Os familiares de Jungkook vinham me visitar com frequência, de modo que meu quarto estava sempre agitado. Conforme o doutor Jack permitia, claro.
Mas chegou um dia em que eu realmente me senti cansado e com dores mais fortes do que o normal.
Sabia que estava chegando a hora. Eu quase podia sentir que estava partindo.
Naquela tarde, as visitas diminuíram, conforme eu tinha pedido, e solicitei que apenas Appa ficasse comigo.
Havia algumas coisas que eu queria lhe falar enquanto ainda tinha forças suficientes para as palavras.
-Você me ensinou uma vez, Appa, que chorar não é sinônimo de fraqueza – comecei dizendo, e continuei. – Você me ensinou tantas coisas lindas. Obrigado por ser o melhor Appa do mundo.
-Você que me ensinou, Jimin. Eu aprendi com você, filho, que as pequenas gentilezas é que são grandes feitos. A gente faz bem para uma pessoa por meio de um sorriso ou um olhar. Você é extremamente sensível e perceptivo, e me ensinou a ver os detalhes de tudo e a beleza de cada um deles.
-Se eu te ensinei, foi enquanto também aprendia. Aprendi que são pequenos gestos de bondade que determinam quem são os grandes heróis. É fácil fazer algo grande, que marque as pessoas, difícil mesmo é ser capaz de fazer pequenos gestos no dia a dia que mudam a vida daqueles que estão ao nosso redor. Pequenos gestos salvam vidas. Vocês sempre fez isso por mim, Appa, pequenos e grandes gestos que me salvaram. Você é meu herói.
-Querido... Você é um milagre.
Ele não sabia se ria ou chorava, então fez as duas coisas e eu o acompanhei.
-Appa – falei com um pouco de dificuldade, enquanto algumas lágrimas rolavam -, eu queria falar a sós com você hoje porque precisava lhe mostrar algo.
-O que é, filho?
-Há alguns anos, quando passei por aquela fase difícil em que não queria sair muito de casa, eu menti para você algumas vezes. Eu dizia que saía quando você estava trabalhando, mas, na verdade, eu ficava o tempo todo trancado. Não queria ver o mundo e nem queria que o mundo me visse.
-Isso já não importa, Chim.
-É que, naquela época, eu passei por algo ruim. Quando desci para a cidade, em meu aniversário de dezesseis anos...
Eu estava prestes a contar tudo o que acontecera naquele dia. Os insultos. O apedrejamento. Mas ele me interrompeu:
-Jimin, eu sei o que aconteceu naquele dia.
-Sabe?
-Sim. Talvez não saiba todos os detalhes, mas eu ouvi conversas sobre isso na loja de animais, e também pela cidade quando precisei ir buscar alguma mercadoria. Cheguei até mesmo a ler alguma coisa no jornal. Eu soube desde o início que aquele dia mudou a sua vida, e mais que tudo, isso moeu meu coração por vê-lo tão ferido, mas eu sempre soube que você iria se reerguer, e lhe dei espaço para fazer isso. Pensei que tocar no assunto lhe faria mal, já que você nunca quis falar sobre isso. Eu tenho minhas próprias cicatrizes, e sei que algumas coisas precisamos enfrentar sozinhos. E você foi tão forte o tempo todo. Eu sou o pai mais orgulhoso do mundo.
-Obrigado, Appa. Obrigado por tudo.
Então, afastei levemente a camisola de meu corpo e a levantei até o ponto onde precisava. Ali estava o que eu queria lhe mostrar.
-Essas são algumas das feridas, Appa, de quando fui apedrejado. Eu não seu dizer se as escondi de você esse tempo todo por vergonha ou por medo de magoá-lo.
-Não tem problema, filho, eu agradeço pela confiança em mostrá-las agora.
Elas estavam todas ali.
Os espinhos que haviam se quebrado ou amassado já tinham se regenerado há tempos, mas entre eles era possível ver as linhas das cicatrizes dos cortes feitos pelas pedras mais afiadas que me foram atiradas.
Já não sentia vergonha daquilo.
As cicatrizes também eram uma parte importante de mim, e eu não seria eu se não as tivesse.
Eu era mais bonito e mais forte e mais feliz justamente porque tinha aquelas cicatrizes. Porque um dia fora ferido e aprendera a recomeçar.
Appa observou-as rapidamente, e logo as cobri. Ele sorriu ao vê-las e ao contemplar o quanto elas eram necessárias.
Ele respeitou meu silêncio sobre aquele assunto e respeitou meu afastamento do mundo durante os dois anos em que me mantive enclausurado, e isso era mais uma prova de que eu tinha o melhor pai do mundo.
Ele não me forçou a seguir em frente, mas sim me conduziu silencioso e gentilmente para o recomeço, através do seu amor e de sua fé em mim, ciente de que eu teria meu próprio tempo.
