisas estranhas.

— Por que você se importa com isso? — Pergunto num filete de voz, os olhos fixos no lampião velho e amarelado em minha frente.

— Bem — sinto seu olhar queimando sobre mim como um toque obsceno. Se possível, ele parece ainda mais perto. — Eu gosto de você.

— Mas você nem me conhece — digo exasperada, minha voz vacilando.

— Mas eu quero conhecer.

Ele sussurra as palavras de um jeito tão suave que fecho os olhos por um momento, como se assim conseguisse senti-las sólidas acariciando minha pele. Eu não sei o que responder, quando se trata de Justin nunca sei de nada, é como se meu cérebro apagasse todos os anos de informações que tem e eu me tornasse uma criança novamente. Uma criança sem saber falar, andar ou até mesmo respirar quando está perto dele. Isso me frustra.

— Por quê? — As palavras saem sem pedir permissão, não queria soltá-las, mas quando dou por mim já estou falando novamente. ― Não sou ninguém especial, por que eu?

Ele não responde. Isso me faz pensar que ele não tem uma resposta pra tudo tal como eu pensei, talvez ele apenas tenha me escolhido ao acaso, como parte de uma brincadeira qualquer. Provavelmente não há nenhum motivo e isso me desaponta de alguma maneira.

Mas então ele começa a falar.

— Eu não nasci nas Terras Selvagens, sou da Pensilvânia. Bem, pelo menos meus pais vieram de lá.

 Seu tom é fluido, como água caindo em abundância pela torneira, parece que vem ensaiando como despejar as palavras do melhor jeito há muito tempo.

Ele continua:

— Minha mãe se apaixonou por um jovem de família rica de Pittsburgh, era apenas uma adolescente e eles se envolveram. Quando minha mãe engravidou tinha apenas dezessete anos, ela deve ter ficado apavorada quando soube. Uma coisa é ter um casinho de adolescência, outra muito diferente é gerar um filho com isso. Ela contou ao meu pai, mas ele disse que não poderia fazer nada a respeito e então o desgraçado apenas a deixou sozinha com um filho no ventre. Ela entrou em desespero e escondeu a gravidez até quando pôde e, quando a gestação avançou a ponto de não conseguir mais disfarçar, ela fugiu. Sabia que não podia contar a ninguém, muito menos à família, pois seria presa e eu, levado a um orfanato qualquer apenas para nunca ser adotado. Sabemos que crianças com histórico de doenças na família nunca são escolhidas. E ela encontrou as pessoas da resistência da cidade, eles a acolheram e a ajudaram.

Eu escuto a tudo atentamente, com medo de que se eu apenas respirar de maneira mais forte, ele mude de ideia e decida não contar. Ele diz tudo de um jeito calmo, mas duro, como se esta fosse o tipo de história que se contava várias vezes em frente a um espelho para encontrar o melhor jeito de dizer. Saber sobre ele, sobre sua história é algo que me deixa curiosa e satisfeita, como se assim ele não fosse mais ser apenas um estranho. Saber sobre ele, eu querendo ou não, faria com que fôssemos mais próximos.

— Minha mãe era jovem — continua ele no mesmo tom. — E muito magra também, quando chegou a hora do parto ela não aguentou. Morreu logo após eu nascer e não havia nada que pudessem fazer sobre isso. E então o pessoal da resistência de Pittsburgh me levou até a fronteira, tinha apenas alguns dias de vida e temiam que eu não sobrevivesse, mas sobrevivi. E os “Selvagens”, como vocês chamam, cuidaram de mim e fizeram de mim tudo que sou hoje.

Uma pequena pausa se fez, Justin suspira como se para tomar fôlego e então ele prossegue:

— Eu vivia me mudando junto com os outros, cresci e quando tinha treze anos fui mandado para fazer parte da resistência de Portland. Não vou dizer como é arrumar os documentos e forjar registro, é complicado. Atravessar a fronteira também, mas não é impossível. Nós somos muitos, Louise, temos pessoas em todo o lugar: no governo, em partidos políticos, em empresas e em todos os setores e departamentos municipais estaduais e até mesmo federais. Não gostamos de ser chamados de Selvagens, somos muito organizados e o governo sabe, mentem para vocês. Fazem as pessoas acreditarem que não existimos e que fomos extintos na Blitz como pessoas imundas e sem racionalidade, mas somos Dissidentes, não animais.

