Jesus do Céu – que garota chata.
Ela era aquele borrão preto em todas as fotos de família, com amigos, com os colegas e até com os ex-namoradinhos. As roupas sempre pretas entravam em contraste com sua pele e sorrisos brancos, alvos mais que a neve. Seu sorriso ficava ofuscante quando uma foto era tirada com flash, mas o fato de ela estar sempre sorrindo não queria dizer que ela era legal.
Ela tem dezessete anos e cursa último semestre de física. Sim, dezessete anos. Eu também estou no ultimo semestre de Artes, mas eu tenho vinte e dois. Ela é superdotada, ou seja, eu sou cinco anos mais velho e cursamos todos os anos escolares juntos, na mesma série. Conheço Ana desde que ela nasceu. Brincávamos, comíamos e viajávamos juntos quando éramos menores, até o segundo ano do colegial.
A Física roubou minha melhor amiga de mim. Mais especificamente, o Efeito Doppler – um fenômeno físico idiota que é observado nas ondas quando emitidas ou refletidas por um objeto em movimento em relação ao observador – a roubou de todos nós, seus amigos.
Eu gosto de ficar com ela, de observar seus olhares atentos correndo sobre as folhas com aquelas cansativas fórmulas, desenhos, diagramas e teorias, que para ela parecem ser interessantes e divertidos.
Gosto de observar aquela mesma mecha de cabelo caindo sobre seus olhos, enquanto o resto está preso num coque bagunçado, preso por um lápis mastigado, e aqueles óculos com armação escura constantemente escorregando por seu nariz, por conta da oleosidade causada por chocolates e amendoins em sua pele.
Ela nem olha para mim. Nem por um instante. Responde todas as minhas perguntas com "uhum" e outros grunhidos desinteressados. Mas ela diz que gosta de me ter lá, junto dela, apenas para sentir minha presença e ouvir minha respiração.
Ela diz que eu sou um objeto que permite que ela perceba o Efeito Doppler, já que, como ela só move os braços e os olhos enquanto estuda, eu estou em total movimento em relação à ela, já que fico escrevendo, desenhando, cantarolando e andando em círculos.
"Quando eu terminar você pode me dizer qualquer coisa que quiser, só espere um pouco, Hobi", é o que ela sempre diz.
Mas eu sou grato ao Efeito Doppler. Sim, grato. Há dias em que Ana fica cansada, com a vista doendo, o organismo transbordando todo o café que eu compro para ela – então ela para por um minuto, sai de sua cadeira giratória, anda até mim, se aninha em meu colo e cola os lábios aos meus. Ela diz que eu sou seu descanso, que eu sou sua melhor companhia. E então ela volta para sua cadeira, para suas folhas e teorias, e novamente me esquece, quase completamente, como se nada tivesse acontecido há poucos instantes.
Ela é uma moça chata, uma garota entediante. O Efeito Doppler a tomou em seus braços, e ela se apaixonou por ele, e isso a tornou o que ela é hoje – uma menina viciada em seus estudos, complexada nesse quarto sem vida.
Mas eu a amo desse jeito, seja tendo a mim como um objeto de estudo, uma distração ou simplesmente um descanso. E acho que ela sabe.
Sim, é claro que ela sabe.
E acho que me ama também, já que, sempre que eu digo "eu te amo", ela para, sorri sem me olhar e responde, como se não houvesse escutado nada:
—Uhum.
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