Appa me acolheu e amou como fui desde o começo, sem qualquer restrição. Ele me tratou com respeito e me fez feliz todos os dias. Não seria possível expressar minha gratidão por esse homem que, ao perder o grande amor de sua vida, ainda teve forças para amar mais, de um jeito novo.
Foi esse amor que me deu forças. Desde o primeiro dia.
-x-
Em seguida, pedi que Jungkook e os meninos entrassem e que Appa nos deixasse a sós.
Também tinha algo a dizer ao meu namorado e aos meus únicos melhores amigos. A propósito, eu ainda achava surreal o fato de ter um namorado e melhores amigos. Quem diria?
Quantos dias eu passei triste por não ter um amigo? Antes de conhecer Tae, claro. Pensei que ninguém jamais se aproximaria de mim. Ter um namorado, então, era um sonho tão ousado que jamais me permiti.
Isso ia além da história do menino que procurava borboletas no jardim e que só as encontrou quando parou de procurar. No meu caso, era como se eu nunca nem tivesse procurado borboleta nenhuma, pois pensava que elas eram inalcançáveis.
Jungkook e os meninos eram maravilhosos, e mostraram que estariam comigo até o fim. Era melhor do que eu poderia imaginar e do que julgava merecer.
Eles entraram no meu quarto e se aproximaram da cama. Não pude deixar de notar que cada um ali presente chorava. Tive que me controlar para não chorar junto com eles, mas era muito difícil.
-Está chegando a hora, não está? – Yoongi perguntou, entre soluços.
Fiz que sim.
Aquilo era realmente difícil, e não era hora de cobrar deles que não chorassem, afinal de contas, chorar não era sinal de fraqueza, como eu tinha aprendido e vivenciado.
-Às vezes estar vivo pode ser realmente silencioso e solitário – Jungkook falou. – Acho que vai ser assim quando... Quando...
-Eu sei – respondi com sinceridade -, minha vida foi assim boa parte do tempo, mas vocês trouxeram tanta beleza.
Não pude deixar de pensar, por um breve instante, no que aquilo significava.
Às vezes é tão solitário e silencioso estar vivo. Ele tinha razão.
Mas Jungkook, os meninos, Appa, Winner e até mesmo Kaeun... Cada um contribuíra para trazer som e cor para minha vida. Quantas pessoas podem dizer que amaram e foram amadas de verdade na vida? Poucas.
Eu era uma delas. Havia pessoas que realmente amaram o menino feito de espinhos, e isso era motivo suficiente para eu me sentir grato.
-É difícil dizer adeus, meninos – falei -, mas tenho tentado ver o lado positivo de tudo, até nos momentos mais dolorosos, e acho que devemos agradecer por termos a oportunidade de nos despedirmos. Muitos não têm essa chance. Muitas pessoas partem deste mundo sem aviso prévio, deixando assuntos inacabados e pessoas amadas sem uma despedida adequada. Eu estou indo embora tendo colocado um ponto-final em tudo. Agradeço por vocês terem ficado ao meu lado até o fim e por terem me dado a oportunidade de lhes dizer adeus, e de mais uma vez afirmar o quanto eu amo vocês. Amo demais. Demais.
-Entendemos o que você esta dizendo, Chim, e somos nós que devemos agradecer. Acredite, nós fomos os caras mais sortudos do mundo por ter você em nossas vidas. E nada, nada jamais vai ser maior que esses anos que passamos juntos. Você fez de nós pessoas melhores. Teríamos um milhão de coisas para lhe dizer agora, infinitas razões para agradecer e relembrar, e um sem-número de motivos para tentar explicar o quanto amamos você, mas acho que tudo se resume à seguinte frase: Você vai fazer falta no mundo. De verdade. Uma falta que vai ser sentida por cada célula dos nossos corpos, que jamais te tocou, e em cada dia que estivermos sem você. – disse Jin, soluçando.
-É sobre isso que eu queria falar... Jungkook – respondi, direcionando o olhar para meu namorado, antes que nós embarcássemos num mar de lágrimas sem fim – Sobre seu futuro. Sem mim. Meninos, vocês poderiam me deixar a sós com o Jungkook? – perguntei, olhando para os meninos, que concordaram com a cabeça, ainda chorando, e saíram do quarto.
-Por favor, Jimin, eu não estou pronto para pensar em um dia sequer sem você.
-Mas você precisa, Jungkook, eu tenho pouco tempo.
Estava mais fraco e com dificuldade para falar a cada minuto. Precisava me apressar e dizer tudo que queria, mesmo que doesse. E cada palavra trocada naquele momento com Jungkook doía, sim, doía muito. Mas eu só partiria de coração em paz se soubesse que continuaria a viver também em paz. Isso me daria esperanças de reencontrá-lo um dia, em algum lugar melhor.
Eu sabia que, se não dissesse certas coisas, as palavras não ditas se tornariam fantasmas que o assombrariam para sempre, invadiriam seus sonhos pela noite e sussurrariam em seus ouvidos, acorrentando-o, aprisionando-o. Seriam fantasmas que me acompanhariam na eternidade.
