Ela acordara. Eram quatro e meia da manhã, ainda estava escuro. Ela caminhou à janela e decidiu ver o nascer do sol. O amarelo colidia com as estrelas e o alaranjado suave. Tomou uma xícara de chá preto, quente. Olhou para o retrato embaçado de seus pais, a direita do vaso preto de cerâmica, tocou o girassol com as pontas dos dedos, sentindo a textura aveludada e macia. Encarou o retrato deles mais uma vez. O acidente de carro reluziu em sua mente, como um raio de luz negra cortante, a deixando enjoada por alguns minutos. Largou o retrato na mesa, colocando a imagem de cabeça para baixo, e foi preencher seu estômago com algo além da bile.
Pegou uma maçã, que tinha a aparência de estar madura. Mordeu-a, mas seu gosto estava amargo e aquoso, então a largou na mesa. Olhou seu relógio de pulso, e em seguida foi ao quarto. O cheiro era de inverno, fazendo com que ela se sentisse com a respiração trancada e frívola. Trocou sua roupa rapidamente, colocou algo qualquer, e vestiu seu jaleco. Era uma interna, então, chegar mais cedo a ajudaria com a boa reputação. Ainda descalça e com os sapatos na mão, saiu de seu apartamento, com passos rápidos, encontrou Lance, o vizinho, com olheiras e sem camisa, na frente da porta do próprio apartamento. Ele bocejou, e disse oi, sorrindo de lado.
Lance era solteiro, tinha um corpo esculpido, cabelo castanho claro (que estava desarrumado) , tem 25 anos e era um pouco mais velho que Emma, que tem 23 (Emma fizera a faculdade de medicina mais cedo, com 16 anos, pois era o que pode se chamar de "aluna prodígio"). Os olhos verdes dele a fitaram durante alguns segundos, até dizer , com voz grave e aveludada:
-Ainda bem que não fiz medicina. Não ia aguentar acordar tão cedo como você, Em.
Ela riu em discreto, e olhou na água salgada de seus olhos.
-Porque está acordado então?
Este, por sua vez, enrubesceu por um segundo, e se recompôs, dizendo.
-Maggie estava derrubando coisas no andar de cima de novo.
Emma olhou seu relógio mais uma vez. Terminou de calçar seus sapatos, enquanto Lance a encarava descaradamente, despediu-se e foi-se. Entrou no carro apressadamente, quase prendendo o jaleco na porta, e ligou-o. Cantarolou alguma música indefinida, enquanto o céu ainda estava deliberadamente escuro. Aumentou a velocidade do carro. Aumentou, aumentou e a aumentou. Nem percebera direito o que tinha feito, apenas ficava nesse torpor de trocar e deixar a marcha mais leve. Tinha esperança de quanto mais rápido fosse, mais leve sua alma ficaria. Seus olhos latejaram. O acidente de seus pais reluziu outra vez, submergindo do canto escuro e inabitado de sua mente. Acelerou, acelerou ainda mais. Soluçou baixo e grave, como se tivesse medo de que alguém ouvisse seu choro.
Ela se descontrolara novamente, só que dessa vez foi tão intenso e remoto, sem aviso prévio, que ela não conseguia voltar atrás. Foi mergulhando de cabeça na escuridão, tornando-se de certa forma, inconsciente. Isso já havia acontecido outras vezes, desde o acidente. Não acontecia com tanta frequência, mas essa estava sendo a vez mais intensa e perigosa. Ela tinha tendências a se machucar indiretamente com um torpor indistinguível desde o trauma, as vezes, sem poder evitar. Colocava-se em situações perigosas como agora. Duas partes da sua consciência colidiam agora: uma queria voltar atrás, e a outra, escura e enegrecida, queria continuar até o infinito. Seus pés pesavam com cada vez mais força no acelerador, com tanta força que sentiu seus joelhos travarem.
Ouviu o barulho de pneus cantando no asfalto.
Tudo pareceu estar em câmera lenta.
Tudo parou.
Ele parou.
Virou sua cabeça.