Algo em seu tom faz com que me encolha. Há ressentimento ali, uma espécie profunda de ódio misturado à mágoa. Somos Dissidentes, não animais. Eu processo as palavras dele lentamente, começo a pensar sobre o dia do ataque ao Centro 6 de regulação, sobre o modo que nos mandaram mentir sobre o que vimos. Começo a buscar em minha memória mais “incidentes” contados e sobre quantas tubulações de gás, que foi a versão dada para a mídia, estouraram diversas vezes. Eles mentem para vocês, a frase flutua sobre minha mente, girando e girando até que eu a compreenda. Meu corpo inteiro treme, mas Justin continua a falar e não o interrompo.

— Me mudei para cá há seis anos — diz.

Eu olho de soslaio para ele, está concentrado na parede à frente, despejando as palavras com determinação e certa dose de desconforto; percebo que estar aqui contando tudo isso não é fácil para ele.

— Para a casa de um casal de simpatizantes em Roaring Brooks, nunca tinha os visto antes; mandaram-me chama-los de tio e tia. Eu não reclamei, afinal nunca conheci meus pais e fui criado por centenas de tios e tias diferentes durante a minha vida toda. Foi difícil no começo. Embora vivesse me mudando, eu nunca tinha saído de perto das pessoas com quem cresci, e fazer parte da resistência é algo importante, todos precisam passar por isso ao alcançar a idade certa. E eu simplesmente odeio esse lugar, odeio tanto que chega a doer. É tudo tão controlado, tão cheio de regras e pessoas parecendo mortas-vivas sem vontade própria. Para onde eu olhava via muros e cercas e me sentia enjaulado, a sensação quase me matava; era como não conseguir respirar. Eu costumava caminhar pela fronteira, sozinho por quilômetros até meus pés não aguentarem mais e assistir aos pássaros, sempre tentando buscar calma e executar o que aprendi com meus tios e tias na Selva. Observar os pássaros era a única coisa que me acalmava, eu podia vê-los voando, batendo suas asas para além da cerca enorme que nos prende aqui. E pensar que pelo menos eles eram livres, mantinha minha sanidade e somente por isso eu não enlouquecia.

A dor em suas palavras é tanta que sinto que poderei tocá-la ao esticar as mãos. Quando dou por mim, já estou olhando para ele, vasculhando seu rosto e querendo de alguma maneira confortá-lo. Não me importo mais em manter a distância ou tomar o cuidado de manter meus olhos afastados dos seus, eu só consigo imaginar o quão difícil deve ter sido — e ainda é — para ele estar longe de todos que o cercaram durante toda a vida, longe do lugar que ele chama de lar. Queria poder de alguma forma fazer sua dor passar. Como ele fez comigo ao amarrar tiras de sua camisa em minha panturrilha, porém tudo que consigo e olhá-lo.

Justin faz uma pausa tão longa que penso que ele terminou sua história e acabou se esquecendo de minha pergunta “por que eu?” e estou embaraçada demais para lembrá-lo, então fico apenas ali, encarando o nada e imaginando um garoto loiro de treze anos perambulando pelas fronteiras, descalço e com olhar sofrido e sonhador para o céu. Mas ele volta a falar e, quando o faz, sua voz é tão fraca, mais baixa até mesmo que um sussurro, que preciso me inclinar para ouvir.

— A primeira vez que te vi foi quando achei o Oarek pela primeira vez

Um sorriso triste surgiu em sua face com a lembrança. Meu estômago se aperta por um instante.

— Eu estava em mais uma de minhas caminhadas sem fim, não ia à fronteira fazia um tempo e precisava de um tempo sozinho. E eu estava ali, sentado com o maior bico do mundo quando você apareceu. Você estava correndo e dando pulos no ar, lembro que às vezes pulava no rio de roupa e tudo, dava aquelas cambalhotas doidas e sumia na água tão rápida quanto um flash. Eu fiquei encantado, você parecia tão feliz, tão viva e tão diferente de todos que já conheci nesse inferno de lugar que fiquei sentado ali, a tarde inteira te assistindo. Passei a ir ao Oarek sempre que podia. Algumas vezes você estava lá, outras não. Mas mesmo nessas vezes em que você não estava eu me sentia bem em saber que, em um lugar onde todos parecem dormindo num sono completamente entorpecido, havia alguém que parecia acordada. Você era esse alguém. E é por isso que é você.

Eu só consigo piscar, incrédula. Sinto meu estômago vibrar, se contorcer como se de fato tivesse transformado em milhares de pequenos pássaros batendo suas asas e querendo voar. O único momento em que eu realmente podia ser quem eu era, sem medo de ser observada ou repreendida era no Oarek. Era lá onde eu realmente me libertava e deixava de pensar em tudo que eu reprimia todos os dias, sem aquela preocupação de estar sempre sendo ouvida. Era lá que morava a Louise que mentiu para encontrar um Selvagem, aquela que gosta de Justin e de tudo que ele representa.  E saber que há alguém gosta de mim assim, liberta e acordada; dessa Louise que eu luto tanto para esconder, me traz uma sensação inusitada.