Eu tinha a oportunidade rara de dizer tudo o que queria a quem amava. Precisava realmente dizer tudo.
-Você me fez muito feliz, Jungkook. Isso deve motivá-lo a seguir adiante.
-Não sem você do meu lado.
-Espero que isso mude com o tempo, querido. Eu sempre pensei que a felicidade era algo inalcançável, mas hoje sei que é mais como andar na corda bamba, entende?
-Não sei exatamente aonde você quer chegar.
Tomei fôlego, e ainda com um pouco de dificuldade, expliquei:
-Eu já fui triste e feliz. Sei que é difícil ser triste, mas á ainda mais difícil ser feliz, porque quando se está feliz, é como se estivesse andando na corda bamba. Você pode cair a qualquer momento. Aliás, você vai cair, inevitavelmente. O que nos segura e nos dá forças nos momentos de quedas são exatamente as experiências que colecionamos ao longo da caminhada. Por isso, tudo é importante. Cada sorriso e cada dor. Eu valorizo até mesmo os dois anos que passei me refugiando no chalé, porque não posso me julgar, se era aquilo que eu precisava naquele instante para continuar a viver. Tudo é válido, exceto o preconceito, claro.
-Você está certo. A vida é mesmo tão complexa. A felicidade e a tristeza também são.
-E é exatamente por essa rede complexa se sentimentos que eu preciso que você pense em você quando eu não estiver aqui, Jungkook. Pelo menos um pouco. Eu sei que você vai cair da corda bamba, mas você pode encontrar uma forma de se segurar nela, nem que seja com a pontinha dos dedos. Você não precisa cair completamente, e pode achar uma forma de subir de volta.
-Será muito doloroso.
-Eu sei, querido, eu sei. A tristeza vai empurrá-lo para baixo e querer que você afunde cada vez mais. Mas a felicidade que construímos juntos será fundamental para que você possa se segurar. Você tem que pensar dessa forma, agir dessa forma, Jungkook, e deixar que nossos momentos felizes o impulsionem e permaneçam sempre vivos.
Ele soluçava ao meu lado, e eu sentia que meu corpo todo tremia. Aquilo era ainda mais difícil do que tinha previsto quando imaginei aquela conversa em minha cabeça.
-Eu vejo tudo o que vivemos como um grande quebra-cabeça – ele disse entre lágrimas -, com infinitas peças, que nós preenchemos juntos. Talvez, como em qualquer relacionamento, nós tenhamos perdido algumas peças pelo caminho, mas nós conseguimos, no dia a dia, preencher nossos vazios.
-E, mais tarde, quando você olhar para o quadro todo – falei, compreendendo seu pensamento -, vai perceber que o que o torna único são justamente as peças que não foram preenchidas. De longe, elas podem dar a impressão de que algo está errado. Mas, se você olhar de perto, vai perceber que elas apenas provam que tudo foi real.
-Chim... Eu amo seus espinhos.
-E eu amo seus defeitos, Kookie.
-O que eu vou fazer? Eu nunca vou achar as peças que faltam para completar o quebra-cabeça.
-É exatamente sobre isso que eu estava falando. Você não deve ficar tentando achar as peças que faltam na nossa história. O que preenchemos juntos foi lindo e feliz, e o que ficou faltando vai sempre tornar nosso quadro único. Assim como seus olhos castanhos, que eu sempre achei tão bonitos. Eles certamente embelezam nosso quadro.
-Isso não tem graça;
-Eu sei – respondi com um sorriso fraco -, mas eu realmente preciso que você deixe o nosso quebra-cabeça como ele está. Pode sempre olhar para ele e sentir saudades, simplesmente ficou faltando. Você deve... Começar a montar um outro quebra-cabeça.
-O que você está sugerindo, Jimin?
Doía, mas eu precisava dizer aquilo. Precisava que ele soubesse como eu me sentia com relação àquele assunto:
-Você deve estar aberto para amar novamente, Jungkook. Você é especial demais para ficar sozinho. Você merece amar e ser amado.
Ele me fitava com um misto de incompreensão e incredulidade na face. Talvez pensasse que eu estava sendo cruel ao dizer aquilo. E talvez estivesse mesmo. Não era a hora nem o local para isso, mas, pensando bem, nunca haveria um momento certo para dizer essas coisas.
Eu estava sendo sincero. Desejava aquilo para ele, mesmo que doesse em mim dizer tudo agora.
Tomei coragem e continuei:
-Monte um novo quebra-cabeça, um novo relacionamento, corra riscos quando eu me for, eles sempre valem a pena. Além disso, seus olhos castanhos são bonitos demais para nunca mais olharem alguém com paixão. Se você não fizer isso por mim nem por você, faça por seus olhos. Para que eles tenham um novo horizonte a fitar.
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