Encarou-a.
Ela engoliu o ar a sua volta, o que fez sua garganta queimar como o inferno. Era ele. E os olhos dele brilharam como o de um veado. Parou e virou a cabeça para encará-la. Ela gritou a plenos pulmões. Um grito embargado pelo choro, um grito de lamúria.
E então, a cor negra, vazia de lembranças predominava em sua mente. Só lembrava de ver o carro bater nele. Atropelá-lo, arrancar-lhe a vida. Ela chorou com profundo arrependimento no último canto de sua consciência. Bradou com voz baixa:
-Peter... -sussurrou- Queria que você estivesse aqui.
De repente ela se encontrava em seu próprio apartamento, com o telefone à orelha, abraçada aos joelhos, vestida com uma regata cinza e jeans, fios rebeldes de cabelo caindo sobre o rosto.
Ouviu a voz da caixa postal. Sua mensagem foi enviada com sucesso. O por do Sol tacou-lhe raios laranjas e tons indistintos. Seu rosto vermelho continuava a arder com o sal das lágrimas.
Vinte e um anos. Perdi meus pais com vinte e um anos- chorava como uma criança. Passaram-se quinze minutos e ouviu uma batida na porta. Esforçou-se para levantar, e enxugando o rosto, sorriu de alívio ao ver pelo olho mágico que quem estava do lado de fora da porta era Peter.
Abriu a porta com u olhar sério, inclinado para a tristeza e a solidão. Ele sorriu abertamente, mas seu sorriso foi se apagando gradativamente ao perceber que Emma não estava nada bem. Olhou para ela e retirou os fios molhados de cabelo sobre seu rosto, colocando-os atrás da sua orelha esquerda.
-Em... está tudo bem?
Ela estremeceu e sorriu falsamente, respondendo co a voz ainda embargada pelo choro:
-T...Tudo.
Fez uma mesura para que ele entrasse, e os dois sentaram-se no sofá, ela encolhida entre as pernas e ele, afrouxando a gravata. Ela começou a chorar tão silenciosamente, que as lágrimas caiam sem parar de seus olhos, uma visão desesperadora, em que nem um único murmúrio habitava no ar. Estavam sentado lado a lado. Ela estava com uma mão no rosto e outra no sofá, e ele a observava tão atentamente que quase se esqueceu de respirar. Seus olhos cinza estavam tão abertos que chegaram a ficar vermelhos e lacrimejantes. Não trocaram uma palavra sequer por alguns minutos. Ele deixou-a chorar o quanto ela quis. Até que as lágrimas pararam de escorrer tão brandamente, tornando-se umas e algumas. Ele pegou a mão dela, que estava no sofá. Ela a apertou com tanta força que ele exclamou:
-Ai!
-Desculpe...- disse ela, em um tom baixo e deprimido.- Por tudo...
Houve mais um minuto de silêncio.
-Então...- disse ele quebrando o silêncio, e ao mesmo tempo, enxugando uma lágrima dela. Seu cabelo era de um cobre escuro, que beirava o castanho.- Vai me contar o que houve?
-Lembra.... Que eu te disse uma vez.... Que meus pais moravam no Oregon em uma casa térrea singular, de tijolo?
-Sim, lembro-me.
Ela parou e fungou, chorando mais um pouco.
- Eu recebi a notícia de que... -nesse momento sua voz embargou ainda mais- Eles... Morreram num acidente de carro... ontem a noite...
Ele exclamou, murmurou algo como "Caramba, Emma... Sinto muito.", e a puxou para junto do peito, onde ela chorou alto e brandamente, até se acalmar aos poucos com os batimentos cardíacos dele.Depois de um tempo, com os olhos fechados, ela murmurou:
-Sabe... O som do teu coração...
-O que tem ele?
-É umas das coisas que me faz sorrir. [...]
Ela caiu profundamente na sua perda de consciência, sentindo-se abatida, e ouvindo cada vez mais alto o som daquele coração, da memória que se amarrava em sua mente.
Afinal, como ele poderia estar ali, depois de anos?
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