Eu não sei como, não me lembro de ter feito isso, mas de repente estamos cara a cara, tão perto que chega a ser perigoso. Seus olhos estão mais dourados que nunca agora, como um pote de mel transbordando num monte de ouro. Ele é bonito, me permito pensar, tão bonito que me desconcentra.

Parte de mim quer sucumbir a ele, a seus olhos hipnotizantes e fala macia, tão suave que parece sempre me erguer do chão em momentos como este. Mas eu não posso. Ainda não. Há algo que me prende. Tenho minha mãe e Anne, tenho toda uma perspectiva de vida que não pode ser mudada apenas pelas palavras bonitas de Justin e seu rosto angelical. Mesmo depois de ouvir sua história, de saber tantas coisas sobre sua vida, uma pequena parte de mim ainda resiste. Não posso ceder, não assim. E ao concluir o pensamento, fico surpresa ao notar o quanto isso dói.

 — Do que você tem medo? — Pergunta Justin, se possível ele parece ainda mais perto.

Ah, Justin, de tantas coisas! Tenho medo e você, das coisas estranhas que desperta em mim e de querer tudo isso que você representa. Tenho medo de desapontar minha família, de sermos pobres pelo resto da vida e de já estar completamente contaminada e consumida pelas doenças. E mais do que tudo, tenho medo de também gostar de você. Penso dolorosamente, mas em voz alta, tudo que digo é:

— Eu já te disse — sussurro olhando para minhas mãos, meu peito afundando a cada sílaba pronunciada. — Eu só quero ser feliz e não conheço outro caminho para isso, não há outro jeito. Já te disse...

— E eu também já te disse Lou: eu posso te mostrar. Apenas me deixe.

Justin levanta meu rosto e estamos cara a cara novamente, seus olhos parecendo soltar faíscas douradas pelo ar. Ele acaricia meu queixo, meu maxilar, minha bochecha e pescoço. Minha pele queima em cada local que suas mãos tocam, elas deixam um rastro de fogo delicioso por minha pele e fecho os olhos percebendo o quanto gosto de ser tocada assim. E é neste exato instante que o resto de mim que ainda resistia a ele, se rende.

E então estamos nos beijando.

Assisti ao vídeo da erupção de um vulcão uma vez na escola. As lavas simplesmente jorravam da superfície, incontroláveis, ferozes e lindas. Há certa beleza nisso, na falta de controle, na impotência que deve sentir quando uma enxurrada de lavas explode ao seu redor. E Justin, tudo que ele é e representa, pode ser comparado à erupção genuína e feroz de um vulcão qualquer. Não há como controlar. É como se jogar num penhasco escuro à noite.

Seus lábios são macios, é como nuvens espessas, porém suaves, esvoaçando sobre minha boca, tocando-me suavemente a pele. Algo que nunca experimentei antes transborda de mim, enquanto tento espelhar seus movimentos, desajeitadamente. Sinto-me estúpida imediatamente. Isso é o que eu quero. A inconstância, a falta de controle. Não quero uma vida tal como o Manual de OSF descreve como perfeita, onde sempre sabemos que nossos corações baterão exatamente da mesma maneira durante o resto de nossas vidas. Quero experimentar disso de novo, a falta de ar que quase me rasga o peito enquanto a mão de Justin rodeia meu rosto e seus lábios estão grudados nos meus. Eu quero perder o controle.

Acredito que já o perdi.

E por um instante me permito pensar apenas em mim, sem Anne, sem minha mãe, meu pai e o fardo que carrego por eles. E eu tenho uma certeza em mente, algo tão sincero e tão puro que não pode ser irreal: eu quero isto, quero aprender outro jeito de ser feliz e quero que Justin me mostre.

 Eu sinto as doenças aqui, penetrando cada centímetro da minha pele e consumindo-me até a raiz dos cabelos. Se me esforçar consigo ouvir o gongo soando, fogos de artifício sendo estourados enquanto o vírus se instaura em minha corrente sanguínea como se juntos fossem um só. Eu percebo que já estou contaminada e tudo que consigo pensar é que vai me matar. Mas neste momento em que Justin tem suas mãos na lateral do meu rosto, me olhando tão intensamente quanto possível após nosso primeiro beijo, apenas neste momento, percebo que não me importo.

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Notas Finais


Não me abandonem. Juro que estou tentando me motivar :(
Espero que tenham gostado, deixem suas opiniões nos comentários. Eu to muito nervosa, e nada me tira da cabeça o medo de vocês não gostarem :((
Ask: http://ask.fm/biebercitty


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